Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

segunda-feira, 30 de março de 2015

Quinta feira Santa

LAVA-PÉS: passagem de “ser servido” para “ser servidor


“Se eu, o Senhor e mestre, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros” (Jo 13,14)

Jesus sente que sua “hora” se aproxima, reúne os seus discípulos e manifesta-lhes o último desejo com um gesto que marcará para sempre a história da humanidade: o “lava-pés”.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o “lava-pés” durante a ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e de hospitalidade.
Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Pode ser que Ele esteja colocando uma relação muito estreita entre o comer  e o servir, melhor dizendo, entre a Eucaristia e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convida-dos para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir outros. O dom recebido é partilhado entre os seus, mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão. A força que ele traz é para conduzir à vida em abundância.

Jesus “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a à cintura”.
“Levantou-se da mesa”: este gesto de Jesus assume um significado especial. Revela-nos que não se pode servir permanecendo em nosso comodismo. O gesto de levantar denota que há algo por ser feito.
“Ficar de pé”  é posição que expressa prontidão para servir; para isso é preciso deslocar-se do próprio “lugar” e descer até o “lugar” do outro. É desinstalar-se do próprio bem-estar, é dinamismo.
Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo”  ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa.
O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar?
“Estar à mesa” é sempre sinal de fraternidade, de comunhão, mas é necessário saber levantar-se na hora certa para poder servir com amor.

“Tirou o manto”: Ele mesmo se despoja. Abrir mão do manto é uma iniciativa livre e soberana, que nasce de seu próprio interior. O manto impede a liberdade de movimentos, não permite fazer o serviço com facilidade. Há “mantos” que são sinais de poder.
O Senhor assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas entre a religião antes e depois de Jesus Cristo.
As autoridades religiosas vestiam-se do distintivo  de autoridade-poder para servir o povo. Jesus despe-se dele para servir. Ele serve verdadeiramente como servo. Os outros serviam como senhores.
É necessário arrancar “todos os mantos do poder” para poder redescobrir a verdadeira dignidade humana desnuda e despojada de todas as aparências. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio. Não é possível amar colocando-se longe do outro.

“Coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido”. Normalmente os preparativos ficam por conta de outros; é o servo que prepara a bacia com água para que o senhor lave os pés de outro. Aqui Jesus assume os preparativos, não faz trabalho pela metade. A água derramada não é feita com violência, nem com força, mas com extrema delicadeza, com atenção e amor. Amar é tocar de perto, ajudar, caminhar juntos...; nesse gesto de elevação Jesus revela um amor “físico”, de contato corporal e de serviço, de ajuda humana e de dignidade. Ele não quis só ensinar, dar comida, mas aproximar-se, ajoelhar-se, lavar
O gesto que Jesus faz expressa o que Ele é. Ele é inteiramente servo. Todo o seu ser está a serviço. Ele se dá naquilo que faz, e faz o que propõe aos discípulos.
Lava os pés dos discípulos. Inclina-se aos pés deles, até o chão. Com reverência, o mestre lava os pés dos discípulos: essa é a dinâmica que revela a novidade do Reino de Deus. “Lavar os pés” dos discípulos é cuidar dos que servem os servos.
Jesus sabia que seus discípulos tinham pés frágeis, pés de argila. E se os pés são, na mentalidade judaica, símbolo de infância e prazer, seus pés precisariam, sem dúvida, ser lavados de todas as suas memórias negativas. Cada discípulo era uma criança doente, e era preciso, em primeiro lugar, curar essa criança antes que ela se colocasse a caminho para anunciar o Evangelho, a Boa-Nova.

“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente.
Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que caracteriza o novo modo de ser, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.
Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia em forma de círculo a fim de atingir a todos.
O novo modo de exercer a autoridade é praticado primeiro entre todos os que participam da ceia, mas deve ser exercido sem limite de tempo ou de espaço, isto é, deve atingir toda criatura em todos os tempos até a plenitude.

Todos os gestos do lava-pés possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obri-gado. No corre-corre da vida é urgente reassumir a linguagem dos gestos que se perdem na pressa, na mania de fazer muitas coisas porque outras nos atropelam e nos distraem do essencial.

