Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

terça-feira, 28 de julho de 2015

Homilia Dominical - 2 de agosto de 2015

FOMES QUE NOS HABITAM


“Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna e que o Filho do homem vos dará” (Jo 6,27)

Com o evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida,  que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia.. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada Discurso do Pão da Vida, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz avida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.

Com frequência, a existência humana parece uma corrida em busca daquilo que nos sacia de um modo definitivo. Nesta corrida, entram elementos que nos são familiares: necessidade, ansiedade, vazio, busca, insatisfação... Todos eles, à primeira vista, remetem à percepção de nós mesmos como seres carentes. Seria, pois, essa carência aquela que desencadearia todo o processo de busca.
De fato, o ser humano é um ser insaciável, insatisfeito... vive eternamente buscando, muitas vezes sem saber o quê. Em contato com o seu interior, sente a necessidade de preenchê-lo a qualquer preço; na maioria das vezes, preenche-o com “coisas”: busca de poder, posses, prestígio, pão que se perde... e sente-se frustrado, porque nada  lhe satisfaz. Só o Pão vivo pode preencher seu interior.
- “Mas a fome de Deus que eu levo comigo não conhece descanso: ela é exigente! Então eu sigo...
    Ela é tremenda e persistente! Então eu sigo... cada vez mais para frente!
    Ela é constante e forte! Então eu sigo... Até à morte” (C. de M. Doherty).

Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos...
Carrega dentro de si a fome do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz.
Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele... não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”...
Ele é desafiado a deixar a superfície banal e navegar águas profundas da sua própria existência.

A conversa de Jesus com o povo, com os judeus e com os discípulos é um diálogo bonito, mas exigente. Jesus procura abrir os olhos das pessoas para que aprendam a ler os acontecimentos e descubram neles o rumo que deve tomar na vida. Pois não basta ir atrás de sinais milagrosos que multiplicam o pão para saciar uma carência corporal. Não só de pão vive o ser humano.
O empenho em favor da vida sem uma mística não alcança a raiz.
Enquanto vai conversando com Jesus, as pessoas vão ficando cada vez mais contrariadas com as palavras dele. Mas Jesus não cede, nem muda as exigências. O discurso parece um funil. Na medida em que a conversa avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar com Jesus. No fim só sobram os doze, e nem assim Jesus pode confiar em todos eles!
É quase sempre assim: quando o evangelho começa a exigir compromisso, muita gente se afasta.

Jesus, com sua presença e seus ensinamentos, desperta outras “fomes”: transcendência, novas relações,  horizontes abertos, mundo da partilha...
O discurso do Pão da Vida desvela esta realidade: o ser humano é surpreendente, inesperado, impre-visível... é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é uma mina de significados e riquezas. Ele é seduzido pela liberdade que lhe escancara horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável.
Ele é chamado a superar medos, a escolher rumo construtivo, a definir sua identidade pessoal e a optar por causas humanas que o fazem transcender.
O ser humano pode transcender-se, ir além de si mesmo...transcender não significa fugir da própria realidade, mas mergulhar na própria condição humana; “transcender é humanizar-se”.
O impulso de “ir além” é talvez o desafio mais secreto e escondido no ser humano. Ele se recusa a aceitar a realidade na qual está mergulhado porque se sente maior do que tudo o que o cerca.
Com seu pensamento, desejo e sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções. Ele tem fome e sede de amplos horizontes.
“Entrar”  no caminho de Cristo é viver em “terra de andanças”.

