Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

SOMOS SERES TRANSFIGURADOS..., E NÃO SABÍAMOS”


“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)

O relato da Transfiguração não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência”  ou “profundidade” que os impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente transfigurado.
A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Mas foi durante sua oração no monte que Jesus deixou transparecer sua identidade mais profunda e escondida; algo que os seus discípulos não podiam captar no ritmo da vida cotidiana.

Quê fazia de Jesus um “homem transfigurado?” Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o Pai...
Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
Jesus nos dá a medida do humano: ser pessoa compassiva e comprometida com os demais. É precisa-mente na condição humana de Jesus onde podemos conhecer quem é Deus e como é Deus.
Mais ainda, é na entranhável humanidade de Jesus onde compreendemos a profunda e desconcertante humanidade de Deus.
Sua humanidade e sua divindade se expressavam cada vez que Ele se aproximava das pessoas, especi-almente as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida.
Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva. Por isso, é preciso “escutá-Lo”.
Escutar o “Filho amado” é transformar-se n’Ele e levar uma vida comprometida, semelhante à d’Ele, ou seja, empapar-se do “modo” como Ele humanamente viveu.

A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
Somos todos “pessoas transfiguradas”..., mas desconhecemos essa realidade surpreendente.
Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele.
Jesus continua se “transfigurando” na montanha interior de cada um de nós.
N’Ele, encontramos “indicações” que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do amor, da compai-xão, da confiança, do silêncio, da coragem, da experiência de Deus...
A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro. Transfigurar é ativar todas as possibilidades de vida para que ela se torne oblativa.

Tal experiência também nos confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as coisas criadas” para além do meramente superficial.
O olhar habitual de nosso contexto pós-moderno não é precisamente esse, mas outro, caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós.
A Transfiguração possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.

Nesse sentido, “subir” ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade. A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Não se trata de ter a antena dirigida ao céu para esperar que dali venha algumas palavras para indicar o que devemos fazer. Trata-se de descobrir a voz de Deus no grito desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar.
“Humanizemo-nos!”  Esta é a voz d’Aquele que viveu permanentemente “transfigurado-humanizado”.

Aquele Monte (Tabor) é um espaço instigante, lugar alto de experiência radical de Jesus, para ver os pro-blemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva...
É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos a serviço dos “desfigurados” do mundo.
A espiritualidade cristã nos possibilita fazer a síntese entre o novo e o antigo, entre a interioridade e exterioridade, enfim, síntese entre a Transfiguração do Tabor e o cotidiano da vida comprometida com os desafios do vale. Sínteses profundas que nos educam para a “liberdade dos filhos de Deus” (Rom. 8,21).
A transfiguração de Jesus é como uma parábola que nos recorda: a vocação cristã é transfigurar o tempo e o espaço. É preciso transfigurar nossas relações humanas: passar de relacionamentos interesseiros a relações afetuosas e amáveis.
É urgente transfigurar a política, transformando o poder e a gestão da coisa pública em serviço ao bem-comum. É preciso transfigurar a natureza na comunhão do ser humano com o universo.
A Transfiguração do ser humano acontece no coração de cada um que crê. É Deus que nos transfigura, “mudando nosso coração de pedra em cora-ção de carne” (Ez. 36,26).

Texto bíblicoLc 9,28-36

Na oração: Na nossa vida de seguidores de Jesus não faltam momentos de
                     claridade e certeza, de alegria de luz. Ignoramos o que aconteceu no alto do Tabor, mas sabemos que na oração e no silêncio é possível vislumbrar algo de nossa identidade interior.
A oração nos transfigura e nos faz descer em direção à nossa própria humanidade e à humanidade dos outros.
Na vida de cada um de nós, como na vida de todo ser humano, certamente encontramos tempos especiais ou momentos privilegiados, cheios de sentido, embriagados de amor, de felicidade plena. Reviver estes momentos ou tempos nos fará bem: quais foram? Como aconteceram? Como os vivemos, que sentimos, porque acabaram? * Fazer um tempo de oração revisitando em sua memória essas vivências de “transfiguração”.