Texto bíblico:  Jo 13,1-15

Na oração: Seja você alguém que, na admiração da gratidão, se aproxima deste gesto ousado de Jesus (tirar o
                   manto e vestir o avental), a fim de purificar sentimentos, endireitar caminhos e aprofundar a cami-nhada na convivência com os irmãos.
A sua identificação com Jesus lhe confere um novo modo de ver, avaliar, escolher e posicionar.
É a contemplação, a postura mais envolvente, que lhe pode fazer enxergar o milagre; e, sensibilizado, abrir-se-á à dimensão do maior serviço, por pura gratuidade.



quarta-feira, 25 de março de 2015

Domingo de Ramos


RAMOS: é possível humanizar nossas cidades?

 

“...encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado; desamarrai-o e trazei-o aqui”

 

Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproxi-mem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.

Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o papa Francisco, o frescor original do Evangelho.

 

E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.

Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.

Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade... desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.

 

Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida”  dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justi-ça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande  Templo, lugar onde se cumpre a esperança dos povos.

Jesus sobe a Jerusalém anunciando a chegada do Reino de Deus que  deveria manifestar-se ali, mas de uma forma diferente: com um Templo sem culto sacrifical, aberto para todas as gentes, com uma nova estrutura humana aberta ao senhorio de Deus.

Jesus, Filho de Davi, tinha que subir à cidade de seu antepassado Davi, não para conquistá-la militarmen-te e reinar, a partir dela, sobre o mundo, mas para instaurar ali outro Reinado, fundado precisamente nos pobres e expulsos dos reinos da terra. Para Jesus, Jerusalém deveria ser entendida como centro da nova humanidade messiânica, capital do Reino dos excluídos da velha história humana.

 

Jesus tomou a cidade sem conquistá-la. Dom do Reino. A subida a Jerusalém foi um gesto profético, de caráter pacífico (não violento) e por isso de forte conotação política, não na linha da tomada do poder (Jesus não conquistou Jerusalém), senão de oferecimento e comunicação de vida. Não quis invadir a capi-tal com armas e exército, para que mudasse simplesmente de dono (sentando-se sobre o trono de Davi para reinar), nem quis estabelecer um Estado melhor (com bons administradores), senão algo mais revolu-cionário: “tomou” a cidade sem dominá-la, com seu anúncio do Reino e com seu ensinamento.

A entrada de Jesus em Jerusalém nos revela que Ele foi transgressor e rebelde frente ao poder estabele-cido, sobretudo o poder religioso que impõe suas normas de verdade e de pureza acima da vida. Jesus sabia que com isso arriscava a vida. Mas, ao pressentir seu final violento, não arredou pé, senão  que fez frente ao Templo e ao Palácio. O que estava em jogo era mais que sua vida, era a Vida: era a antiga promessa de todos os profetas, era a libertação universal  esperada, era a igualdade de homens e mulheres  ainda sem construir, era a erradicação de toda violência e poder, era a instauração do Reinado da justiça e da paz. Tudo isso estava em jogo, e a fé de Jesus, mansa e rebelde, foi maior que seu medo. Montou sobre um humilde jumentinho e desafiou o Império e o Templo, com suas cortes e legiões e todas as suas inumanas ordens sagradas.

 

Jesus entra em Jerusalém rodeado do povo, das pessoas simples. Este povo escravo e oprimido o aclama porque vê em n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação. Escutaram suas palavras e viram seus feitos durante alguns anos. Escutaram palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...

Viram seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de dar alimento aos famintos, de reabilitar os desprezados, de acolher os marginalizados, de enfrentamento dos opressores...

Jesus quer continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quer também humanizar esta cidade para que ela seja sol de justiça e paz para todos os povos.

 

 

E nós, se queremos continuar a percorrer o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas. Vivemos  em uma sociedade na qual parece que já não é possível outra economia nem outra política, que temos de nos resignar com o que é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico que nos rodeia.