O discurso de Jesus toca naquilo que é mais humano em nós: mundo dos desejos, dos sonhos, as grandes intuições... Tal apelo vem ao encontro deste dinamismo humano para potencializá-lo e abrir uma nova perspectiva: aquela centrada na pessoa e no projeto de Jesus Cristo.
Desejamos, com intensidade, com fome, com paixão, com alegria e júbilo... Somos capazes de desejar com a urgência das crianças, com a impertinência dos adolescentes, com a intensidade dos jovens, com a perspectiva dos adultos e com a sabedoria dos anciãos. Desejamos porque estamos vivos e porque somos capazes de imaginar e sonhar: mundos melhores, vidas melhores, relações melhores...
O desejo é também um dos pilares nos quais se sustenta a fé. Crer é desejar.
O desejo nos ajuda a elevar o olhar para além do imediato; podemos sair do cotidiano, do mais prosaico, e lançar a vista e o coração ao que é possível mas que ainda não está presente. Se caminharmos com olhar fixo somente no imediato, no hoje, no aqui e agora, então nos faltará perspectiva para dirigir nossos passos para algum lugar que valha a pena.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua alma, sonhos de rara beleza. São desejos de convivialidade, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e harmonia... Era certamente nessa direção que Jesus apontava ao falar do Pão da Vida,  como o mundo das esperanças e possibilidades. “Um outro mundo é possível”.
É preciso forte dose de ousadia e coragem para transcender-se, ir além de si mesmo...
Texto bíblico:  Jo 6,24-35

Na oração: * deixe-se conduzir pela “fome e sede” de

                       Deus que está enraizada em seu coração;

                     * faça o possível para estimular esta fome,
                      entregando-se a ela;
                      * esteja certo de que esta “inquietação” tem sua resposta no Amor de Deus, presente na Criação;
 * Quê desejas, pensando a longo prazo?
 * A quê aspiras na vida e nas relações de hoje?





segunda-feira, 20 de julho de 2015

Homilia Dominical - 26 de julho de 2015

DESLOCAMENTO PARA OS ‘SANTOS LUGARES’ DOS POBRES


 “Jesus foi para o outro lado do mar da Galiléia, também chamado de Tiberíades” (Jo 6,1)

O Evangelho de hoje nos traz esta revelação: não podemos resolver as coisas a partir desta margem, se não vemos as coisas também a partir da outra, sem arriscar-nos a fazer a travessia em direção a terras novas, ao encontro de outros povos e culturas, para aprender e compartilhar com eles a missão em favor da vida.
Frente àqueles que queriam fechar-se no interior da comunidade, João insiste que o evangelho devia expandir-se numa marcha arriscada de entrega criadora, descobrindo comunidades e formas de vida novas, para recrear, a partir delas, o Evangelho.
Afinal, Jesus desencadeou um “movimento” e o Evangelho não é para os que estão “sentados”, acomo-dados, como quem maneja o televisor com o comando à distância; não é o Evangelho para os que “esperam” a que outros “venham”, mas Evangelho para “fazer estrada”, viver em atitude de “saída” para buscar, sair ao “encontro”... É o Evangelho para velejadores ousados e que se sentem inspirados a “fazer a travessia”. Para proclamar o Evangelho é preciso sair dos lugares conhecidos, estreitos e rotineiros... e abrir-se às surpresas dos “lugares novos”.

“Passar para a outra margem”: esta deve ser a expressão chave que nos mobiliza e dá sentido ao nosso seguimento de Jesus. São muitos os que querem que a Igreja continue fechada em seu legalismo-moralismo-ritualismo, apesar do movimento ativado pelo Vaticano II e apesar dos insistentes apelos do Papa Francisco. Muitos querem que o cofre do Evangelho se conserve onde sempre esteve, sob sete chaves... Mas Jesus nos diz de novo e com veemência: “ide para a outra margem”. Ele nos convida e nos anima a ir “mais além” do conhecido e do trilhado, para o “outro lado”.
Como humanos tendemos a nos instalar, acomodando-nos naquilo que conseguimos. Facilmente nos acostumamos ao conhecido e nos deixamos embalar pela rotina que evita sobressaltos e nos confere uma certa sensação de segurança e conforto.
E isto ocorre também com nossas idéias, crenças, atitudes, visões...  Acostumados a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, nos custa abrir-nos a outros ângulos novos ou desconhecidos.
Preferimos, quase sem nos dar conta, permanecer instalados “na margem” conhecida, habitual, costumei-ra. É a preferida de nossa mente e de nossa sensibilidade, pela simples razão de nos ser familiar e nos trazer tranquilidade.
Trata-se de uma atitude em princípio compreensível, mas comporta um risco importante: ficar reduzidos a uma visão estreita e afogados em uma vida “normótica”, uma vez que nos fechamos a qualquer possível saída..., sobretudo quando atingimos um “bem-estar” que se prolonga.