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO 
PARA A QUARESMA DE 2016

«“Prefiro a misericórdia ao sacrifício” (Mt 9, 13). 
As obras de misericórdia no caminho jubilar»

1. Maria, ícone duma Igreja que evangeliza porque evangelizada
Na Bula de proclamação do Jubileu, fiz o convite para que «a Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus» (Misericordiӕ Vultus, 17). Com o apelo à escuta da Palavra de Deus e à iniciativa «24 horas para o Senhor», quis sublinhar a primazia da escuta orante da Palavra, especialmente a palavra profética. Com efeito, a misericórdia de Deus é um anúncio ao mundo; mas cada cristão é chamado a fazer pessoalmente experiência de tal anúncio. Por isso, no tempo da Quaresma, enviarei os Missionários da Misericórdia a fim de serem, para todos, um sinal concreto da proximidade e do perdão de Deus.
Maria, por ter acolhido a Boa Notícia que Lhe fora dada pelo arcanjo Gabriel, canta profeticamente, no Magnificat, a misericórdia com que Deus A predestinou. Deste modo a Virgem de Nazaré, prometida esposa de José, torna-se o ícone perfeito da Igreja que evangeliza porque foi e continua a ser evangelizada por obra do Espírito Santo, que fecundou o seu ventre virginal. Com efeito, na tradição profética, a misericórdia aparece estreitamente ligada – mesmo etimologicamente – com as vísceras maternas (rahamim) e com uma bondade generosa, fiel e compassiva (hesed) que se vive no âmbito das relações conjugais e parentais.
2. A aliança de Deus com os homens: uma história de misericórdia
O mistério da misericórdia divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e o seu povo Israel. Na realidade, Deus mostra-Se sempre rico de misericórdia, pronto em qualquer circunstância a derramar sobre o seu povo uma ternura e uma compaixão viscerais, sobretudo nos momentos mais dramáticos quando a infidelidade quebra o vínculo do Pacto e se requer que a aliança seja ratificada de maneira mais estável na justiça e na verdade. Encontramo-nos aqui perante um verdadeiro e próprio drama de amor, no qual Deus desempenha o papel de pai e marido traído, enquanto Israel desempenha o de filho/filha e esposa infiéis. São precisamente as imagens familiares – como no caso de Oseias (cf. Os 1-2) – que melhor exprimem até que ponto Deus quer ligar-Se ao seu povo.
Este drama de amor alcança o seu ápice no Filho feito homem. N’Ele, Deus derrama a sua misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a Misericórdia encarnada (cf. Misericordiӕ Vultus, 8). Na realidade, Jesus de Nazaré enquanto homem é, para todos os efeitos, filho de Israel. E é-o ao ponto de encarnar aquela escuta perfeita de Deus que se exige a cada judeu pelo Shemà, fulcro ainda hoje da aliança de Deus com Israel: «Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças» (Dt 6, 4-5). O Filho de Deus é o Esposo que tudo faz para ganhar o amor da sua Esposa, à qual O liga o seu amor incondicional que se torna visível nas núpcias eternas com ela.
Este é o coração pulsante do querigma apostólico, no qual ocupa um lugar central e fundamental a misericórdia divina. Nele sobressai «a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado» (Evangelii gaudium, 36), aquele primeiro anúncio que «sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese» (Ibid., 164). Então a Misericórdia «exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar» (Misericordiӕ Vultus, 21), restabelecendo precisamente assim a relação com Ele. E, em Jesus crucificado, Deus chega ao ponto de querer alcançar o pecador no seu afastamento mais extremo, precisamente lá onde ele se perdeu e afastou d'Ele. E faz isto na esperança de assim poder finalmente comover o coração endurecido da sua Esposa.
3. As obras de misericórdia