Hoje, nós seguidores do Nazareno, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, uma sociedade diferente onde a fraternidade, a igualdade e a verdadeira democracia se façam realidade. Um mundo, em definitiva, em que se respeitem os direitos de todas as pessoas e os direi-tos da mãe Terra, onde o compartilhar seja o mais normal e natural.

“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não nos podem impedir que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidade. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele” (Doc. Aparecida, n.514).

 

A espiritualidade da presença cristã no meio urbano convida a descobrir e indicar as presenças reais do Deus que in-habita em pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário de Deus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder)

O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” de nossas cidades.

A cidade que Deus quer: uma praça e uma mesa para todos. A praça é de todos e todos podem caber na praça quando esta começa pelas vítimas e pelos últimos, onde todos podem circular livremente, criar relações e convivência, com a experiência de ser aceito e reconhecido como humano. 

A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de aceitação e de encontro, lugar de chegada e entrada da pluralidade e diversidade como a Nova Jerusalém.

 “Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o seguidor de Jesus tem em quem se inspirar.

 

Texto bíblico:  Mc 11,1-10

 

Na oração: rezar sua presença na cidade onde mora: é presença inspiradora, profética, de compromisso

                   com a construção de relações humanizadoras?...

Fazer “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo?

suporta? denuncia? atua?...

Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?

 

 

 

 

quinta-feira, 19 de março de 2015


PERDAS E GANHOS: da vida menor à Vida maior

 

“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanecerá só; mas, se morre, produz muito fruto”.

 

Declaração impactante e central na mensagem de Jesus. Qual é a pérola de grande valor que se esconde por detrás desta afirmação? O sentido profundo está na descoberta de que só existimos na medida em que nos doamos aos outros, que a razão de nossa existência a encontraremos na entrega e no serviço. Só através de contínuas perdas e mortes é que poderemos ter acesso à verdadeira Vida.

O transcurso de nossa vida é uma inevitável sucessão de perdas e mortes;  aceitá-las é dar-nos conta de nossa limitação fundamental como criaturas, como seres vivos, e descobrir a possibilidade de ser mais naquilo que temos de especificamente humano.

As perdas e mortes  trazem mudanças para a vida em suas raízes: o que antes era o centro de nossa vida (uma pessoa, uma posição, um trabalho, um estilo de vida...) já não existe; nossa vida já não voltará a ser a mesma, pois o que antes nos dava identidade, sentido e direção, conforto e apoio, desaparece.

A função das perdas e das mortes é libertar-nos para avançar para o futuro, não nos deixando determinar pelo  passado. Então elas, uma vez aceitas e acolhidas, se convertem em um dom precioso. Já não somos os mesmos de antes, mas podemos nos converter em uma pessoa completamente nova. Estamos na disposição de aprender precisamente quando não temos nada, quando parece que não nos sobra mais nada. E é que possuímos no mais profundo de nós mesmos algo que ninguém pode nos tirar e que é impossível perder: dons em abundância nunca descobertos nem tocados antes, um desejo que está esperando que lhe abramos a porta, uma inspiração pronta a se tornar realidade...

 

Esta ideia de “morrer para produzir fruto” é original de João. Sabemos que o grão de trigo morre no aci-dental e revela o essencial: na semente há vida, mas está latente, esperando a oportunidade de expandir-se.

Comunicar Vida foi a missão de Jesus;  por isso, sua mensagem  não implica um desprezo à vida, mas pelo contrário, só quando nos atrevemos a viver intensamente, dando pleno sentido à vida, alcançaremos a plenitude à qual somos chamados.

A vida não se perde quando se converte em alimento da verdadeira Vida.

A vida humana chega à sua plenitude quando transcende o puramente natural. O biológico não fica anula-do pelo espiritual, mas potenciado e “plenificado”.

O grande segredo revelado no Evangelho, é que o ser humano, partindo da vida biológica aspira outra realidade que chamamos Vida. Esta é a verdadeira meta do ser humano. O sentido dessa Vida com maiúscula está em destravar todas as ricas possibilidades de plenitude que pulsam por expressar-se e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.

Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, terminará perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há vida.