Dizem que, ao pintar uma paisagem, os artistas a olham dobrando-se e pondo a cabeça entre as pernas abertas, por mais incômodo que seja a pos-tura, porque assim se libertam da visão “oficial” do conjunto que todos vêem quando estão de pé, e descobrem novos ângulos, perspectivas não usuais e a surpresa do novo no molde antigo.
Isto acaba sendo a maneira de ver as coisas por outra perspectiva. É o segredo da arte, da vida e das decisões bem tomadas. Um enfoque novo sempre proporciona um ponto de referência melhor para uma avaliação independente, seja de linhas e cores, seja de opções e atitudes de vida.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma sadia vivência do Evangelho.

Jesus, no Evangelho de hoje, convida os seus discípulos a saírem de seus lugares para ver as coisas a partir de um novo ângulo: o ângulo dos margi-nalizados. A mudança de perspectiva possibilita um novo olhar e abre caminho para perceber outros aspectos que a “visão acostumada” não capta.
A “outra margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem limites. Mas só po-demos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar nossos rotineiros pontos de vista e nossos caminhos trilhados, e nos entregar com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior” -, para que ative em nós a coragem e a ousadia de abrir-nos ao diferente.


Na realidade, quando tudo na vida se torna fácil, é mais provável que nos instalemos em nossas seguran-ças. Somente quando nossa vida é sacudida e colocada em crise é que conectamos com outro anseio mais profundo. Tal anseio podemos considerá-lo também como a voz de nosso “mestre interior” que nos dá paz, mas que não nos deixa em paz. Se não o afogamos com compensações nem o calamos com nosso ruído, escutaremos sua voz que nos anima a cruzar a “outra margem”.
Por isso, ao escutar estas palavras de Jesus, é provável que reconheçamos o “eco” que produzem em nosso interior, e que o convite a “sair” se torne familiar.

Se lemos os Evangelhos com um pouco mais de atenção veremos que Jesus está continuamente “passando para a outra margem” e convidando os seus seguidores a fazerem o mesmo.
Isto nos move a pensar que esta travessia não é apenas geográfica, não se trata de voltar ao lugar de onde saiu. Tem que haver algo mais profundo, ao menos um impulso à não instalação. Nenhuma margem pode converter-se em lugar de parada, todas são lugares de passagem.
Com Jesus estamos continuamente passando para outra margem, fazendo contínuas travessias em direção ao outro, não permanecendo fechados em nós mesmo; passar em direção ao outro como passagem necessária para passar em direção a Deus. Aquele que se instala, se perde. Temos de buscar sempre novos horizontes. Qualquer conquista obtida graças a Jesus é só um prelúdio, o vislumbre de uma conquista que não perece, e que só se consegue quando nos desapegamos das conquistas parciais.

Texto bíblico: Jo 6,1-15

Na oração: Se somos seguidores de Jesus não deveríamos mais falar de “marginalizados”, pois essa linguagem
                     indica que nos situamos no centro, “perto” de Deus e colocamos os outros distantes de nós e “longe” de Deus. Não se trata de buscar o outro entre os marginalizados, mas de deslocar-nos para a margem e colocar o outro no centro. Tal como Jesus, somos chamados a nos “fazer margem” para deixar-nos afetar e aprender com o outro que está do “outro lado”. O seguimento de Jesus é questão de deslocamento: em qual margem me situo? Aquela do centro, conhecida, que me dá segurança...? Ou aquela do diferente?




terça-feira, 14 de julho de 2015

Homilia Dominical - 19 de julho de 2015

COMPAIXÃO: TER UM CORAÇÃO NOS OLHOS 


“Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34)

Mais uma vez, Jesus e seus discípulos fazem a “travessia” pelo mar, em direção à “outra margem”; a multidão sai caminhando ansiosamente por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas as fomes, carências e desesperos. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita violência. Não é gente das cidades importantes. Diz o texto de Marcos que saíram “de todos os povoados” e foram “correndo”, com pressa, com expectativa e esperança, ansiosos por encontrar-se com Jesus. A cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império romano.