A misericórdia de Deus transforma o coração do homem e faz-lhe experimentar um amor fiel, tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia. É um milagre sempre novo que a misericórdia divina possa irradiar-se na vida de cada um de nós, estimulando-nos ao amor do próximo e animando aquilo que a tradição da Igreja chama as obras de misericórdia corporal e espiritual. Estas recordam-nos que a nossa fé se traduz em actos concretos e quotidianos, destinados a ajudar o nosso próximo no corpo e no espírito e sobre os quais havemos de ser julgados: alimentá-lo, visitá-lo, confortá-lo, educá-lo. Por isso, expressei o desejo de que «o povo cristão reflicta, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina» (Ibid., 15). Realmente, no pobre, a carne de Cristo «torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós» (Ibid., 15). É o mistério inaudito e escandaloso do prolongamento na história do sofrimento do Cordeiro Inocente, sarça ardente de amor gratuito na presença da qual podemos apenas, como Moisés, tirar as sandálias (cf. Ex 3, 5); e mais ainda, quando o pobre é o irmão ou a irmã em Cristo que sofre por causa da sua fé.
Diante deste amor forte como a morte (cf. Ct 8, 6), fica patente como o pobre mais miserável seja aquele que não aceita reconhecer-se como tal. Pensa que é rico, mas na realidade é o mais pobre dos pobres. E isto porque é escravo do pecado, que o leva a utilizar riqueza e poder, não para servir a Deus e aos outros, mas para sufocar em si mesmo a consciência profunda de ser, ele também, nada mais que um pobre mendigo. E quanto maior for o poder e a riqueza à sua disposição, tanto maior pode tornar-se esta cegueira mentirosa. Chega ao ponto de não querer ver sequer o pobre Lázaro que mendiga à porta da sua casa (cf. Lc 16, 20-21), sendo este figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a nossa conversão. Lázaro é a possibilidade de conversão que Deus nos oferece e talvez não vejamos. E esta cegueira está acompanhada por um soberbo delírio de omnipotência, no qual ressoa sinistramente aquele demoníaco «sereis como Deus» (Gn 3, 5) que é a raiz de qualquer pecado. Tal delírio pode assumir também formas sociais e políticas, como mostraram os totalitarismos do século XX e mostram hoje as ideologias do pensamento único e da tecnociência que pretendem tornar Deus irrelevante e reduzir o homem a massa possível de instrumentalizar. E podem actualmente mostrá-lo também as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a vê-los.
Portanto a Quaresma deste Ano Jubilar é um tempo favorável para todos poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da Palavra e às obras de misericórdia. Se, por meio das obras corporais, tocamos a carne de Cristo nos irmãos e irmãs necessitados de ser nutridos, vestidos, alojados, visitados, as obras espirituais tocam mais directamente o nosso ser de pecadores: aconselhar, ensinar, perdoar, admoestar, rezar. Por isso, as obras corporais e as espirituais nunca devem ser separadas. Com efeito, é precisamente tocando, no miserável, a carne de Jesus crucificado que o pecador pode receber, em dom, a consciência de ser ele próprio um pobre mendigo. Por esta estrada, também os «soberbos», os «poderosos» e os «ricos», de que fala o Magnificat, têm a possibilidade de aperceber-se que são, imerecidamente, amados pelo Crucificado, morto e ressuscitado também por eles. Somente neste amor temos a resposta àquela sede de felicidade e amor infinitos que o homem se ilude de poder colmar mediante os ídolos do saber, do poder e do possuir. Mas permanece sempre o perigo de que os soberbos, os ricos e os poderosos – por causa de um fechamento cada vez mais hermético a Cristo, que, no pobre, continua a bater à porta do seu coração – acabem por se condenar precipitando-se eles mesmos naquele abismo eterno de solidão que é o inferno. Por isso, eis que ressoam de novo para eles, como para todos nós, as palavras veementes de Abraão: «Têm Moisés e o Profetas; que os oiçam!» (Lc 16, 29). Esta escuta activa preparar-nos-á da melhor maneira para festejar a vitória definitiva sobre o pecado e a morte conquistada pelo Esposo já ressuscitado, que deseja purificar a sua prometida Esposa, na expectativa da sua vinda.
Não percamos este tempo de Quaresma favorável à conversão! Pedimo-lo pela intercessão materna da Virgem Maria, a primeira que, diante da grandeza da misericórdia divina que Lhe foi concedida gratuitamente, reconheceu a sua pequenez (cf. Lc 1, 48), confessando-Se a humilde serva do Senhor (cf. Lc 1, 38).
Vaticano, 4 de Outubro de 2015
Festa de S. Francisco de Assis
Francisco