 

Se queremos dar fruto, ou seja, dar sentido à nossa existência, teremos que nos desgastar, consumindo-nos. A vela só adquire sentido quando está acesa; mas se está acesa, ela se consome. A rosa, ao espalhar sua fragrância, entrega algo de si mesma; e assim está manifestando seu verdadeiro ser.

A vida é movimento e, portanto, energia expansiva. Podemos consumi-la em benefício do ego (falso eu) e então vem o fracasso. Podemos consumi-la em benefício dos outros e da causa do Reino, e então, consu-má-la, dando-lhe plenitude. Ter apego à própria vida é destruir-se, é desprezar a própria vida. Entregar a vida por amor não é frustrá-la, mas levá-la a seu completo êxito.

Aquí há uma inversão na lógica natural das coisas; ganha-se quando se perde, vive-se quando se morre, multiplica-se quando se divide.

“Morrer” e “perder” é este instante de ruptura, onde toda uma vida incubada, trabalhada no silêncio e no sofrimento, marcada de alegrias e tristezas, vitórias e fracassos, desponta luminosa para a vida eterna.

Uma vida pensada sem “mortes” e sem “perdas” acaba-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).

Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; ela nos desaloja de nossos “lugares estreitos” e nos faz caminhar em direção a novos horizontes.

Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia-a-dia, carregá-la de sentido.

A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.

 

Mais ainda: tudo aquilo que fomos desenvolvendo no centro de nós mesmos (valores, a esperança, a bus-ca, a absoluta confiança em Deus, os sonhos...) está agora em nós como o ouro escondido em uma mina, para ser extraído, contemplado e admirado e para brilhar como nova vida. Temos em nós o material da vida ainda bruto para ser lapidado.

Com frequência, só a perda permite valorizar toda essa riqueza acumulada. Privados da segurança do passado, livres dos “afetos desordenados”, estaremos livres para encontrar em nossa interioridade a força espiritual que nos permite viver de um modo expansivo. A perda é, ironicamente, a ocasião da novidade, a porta aberta para outras dimensões da interioridade que ainda permanecem em estado letárgico em nós, mas nelas está pulsando a vida.

Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte e na perda anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.

A Vida é fruto do amor, mas o egoísmo é a casca que impede germinar essa vida, mesmo que esteja dentro de cada um de nós. Amar é romper a casca e doar-nos, desfazendo-nos, consumindo-nos.

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório (paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida divina, a vida de Deus em nós.

 

Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e nos deslocar em outra direção. A vida não é um caminho só: são muitos caminhos, muitos deles inexplorados; e quando chega a perda (romper a casca), Deus como criador vem a nós abrindo-nos caminhos que podem nos conduzir para a nova criação que Ele tem começado em cada um de nós. Por isso, temos que continuamente nos perguntar: o que ainda existe em nós sem terminar e  que está começando a ser?

Todo caminho escolhido não nos deixa formatados e fechados; ele é ocasião para ampliar nossa vida e permitir que “Aquele que começou em vós a boa obra, a levará termo até o dia de Cristo Jesus” (Fil. 1,6)

 

Texto bíblico:  Jo 12,20-33

 

Na oração: Quando vou começar a viver como ressuscitado? Há na vida muitas coisas – pequenas ou imensas

                     – que vão morrendo e nascendo de novo, diferentes, melhores, reconciliadas...

                    Há sepulcros esperando esvaziar-se, em mim e nos outros.

Quais são minhas pequenas mortes, meus espaços sepultados, minhas feridas incuradas?...

 

 

 

 

 

 

sábado, 14 de março de 2015

HOMILIA DOMINICAL - 15 DE MARÇO DE 2015

QUARESMA: contemplar novos e estranhos mundos


“...porque Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16)

Esta afirmação faz parte do núcleo essencial da fé cristã. Deus ama o mundo, e o ama tal como é: inaca-bado e imperfeito, cheio de conflitos e contradições, capaz do melhor e do pior... Este mundo não percor-re seu caminho sozinho, perdido e desamparado. Deus o envolve com seu amor de ternura.
Isto tem consequências de máxima importância. O mundo inteiro transforma-se em objeto do nosso inte-resse e da nossa preocupação.
Se há um “hábito do coração” que poderia ser ativado nesta Quaresma é este: a “leitura orante da realidade do mundo”. Este “hábito do coração” tem suas raízes no relato evangélico de hoje, onde Jesus nos convoca a olhar o mundo como Deus olha: com amor e compaixão
Assim como a Salvação do mundo foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração de Deus, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-O de compaixão e movendo-O à ação, assim também toda nossa presença no mundo tem de ter sua origem num olhar misericordioso e compassivo, amoroso e esperançoso...