Ao ver a multidão, Jesus se comove até as entranhas, porque “eram como ovelhas sem pastor”.
Como em outras passagens do Evangelho, Jesus muda o plano de descanso desse dia para acolher a dor que surge de repente em seu caminho. Contempla as pessoas, e em sua maneira de se aproximar do povo está já encarnado em gestos, palavras e olhares, o Reino que anuncia.
Movido por sua compaixão, Jesus “começou a ensinar-lhes muitas coisas”. Sem pressas, se dedica pacientemente a ensinar-lhes a Boa Notícia de Deus e o projeto humanizador do Reino. Não o faz por obrigação; não pensa em si mesmo; comunica-lhes a Palavra de Deus, comovido pela necessidade que as pessoas tem de um pastor.
Jesus não vive olhando para o céu, mas tem os olhos bem fixos na terra, na humanidade sofredora. Por isso, nada lhe escapa, observa tudo. Seu olhar não é neutro: deixa-se afetar por tudo e por todos. E a realidade sofrida tem forte impacto em seu interior, comovendo-o.
Os discípulos precisam aprender de Jesus como devem tratar as pessoas; nas comunidades cristãs é preci-so recordar como era Jesus com essas pessoas perdidas no anonimato, das quais ninguém se preocupa.

A primeira coisa que o evangelista Marcos destaca é o olhar de Jesus. Não se irrita porque interromperam seus planos; olha a multidão  tranquilamente e se comove. As pessoas nunca lhe molestam. Seu coração intui a desorientação e o abandono em que se encontram, como camponeses daquelas aldeias.
“A fé não só olha a Jesus, senão que olha a humanidade a partir do ponto de vista de Jesus, ou seja, com seus olhos: é uma participação em seu modo de olhar” (Lumen Fidei, n. 18).
Jesus nos convida, no Evangelho de hoje, a fazer um exercício especial da visão. Destravar nosso olhar focado em nós mesmos, em nossos interesses e apegos, para expandi-lo em direção aos outros.
Todos os Evangelhos estão perpassados, de ponta a ponta, por um olhar. O olhar de Jesus que chama, conhece, cativa, derrama ternura e misericórdia, que vela, que se antecipa, que revela, que denuncia, que confirma e, também, que restaura. Olhar que o move a um compromisso libertador.

O olhar de Jesus ativa a identidade das pessoas. Olha de uma forma única e singular a cada uma, e nesse olhar des-vela quem ela é e ilumina o sentido de sua existência. O olhar de Jesus lança para frente, desper-ta a confiança, descarrega o peso da culpabilidade e “dá asas” à vida.  Por essa razão seu olhar eleva e dig-nifica o outro, nunca o deixa no mesmo lugar, não só o coloca de pé, mas sempre o leva para mais além...
O olhar de Jesus é reflexo e prolongamento do olhar do Pai; Ele se fixa sobretudo nas pessoas concretas, mas com particular atenção aos mais pobres e necessitados, os quais eram invisíveis para a sociedade de seu tempo: os enfermos, as viúvas, as crianças, o estrangeiro...
Olhar a partir de Jesus, olhar como Jesus, olhar a partir dos olhos daqueles que sofrem... É um convite a iluminar nosso olhar, às vezes muito apagado pela mediocridade de nossa vida; outras vezes opaco pela falta de esperança em nossa capacidade de levar adiante a missão que Jesus nos confia.

O olhar de Jesus atinge o mais profundo de todos nós e transforma nosso coração; e nosso olhar cristifi-cado nos leva mais além de nossos pré-juizos,  nos conduz a um mundo novo de possibilidades inéditas, descobre e revela o melhor de cada um de nós.
Jesus insiste: quem não está alerta, quem não abre bem os olhos, quem não afina a vista, o mistério divino lhe ficará oculto. No descobrir, no “olhar” as pessoas às quais costumamos excluir de nosso campo visual cotidiano, começa o vislumbre, a visibilidade de Deus entre nós... É aí onde encontraremos suas pegadas.