Homilia Dominical - 14 de fevereiro de 2016

NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO

“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito”  (lc 4,1)

Segundo a tradição, a primeira imagem da tentação foi uma maçã: uma fruta vermelha, carnosa, saborosa  e brilhante. Seu atrativo aroma penetrou até os tutanos de nossos ancestrais e eles caíram na armadilha da superficialidade.
Atrai-nos a superfície das coisas, justamente aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial continua sendo superficial e o reco-nhecimento, o prestigio, o aplauso ou o acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim florido e consolo nas gretas de nossos desertos.
Livra-nos Senhor desses “espelhismos” que prometem vida e escondem o vazio!

Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode ser encontrado em nosso interior.
Quem não se deixa conduzir pelo Espírito, não é capaz de acessar a própria interioridade, permanece na superfície de si mesmo e se deixam enredar pelos estímulos externos.
Muitos já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço, a água viva, a energia, as certezas para viver.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo. Seduzido por estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido:  o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).

O Evangelho de hoje insiste que Jesus se deixa conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma inte-gração a partir de seu coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas.
Tradicionalmente, as tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que Jesus nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas.
Tal interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de Jesus”.
Elas não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto interior, de crise.
A “crise” põe à prova sua atitude frente ao Pai: como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente sua Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade aos mais excluídos?

Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o coloque pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e reparti-lo entre todos.
Em vez de seduzir o povo com prodígios e espetáculos, Jesus prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e caminhos, na convivência criativa e nos encontros humanizadores.
Jesus não buscará o poder da dominação política e da imposição pela força. Preferirá o caminho do servi-ço. O caminho de Jesus é absolutamente novo. Nem impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do ser humano. Só servir.
Aqui  também é preciso nos perguntar:
* Qual é a nossa provação? qual é a nossa tentação? O que é que nos seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que nos afasta do melhor de nós.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito que dilacera a existência por dentro.
Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso para o alto, para a plena liberdade, para o compro-misso e a fraternidade. Mas por outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a fraqueza, toda sorte de limitações... que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a sedução  e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.

Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior (um de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordena-da) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Às tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo.

Texto bíblico:  Lc 4,1-13  

Na oração: A oração sobre as “tentações de Je-
                      sus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles ele-mentos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o  prestígio. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alterida-de desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida? Na aparência ou no interior?










4a. feira de cinzas

QUARESMA DA MISERICÓRDIA


“Cuidado! Não pratiqueis vossa justiça na frente dos outros, só para serdes notados”  (Mt 6,1)

Em meio a um mundo desumanizado e sacudido pela violência, lutas fraticidas, intolerância e egoísmo e-xacerbado, o papa Francisco nos convida a viver um Jubileu extraordinário, colocando a Misericórdia no centro de nossas vidas e respondendo ao chamado que Cristo nos faz: “sede misericordiosos como o Pai”.
De maneira especial, o tempo Quaresmal pode ser um momento privilegiado para que deixemos trans-parecer no mundo a missão de testemunhas da Misericórdia de Deus Pai-Mãe.

