tSENTIR O
ESPÍRITO DA PALAVRA
“Abre-te!
Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou...” Mc 7,35)
O Evangelho de hoje nos diz que os pagãos
também foram destinatários da presença inspiradora e salva-dora de Jesus: Ele saiu
da região de Tiro, passou por Sidônia até o mar da Galiléia e atravessou os
limites da Decápole. É uma das pouquíssimas vezes que vemos Jesus fora de seu
país, na região dos pagãos, em meio às pessoas de outra religião.
Com efeito, vemos, em primeiro lugar, como Jesus não
está entre os pagãos com uma atitude “após-tólica”, não o vemos preocupado em
catequizá-los, nem fazer proselitismo religioso: não procura conver-ter ninguém à sua religião, à fé
israelita no Deus de Abraão. E tampouco faz discursos religiosos, nem o vemos
proclamando uma doutrina, ensinando e divulgando as santas máximas de sua
mensagem.
Simplesmente “cura”. Em outras palavras: “faz o bem”,
não fala sobre o bem; realiza atos, não ditos.
Não podemos dizer que Jesus passou pelo
território pagão com indiferença, ou com os olhos fechados, pois ali também ele
se encontrou com uma humanidade sofrida e excluída.
Por isso, trouxeram-lhe um surdo-mudo e lhe
pediram que lhe impusesse as mãos sobre ele.
O texto faz referência a um percurso corporal: de
Jesus são nomeados as mãos, os dedos, a saliva, os olhos e a respiração; do
surdo-mudo, os ouvidos e a língua. No começo do relato o surdo-mudo aparece
fechado em seu silêncio e em sua solidão, levado diante de Jesus por outros e
logo afastado deles pelo mesmo Jesus. Dir-se-ia que não só está atado e travado
por seu problema de comunicação, mas também impedido para tomar iniciativas e
decisões livres.
O contato com Jesus, em intensa
proximidade corporal, e a força de seu imperativo “abre-te”, soltam-lhe todas
suas ataduras e lhe permitem de novo pronunciar sua própria palavra.
Como por um efeito contagioso, todos os
presentes se põem a proclamar o ocorrido e escutamos seu rumor admirado, como
um eco das palavras de Deus na criação: “Ele tem feito bem
todas as coisas”.
“Abre-te”: esta é a única palavra
que Jesus pronuncia em todo o relato. Expressão que desata as palavras
emudecidas no interior daquele homem; expressão que desbloqueia a voz e os
ouvidos, ou seja, restaura nele a capacidade da comunicação, de escutar e
responder. Por isso, esse imperativo não está dirigido somente aos ouvidos do
surdo mas ao seu coração.
Jesus, com sua presença terapêutica, destrava
interioridades. Ele assumiu uma estratégia terapêutica de “inclusão”. Ao
curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais
sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e
fonte das decisões.
Jesus se compromete com a saúde radical e integral do
ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, de suas emoções,
projetos, relações e abertura ao outro.
Poderíamos dizer que Jesus ativa no surdo-mudo a dom
de “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” tudo o que estava oculto em seu
interior. Sabemos que a palavra
abarca todas as expressividades humanas; mas ela não se reduz à oralidade: a
gestualidade, a linguagem corporal, a expressão dos sentimentos, as atitudes
éticas... tudo isso também faz parte da palavra humana. As palavras são, ao
mesmo tempo, pensamento, sentimento, ação... São humanizadoras, por excelência.
A cura do surdo-mudo nos convida a deixar que Jesus
continue realizando com cada um de nós seu gesto criador, como fez Deus na
primeira manhã da criação, modelando com suas mãos e insuflando seu alento,
curando nossa surdez e gaguejamento.
A mesma palavra dirigida ao surdo-mudo “Abre-te”,
pode ressoar hoje em nossos ouvidos e em nosso coração, convidando-nos a destravar
dimensões importantes de nossa vida, para assim podermos conti-nuar realizando
pequenos gestos criadores e oferecendo sinais de vida, também entre aqueles que
não compartilham nossa fé.
O quê precisa ser desbloqueado em nossa
vida? Talvez alguma capacidade adormecida, ou algum recurso interior que
permanece latente; talvez um novo sonho ou projeto, uma abertura para crescer
em comunicação com os outros, uma “palavra” diferente que expresse o sentido de
nossa existência...
O contexto pós-moderno no qual vivemos nos
motiva a considerar a importância e o sentido da “pala-vra”, a prestar
atenção ao seu dinamismo e à sua força expressiva e criativa.
Sem dúvida, em nosso momento atual, a palavra
cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Banalizamos as
palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento
esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Portanto, “cuidar
a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela
como se expressa nosso mistério”
(Melloni, sj).
É preciso novamente dar oportunidade às palavras, pois
viver é a arte de saber lidar com as palavras.
Cada palavra tem seu impacto interior, algumas evocam e fazem presentes
não só as ressonâncias imediatas, senão que nos conduzem às profundas e
estremecedoras experiências.
Temos a nobre tarefa de
aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da
insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e poder assim
confrontá-la com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.
"Mas você sabe
que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?" (Clarice
Lispector).
De fato, na cena do evangelho de hoje, Jesus
desencalha palavras e mobiliza o homem para ir desfrutando palavras novas,
inspiradoras, que rompem a sua solidão e expandem a sua vida em direção aos
outros e em direção ao grande Outro.
“Em
algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas
palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se
também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada
num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são
como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são
grutas ou catedrais que exigem contemplação” (Affonso Romano de Santana).
As palavras são
feitas à nossa medida e adquirem vida quando as pronunciamos, convertendo-se
assim em um prolongamento de nós mesmos, de nossos sentimentos e de nossos
valores. As palavras são o reflexo de nosso viver e sentir, de nossas misérias
e grandezas; são a “alma” de quem as pronuncia ou as escreve. Com elas não
estamos sozinhos; com elas podemos transcender nossa pobre realidade.
As palavras se desgastam quando nos
afastamos do contato originário com a realidade, quando nos distanciamos dos
acontecimentos que nos alcançam, quando renunciamos a sentir e saborear as
coisas internamente, quando não nos deixamos afetar pelos matizes quase infinitos
da dor de nosso próximo.
Por isso é importante progredir no caminho do silêncio,
no qual nos educamos na escuta
autêntica do nosso coração, que é a única capaz de fazer emergir palavras
carregadas de vida e de sentido.
E como já disse alguém “as palavras são
caminhos para encontrar as coisas perdidas”.
Texto
bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: nas profundezas do silêncio de seu
coração e sob a ação do Espírito, “escave” palavras inspiradas
que serão
portadoras de vida junto àqueles que lhe são mais próximos.