Inspirados na afirmação de Jesus, contemplamos com o olhar do Deus compassivo nosso mundo frag-mentado, cheio de conflitos que geram sofrimento, exclusão, morte... E esses espaços e fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos; mas, nas profundezas de todos esses “mundos que nos são estra-nhos” se revela a presença amorosa do Pai. Pois tudo foi alcançado e redimido pelo amor expansivo de Deus.
A Quaresma nos conduz à contemplação da realidade na qual vivemos e à qual somos enviados apostolicamente; tal exercício nos possibilita ter presente, como uma visão de conjunto, as grandes questões sociais e eclesiais que desafiam hoje os cristãos, enquanto seguidores de Jesus e  comprometidos com a fé e a justiça, em diálogo com a cultura e com as tradições religiosas.
Esta contemplação da nossa realidade (“ver o mundo”) nos ajudará a nos aproximar e a conhecer mais profundamente o mundo no qual estamos imersos. Nesse sentido, contemplar o mundo a partir de Deus será um convite a encarnar-nos nele para transformá-lo.

Tal aproximação e conhecimento deste mundo devem ser feitos a partir de uma atitude de compaixão: não de confrontação ou enfrentamento, mas movidos pelo desejo de compreender as entranhas do mun-do no qual vivemos. Não se trata de fazer um juízo moral sobre ele, nem para aprová-lo nem para conde-ná-lo. Assumimos uma atitude crítica valorizando o que nele há de potencialidades abertas e emergentes, bem como detectando suas limitações, desvios... Ao mesmo tempo queremos nos deixar interpelar por ele, fazendo com que ressoem em nós suas perguntas e suas inquietações, suas luzes e suas sombras, suas riquezas, seus paradoxos e suas contradições.
Estamos mergulhados no mundo trabalhando junto e com as pessoas, mas na mesma ação somos contemplativos porque “encontramos a vida divina no mais profundo da realidade”.
Existe uma forma contemplativa de viver no meio do mundo, ou seja uma forma diferente de descobrir o Deus oculto no centro das realidades. Como um pêndulo, o cristão oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com todo seu “mundanismo” e complexidades. É tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais inesperada.

O tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer”  até às profundezas da humanidade.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de mise-ricórdia; um olhar que compromete solidariamente.
As grandes fronteiras do mundo (globalização, diferentes culturas, ciência e tecnologia, ecologia, bioética, migrações...) vão adquirindo cada dia proporções novas e surpreendentes;  elas constituem os grandes desafios que pedem de nós, seguidores de Jesus, uma presença inspiradora e samaritana.
Esta é a atitude contemplativa: ver  Deus no mundo e o mundo em Deus.
Tal atitude fundamenta uma grande paixão e interesse pelo mundo. Para descobrir Deus não é preciso fugir do mundo; o seguidor de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí,
 “esvaziando-se”, participa ativamente da solidariedade de Deus com a humanidade, que é o centro da salvação; ele estabelece sua moradia no mundo, inserido nos “extremos” do trabalho, da vida, dos direitos, da ética na política..., ali onde se faz mais necessária a atividade profética.

Neste momento em que tudo parece confuso, incerto e desalentador, nada nos impede introduzir um pouco de amor, de compaixão, de sensibilidade e justiça, no mundo. É o que fez Jesus. Sua presença nas periferias da pobreza e exclusão deixou transparecer o rosto humano e compassivo do Pai.
O mistério Pascal nos convida a “olhar” nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidade, paixões, sentimentos, fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade, salvando-a.
Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
A espiritualidade quaresmal abre-nos à missão apostólica, desvelando os aspectos criativos e esperançosos da realidade, denunciando as forças que desagregam ou excluem, propondo novos modos de viver o compromisso eclesial e social..., enfim, impulsionando a sermos agentes de trans-formação e atuantes no âmbito público.
Isso demanda lucidez, conhecimento rigoroso e sapiencial da realidade; para isso é preciso deixar-se afetar pela realidade (compaixão), incorporar uma leitura compassiva e entrar no fluxo da graça expansiva de Deus, que tudo redime.