A Quaresma pode ser o ponto de partida de uma transformação de vida; os quarenta dias de duração são um tempo propício para viver a “operação saída”, ou seja, expandir a vida em novas direções, rompen-do com aquilo que é rotineiro, estreito e atrofiante. Se, nesse tempo, algo calar fundo, o ano se tornará pequeno para aquele que vive uma existência com mais intensidade, coerência e solidariedade.
Este tempo litúrgico especial certamente mobilizará e ativará todas as dimensões de nosso ser: nossos sentidos se expandirão, olhando, escutando e sentindo a realidade que nos envolve; nossa mente tornar-se-á mais clara, sabendo discernir e não se deixando manipular; nosso coração se fará mais atento e mise-ricordioso diante do sofrimento humano; nossa alegria que será o fermento do pão cotidiano, compartilha-do com os outros. E se dedicarmos mais tempo ao silêncio e à oração, recobraremos energia e sentido, necessários para sair da “normose doentia” de todos os dias.

A Igreja nos proporciona este momento litúrgico como parada estratégica em meio à voracidade do cami-nho e perguntar-nos se vivemos como realmente desejamos viver; se haverá algum reajuste necessário para re-orientar nossos passos de maneira mais acertada, para estabelecer uma harmonia entre cabeça e coração, desejos e hábitos. A Vida de Jesus, testemunhada nos evangelhos, nos convida a viver de um modo mais integrado.
Somos o que somos graças a essa matriz de relações que nos conecta conosco mesmos, com os outros, com o Outro e com as criaturas. Não nos estranhará, então, que a liturgia nos convide a  perguntar a nós mesmos  como nos relacionamos com nossos desejos/impulsos/decisões (jejum), como consideraos os nossos semelhantes (esmola) e como cuidamos de nossa amizade com Deus (oração).
Neste perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e esmola), encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo. Não é preciso estar publican-do no Facebook ou no WhatsApp cada pequeno passo adiante. De fato, nos diz Jesus: “Vosso pai, que vê no segredo, vos recompensará”.
Neste ano em que celebramos o Jubileu extraordinário da Misericórcia, as práticas quaresmais que a liturgia busca ativar (oração, jejum e esmola) vão mais além de nós mesmos: elas devem ter impacto na relação com os outros, em especial com aqueles que mais sofrem e se encontram mais excluídos.

Com a Quarta-feira de Cinzas damos início à Quaresma e entramos num movimento de discernimento: de quê jejuar e com quê saciar-nos nesse tempo litúrgico? Mais que jejum de alimento e bebida, podemos jejuar de soberba, de vaidade, de consumismo, de fazer-nos centro de tudo, de ativismo, de afetos desor-denados (smarts, internet...), jejuar de desculpas frágeis e de distâncias, de indiferença e de frieza nos relacionamentos...
Tudo aquilo de que jejuamos, deixa um vazio imenso em nosso interior e que só o amor poderá preen-cher. O jejum ativa o dinamismo do amor que nos faz mais compassivos, solidários, misericordiosos...
Em definitiva, o jejum e a abstinência nos conduzem ao autocontrole e à autoestima e são sinônimos de desintoxicar-se, desconectar, desapegar-se, desprender-se... Ou seja, fazer tudo o que nos leve a ser pessoas mais equilibradas, autônomas e livres... que tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.

A esmola (“elemosyne”) sempre esteve ligada à compaixão e piedade. Quem partilha do que tem é com-passivo e misericordioso (“eleémon”). Trata-se, fundamentalmente, da inclinação para os desfavorecidos. A misericórdia (qualidade da esmola) é a atitude própria de quem tem um coração sensível à miséria do outro. Mantém indissoluvelmente unidos o sentimento de compaixão e ternura com a solidariedade efetiva. Está atenta à necessidade de cada pessoa, que em uns casos será econômica, em outras psicológica, em muitos afetiva...
A esmola – misericórdia em ação – é uma atitude central para o cristão. Uma das suas qualidades mais atraentes  é precisamente sua capacidade para criar laços de comunhão. Se cada um põe seus dons e bens a serviço dos outros e se deixa socorrer em suas necessidades, criará verdadeira comunidade.

A oração nos ajuda a amar a Deus e a colocá-Lo como centro de nossa vida. A vivência da oração e de todas as práticas associadas a ela, como o silencio, a solidão, a reflexão, a “consciência plena”, a meditação bíblica, a participação na liturgia da comunidade, a leitura de um livro de espiritualidade..., nos preparam e nos ajudam a entrar em sintonia com a ação de Deus no mais profundo de nosso ser.
Quando oramos, conhecemos e amamos mais a Deus, sentimos sua misericordiosa presença em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa vida interior, somos menos artificiais, nos fixamos mais naquilo que nos é dado continuamente como graça, vivemos em contínua gratidão por estarmos rodeados de tanta ternura e beleza, mesmo em meio às situações conflitivas, despertamos empatia para com aqueles que mais sofrem, recobramos novo ânimo para ajudá-los, somos conscientes de nossa fragilidade e pequenez, ao mesmo tempo que cresce em nós a percepção de nossa maravilhosa dignidade de filhos ou filhas de Deus.

À luz da misericórdia, a esmola, a oração e o jejum não são cargas pesadas sobre nossas costas neste tempo quaresmal e que podemos esquecê-las dentro de algumas semanas. Não são um evento, mas um modo de proceder que tem ressonância na nossa vida. Por isso mesmo, tais práticas quaresmais são uma autêntica revolução e uma alternativa para viver com sentido.
Aqueles que se empenham pacientemente em dar à sua vida um perfil mais evangélico acabam se depa-rando com o valor do pequeno e do que não é osten-toso, daquilo que nasce do mais profundo e que tem a autenticidade das coisas verdadeiras.
Esse é o movimento de vida despertado pelo tempo quaresmal.

Texto bíblicoMt 6,1-6.16-18

Na oração: A oração é o lugar onde se pode indicar “o
                    escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde buscamos ter acesso ao nosso tesouro mais apreciado, aquele que não pode ser arrebatado à força e não pode ser comprado por nenhum valor, embora podemos facilmente perdê-lo.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Homilia Dominical - 7 de fevereiro de 2016

ALARGAR ESPAÇOS, SAIR ÀS MARGENS

 “Subiu num dos barcos e pediu que se afastasse um pouco da terra” (Lc 5,3)

Jesus entrou em conflito com o mundo religioso da sinagoga. A Lei, que se expressava em inumeráveis preceitos minuciosos, fragmentava a existência, atrofiava a criatividade e não representava vida nova para o povo. A novidade de Jesus não cabia nos moldes da sinagoga, e começou a buscar outros espaços onde criar a vida expansiva do Reino, elaborar novos sinais e cunhar novas palavras.
O “outro lado”, para Ele, passa a ser terra privilegiada, onde nasce o “novo” por obra do Espírito.
Ali aparece o broto germinal do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se uma denúncia ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida. Isso vai gerar uma manei-ra nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia...
Uma multidão vinda de todas as partes o seguiu até à beira do lago de Genesaré, e Jesus pediu a seus discípulos que tivessem uma barca preparada, pois o povo o apertava, porque tinha curado a muitos. O povo acorre onde há vida nova que estremeça sua letargia.
Jesus se afasta do centro, da sinagoga e busca as margens do lago. E ali desencadeia um “movimento humanizador”: vida destravada e abundante, horizonte de sentido, relações de comunhão...

Encontrando-se em meio a um mundo em efervescência, Jesus lançou por terra as paredes e os muros dos templos e sinagogas e mergulhou no mar espaçoso da vida cotidiana. Ele alcançou sua plenitude humana precisamente porque foi capaz de “transgredir” o que estava estabelecido e abrir-se à universalidade de todas as terras, de todos os povos, sem distinção de raças, condição social... Seu itinerário não foi única-mente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um “modo de viver” e de situar-se no mundo. Ele se fez presente nos lugares socialmente rejeitados, lugares de exclusão e da marginalidade, e ali revelou a presença d’Aquele que se faz presente e santifica todos os lugares: o Pai.
Jesus, na Galiléia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens...
Ele se fez presente nos lugares onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados” e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado.
Na Galiléia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares ou os excluem dos “lugares sagrados”.
Jesus transitou livremente por diferentes espaços; o deserto foi para ele um espaço necessário de solidão e de oração, onde, na intimidade com o Pai, alimentava a originalidade de sua pessoa e de sua missão.
As margens do lago constituíam a trama da vida cotidiana, lugar de trabalho, de mercado, de encontros.
As margens das cidades situavam-no frente à vida descartada, excluída, enferma ou fracassada.
A montanha foi um lugar de perspectiva em momentos especiais de mudança, como a eleição dos Doze, a apresentação das Bem-aventuranças ou a Transfiguração no caminho para a Páscoa.