Texto bíblico:  Jo 3,14-21

Na oração: diante de Deus responda: quê impacto tem sua vida cristã na realidade social que o(a) cerca?
                      Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando em seu interior uma sensi-
bilidade social, um espírito solidário e um compromisso com o mundo da exclusão.









segunda-feira, 2 de março de 2015

Homilia dominical - 08 de fevereiro de 2015


JESUS FOI UM BUSCADOR DE ALTERNATIVAS

 

“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do templo” (Jo 2,15)

 

Na história da humanidade, frente a uma ordem social e religiosa injusta estabelecida, surgiram aqueles que que se rebelaram...Há transgressores necessários, para o bem da humanidade. Eles se opõem a uma ordem social e religiosa injusta, para assim criar uma humanidade mais justa e solidária, abrindo um espaço para os excluídos, um caminho de amor para os rejeitados...

Entre esses transgressores está Jesus. Por isso o rejeitaram e o mataram.

Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai de todos, Jesus transgrediu a norma da “boa sociedade”, mergulhou no submundo da exclusão, da miséria...

Normalmente os transgressores rompem alguns limites para traçar outros, mudando um sistema que julgam imperfeito por outro que lhe parece mais perfeito. No entanto, Jesus, o transgressor messiânico, superou e quebrou as barreiras anteriores não para criar outras, senão para abrir um espaço e caminho de vida que pode ser universal.

 

Os seguidores de Jesus se identificam como “transgressores” reunidos a partir da gratuidade do amor, acima da lei. O gesto de Jesus não pode se converter em princípio de uma nova lei religiosa, mas deve ser compreendido como fonte humanizadora, manancial de autonomia criadora. Isso significa que Ele quis que os seus seguidores assumissem e deslanchassem um caminho de autonomia criadora sobre o mundo.

Segundo o relato do evangelho de João, na sua primeira subida ao Templo, Jesus, com seu gesto ousado, rompe esse mundo religioso fechado, introduzindo uma novidade; com uma audácia desconhecida surpre-ende a todos, abrindo um novo caminho entre nós para humanizar a religião. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além do estabelecido pela religião do Templo.

Atacar o Templo era atacar o coração do povo judeu: o centro de sua vida religiosa, social e econômica. O templo era intocável. Ali habitava o Deus de Israel. Jesus, no entanto, se sente um estranho naquele lugar: aquele templo não é a casa de seu Pai nem é o espaço da acolhida dos marginalizados, mas um mercado.

O Pai dos pobres não pode reinar a partir deste templo. Com seu gesto profético, Jesus está denunciando, na raiz, um sistema religioso, político e econômico que se esquece dos últimos, os preferidos de Deus.

 

Jesus nasceu e viveu numa sociedade religiosa. Seguramente foi educado na religião de seu contexto. Mas em seu processo pessoal foi questionando uma religião que oprimida as pessoas e não as fazia felizes, e que, além disso, justificava a opressão de umas classes sociais (sacerdotes, grupos próximos ao Templo, ricos, fazendeiros, poderosos politicamente...) sobre outras (pobres, mendigos, camponeses empobrecidos, excluídos sociais, enfermos, viúvas, escravos...).

Jesus se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto reli-gioso, mas no espaço “profano” da convivência com as pessoas. A partir de sua religiosidade Jesus foi descobrindo um Deus não distante nem cruel, mas próximo, misericordioso, a quem chamava “Abba”. E começou a anunciar que Deus queria para os seus filhos e filhas uma dignidade, uma felicidade, uma humanidade e relações de amor que as levariam a uma sociedade igualitária, fraterna, justa...