Jesus não se move preso aos espaços do Templo, mas vive aberto à surpresa e ao dinamismo do Reino, que irrompe como graça no centro da vida cotidiana. Em seus deslocamentos descobre, nas margens do lago e nas aldeias dos camponeses, que os homens e mulheres considerados os excluídos e os sem lugares são os verdadeiros criadores de uma nova realidade, os reais protagonistas, construtores de um mundo novo, sal nos paladares desanimados e luz nas noites escuras da humanidade e da história.
Com sua presença inspiradora e provocativa, Jesus alarga os espaços e os corações das pessoas: ao entrar no barco, este deixa de ser simples instrumento de pesca para ser lugar do anúncio; Ele amplia o rotineiro modo de pescar (“lançai as redes em águas mais profundas”); por fim, desafia aqueles rudes pesca-dores a deixarem aquele atrofiado mar e entrar no vasto oceano da vida (sereis pescadores do huma-no”). Do mar da Galiléia ao mar da vida: este é o movimento que Jesus desperta nas pessoas.
Ele continua desafiando a que cada um mergulhe mais fundo no oceano do coração e ali ative os recursos ainda escondidos: novos sonhos, novas possibilidades, nova inspiração, novo sentido para a existência...
Para isso, é preciso vencer o medo que atrofia tudo o que é humano em nós e entrar no movimento expansivo de Jesus.

Onde estão os espaços de nossa missão e de nossa presença? Em quê margens da sociedade, da econo-mia, da cultura...,  devemos nos situar para aí descobrir a novidade de Deus que nos desinstala e nos abre um futuro iluminador? Onde estão os espaços de solidão e de silêncio, de desintoxicação de informações, de encontro com o mais profundo de nós mesmos, por onde surge a palavra única que Deus nos dirige, integrando-nos como pessoas e expandindo-nos a uma presença mais criativa na realidade?

O profeta Isaías nos recomenda ampliar este “espaço interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2).
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade e abertura às novas idéias e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abra-sados e iluminados pela força do Espírito, começam a romper as paredes e se encarnam em “espaços exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: espaço familiar, espaço celebrativo, espaço es-portivo, espaço de convivência... um espaço nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Não tem sentido ampliar os espaços externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada...
Espaço amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande... ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos.
Deus nos chama cada dia, nos tira de nosso estreito mar, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodidade... e nos faz entrar numa “terra nova”. A “travessia” ativa e revela o que há de melhor em cada um de nós. Igualmente, com nossa presença expansiva e inspiradora seremos também capazes de “pescar o humano” que está escondido no outro.
Somos desafiados a “viver uma vida no mundo e no coração da humanidade” (Pe. Kolvenbach).
Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares” estreitos e seguros: há sempre um “lu-gar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço limitado” a ser ampliado...

Texto bíblicoLc 5,1-11

Na oração: Para S. Inácio, os lugares nascem na imaginação;
                   nos Exercícios Espirituais, ele nos convida, através do preâmbulo “composição vendo o lugar”, a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença.
A “composição vendo o lugar” desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e inten-sidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar  do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares e que nos conduz para o “lugar” da plenitude.
Da imaginação para a realidade, da oração para a ação..., uma travessia dos “nossos mares estreitos” para os “amplos lugares cristificados”.
Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
O “lugar externo” é o prolongamento do lugar saboreado internamente.


Homilia Dominical - 3o. Domingo Comum

JESUS, “O HOMEM EMBRIAGADO COM A PALAVRA


“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca” (Lc 4,22)

 “Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, criamos pontes, abrimos horizontes e chegamos a lugares jamais imaginados ou tocados pelos nossos pés.
Quando não existe a troca de palavras, ditas e ouvidas, a vida é mutilada nas suas expressões mais vitais, as espirituais. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana.

A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne.
Chegada a plenitude dos tempos, Deus disse sua Palavra definitiva e insuperável em Jesus. 
Ele, em sua vida e missão, prolonga a Palavra criativa de Deus; começa a falar uma Palavra sedutora a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica.
Palavra encarnada, Jesus sintoniza e ajusta sua palavra à palavra do Pai.
Com sua vida e sua palavra, Jesus interrompe o discurso dos especialistas sobre Deus. A surpresa, o desapontamento e o conflito que Jesus provocou, ensaiam cada dia novas palavras e novos gestos.
Seu ensinamento, cheio de “autoridade” introduz uma perspectiva nunca ouvida antes; apresenta uma alternativa que as pessoas mais simples do povo entendem como revelação do Pai aos pequeninos.
No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.
A partir das periferias do mundo surge um canto de vida nova, a sabedoria oculta a muitos sábios e expertos. É uma sabedoria que vem de Deus, desconcertando a sabedoria exibida a partir do centro.
Suas palavras revelam uma força “re-criadora”, que é o sentido belo do viver; através delas Jesus põe em movimento a realidade, reconstrói pessoas feridas em sua dignidade, comunica saúde onde há enfer-midade, faz emergir a vida onde impera a morte.

As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras.
Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Suas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento...

É preciso, a partir do encontro com Jesus Cristo, “sentir” a palavra que proferimos a cada instante; veri-ficar se a palavra pronunciada procura traduzir a palavra interior, se sabemos “empalavrar”, ou seja “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior.
Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, as-pirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade: a gestua-lidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da pala-vra humana. Os comportamentos éticos e os valores também são formas de “empalavramento”.
As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento...
Não possuímos nada que tenha, ao mesmo tempo, o poder e a leveza das palavras.
Em todos os lugares aonde vamos somos cercados por elas; palavras murmuradas com suavidade, proclamadas em altas vozes ou berradas irritadamente; palavras faladas, recitadas ou cantadas; palavras em sites, em livros, em muros ou no céu; palavras de muitos sons, muitas cores ou muitas formas; palavras para serem ouvidas, lidas, vistas ou olhadas de relance; palavras que oscilam, que se movem devagar, dançam, pulam ou se agitam.
As palavras podem mudar a vida, para o bem ou para o mal. Há palavras que ferem e há palavras que curam. Há uma palavra que constrói e uma que destrói, uma palavra que comunica calor e luz, outra

que semeia frieza, uma que infunde confiança, outra que arrasa...
As palavras nos tocam e nos modelam; às vezes, elas nos tocam como brisa suave, outras vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: sentimentos de a-legria ou tristeza, de paz ou inquietação, de fé ou descrença, de amor ou ódio...
Há uma palavra pela qual tudo começa e re-começa, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas palavras, não resta mais nada a dizer.
Todos conhecemos pessoas destruídas pelas palavras, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo toque das palavras. A palavra tem uma força reconstrutora.

As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de “pa-pos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidên-cias tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”.
Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas litur-gias, na Internet, nas redes sociais... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.
Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Elas são atrofiadas, manipuladas ou submetidas a um violento  esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
Quem sabe articular  silêncio e  palavra é um verdadeiro artífice da vida.

Texto bíblicoLc. 4,21-30 

Na oração: Percorrer as palavras proferidas, normalmente, ao
                    longo do dia: são palavras que elevam? curam?
animam? Palavras marcadas pela esperança? Palavras carre-gadas de sentido? Palavras criativas?
Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reve-ladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
- Busque palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há atrás de suas palavras, de seus
  sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.








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