 

Jesus era visto como um forasteiro perigoso e um subversivo que entrou em conflito com a religião oficial (Templo e Lei). Viveu e pregou na Galiléia: era o melhor lugar para anunciar sua mensagem e seu projeto, região de pobres, ignorantes e impuros. Com eles Jesus assumiu uma “conduta desviada”.

Seu conflito com o Templo o levou à ação mais violenta. Com seu gesto Jesus reprova os profissionais da religião que se servem do Templo para justificar as maiores violências. Mas Jesus não fez isso para “puri-ficar” ou “restaurar” uma religião muito primitiva e substitui-la por um culto mais digno e ritos menos sangrentos; seu gesto transgressor tem um conteúdo mais radical: a destruição de tudo o que o Templo significa, pois Deus não pode ser conivente com uma religião tecida de interesses e egoísmos. Jesus não pode ver ali a “nova família de Deus” que começou a formar com seus seguidores.

A “religiosidade” de Jesus é radical porque se fundamenta na comunhão. Historicamente temos comprovado que as religiões normalmente separam, dividem, marginalizam, excluem, condenam. Daí tanta intolerância e violência religiosa.

De fato, o poder religioso é o mais nefasto e o mais desumanizador quando transforma a religião em um sistema opressor dos seres humanos, e é utilizada por aqueles que detém o controle dela para dominar as pessoas com argumentos religiosos (pecado, demônio, inferno, medo da condenação eterna...). Assim tem sido durante muitos séculos e em muitas culturas e civilizações.

O projeto de Jesus é radicalmente diferente do projeto da religião. Na realidade, Jesus não estava preocupado em fundar uma nova religião. Nem os primeiros cristãos consideravam o seguimento de Jesus como uma religião, mas como um “caminho” (eram conhecidos como seguidores do “caminho”), um projeto de vida, um modo de viver. Para uns eram considerados uma “seita”, para outros, como “ateus”.

Literalmente falando, podemos dizer que Jesus não “fundou” uma religião, mas Ele é o fundamento da religião cristã. O que, com certeza, se pode afirmar é que deslocou a religião: tirou-a do “espaço sagrado” e a colocou “na vida”, nas relações amorosas de uns para com os outros, no espírito de serviço compassivo para com os mais sofredores.  Por isso, a única fez que o NT utiliza a palavra “religião” é para dizer que ela consiste em “cuidar dos órfãos e viúvas em suas necessidades e em não se dei-xar contaminar pelo mundo” (Tg. 1,27).

Da mesma maneira, quando o NT exorta os cristãos a pôr em prática o ato central da religião, o “sacri-fício”, afirma que os sacrifícios que “agradam a Deus” são a “solidariedade e fazer o bem” (Heb 13,16). O NT desloca a religião, do “sagrado” ao “cotidiano”, dos ritos às relações entre as pessoas.

A religião daqueles que seguem a Jesus deve estar sempre a serviço do Reino de Deus e sua justiça.

 

Texto bíblico:  Jo 2,13-25

 

Na oração: O gesto “indignado” de Jesus no Templo deve despertar em nós, seus seguidores, uma pergunta

                   provocativa:  quê religião estamos cultivando em nossos templos?

- Temos de revisar se nossas comunidades cristãs são um espaço onde todos possam se sentir acolhidos na “casa do Pai”; uma comunidade acolhedora onde não se fecham as portas a ninguém e onde não se exclui nem discrimina ninguém; uma casa onde todos aprendem a escutar o sofrimento dos mais desvalidos e não o próprio interesse; uma casa onde todos podem invocar a Deus como Pai porque todos se sentem seus filhos e buscam viver como irmãos (cf. Pagola).

- Considerar se o templo de nosso coração é realmente “casa de oração”, “casa de encontro com Deus e comu-nhão com os outros”, ou antes, uma espécie de “feira” onde compra-se, vende-se e negocia-se de tudo.

Se olharmos para nossa interioridade, podemos cair na conta de que carregamos uma quantidade de “bois, ovelhas, pombas e mesas de cambistas” que tornam nossa vida pesada e auto-centrada. Como se sentiria Jesus ao visitar nossos corações?

 

 

 
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