A mística cristã é uma mística de olhos dolorosamente abertos. Temos de aguçar a visão para sermos capazes de contemplar a Vida de Jesus entrelaçada com a história do sofrimento das pessoas.
Na Igreja precisamos aprender a olhar as pessoas como Jesus as olhava: captando o sofrimento, a solidão, o desconcerto ou o abandono que muitos sofrem. Somente este olhar solidário é que ativará a compaixão.
Esta não brota da atenção às normas, à doutrina ou a atenção às nossas obrigações. Ela se desperta em nós quando olhamos atentamente aqueles que sofrem e são excluídos.

Expressão de fraternidade e vivida como serviço, a compaixão é a capacidade de situar-se no lugar do outro, de sentir e sofrer com ele. Comporta um “estremecimento” frente o sofrimento alheio e se traduz numa ajuda eficaz. 
A compaixão é provavelmente o máximo grau de maturidade humana. Trata-se de uma das atitudes mais genuinamente humanas; não é casual que ocupe o lugar mais destacado nas grandes tradições espirituais.
No budismo, especialmente, afirma-se que, enquanto alguém não seja capaz de pôr-se no lugar dos outros, não poderá alcançar a iluminação.

Mas, o que favorece o emergir da compaixão? de onde ela nasce?
O sentimento de compaixão se vê favorecido pela experiência da nossa própria necessidade, fragilidade ou vulnerabilidade. Sem dúvida, ao apalpar a nossa própria limitação, nos “reconciliamos” com nossa huma-nidade, nos fazemos mais “humanos”. E, a partir daí, pode crescer a capacidade de ativar a empatia para com o outro, particularmente quando se encontra em situação de necessidade e precariedade.
Neste sentido, pode-se dizer que a experiência e a acolhida da própria fragilidade nos humaniza, nos “suaviza” e nos sensibiliza diante da dor alheia. A partir daí, a compaixão pode abrir caminho.
Além disso, o encontro com a compaixão de Jesus desperta a compaixão presente em nosso interior, mas abafada pelas preocupações e interesses do nosso ego.
A compaixão requer uma sensibilidade limpa e um afeto livre. Para poder “vibrar” com o outro, é necessário que nossa sensibilidade não esteja congelada nem petrificada; de outro modo, o sofrimento alheio chocaria contra nossa couraça, e seríamos incapazes de senti-lo.
Por outro lado, é necessário também que tenhamos liberado nossa capacidade de amar: o bloqueio da mesma nos manteria fechados, impedindo-nos “sair” positivamente em direção à pessoa que sofre.

Texto bíblicoMc 6,30-34

Na oração: Senhor, faça que meus olhos sejam claros e simples,
Que meu olhar reflita teu olhar.
Que meu olhar transmita alegria, paz, confiança...
Que eu olhe a vida com assombro e descubra a beleza escondida.
Que eu olhe delicadamente o mistério de cada ser humano.
Que eu me deixe afetar pelo olhar de dor, de busca, de esperança de cada irmão.
Que Tu olhes, Senhor, com meus olhos, os meus irmãos mais necessitados.
Olha-me, Senhor, em silêncio, e faz com que teu olhar percorra toda minha vida.
Que eu volte à vida com o sorriso de Deus em meus olhos. Amém!




terça-feira, 7 de julho de 2015

Homilia dominical - 12 de julho de 2015

O TEMPLO É A VIDA


“Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13)

A experiência de saúde está profundamente unida ao anúncio e inauguração do Reinado de Deus. A vida saudável pede não só saúde física, mas saúde emocional, espiritual, integração social...
Jesus, em sua pregação e realização do Reino, assumiu uma estratégia terapêutica que buscava fazer emergir o ser humano sadio. Com sua presença, despertava e ativava tudo o que era sadio em cada pessoa; esta era sua prioridade e não permitia que ela fosse solapada por outros interesses. Ele se interessava pela saúde como processo de crescimento da pessoa e onde há saúde o Reino faz-se presente
“Curar” e “libertar” eram atividades prioritárias na atuação de Jesus.
As verdadeiras curas e milagres de Jesus eram, antes de tudo, gestos de humanização evangélica, que mostravam que o dinamismo final do Reino implicava a destruição da enfermidade e da dor. As curas eram sinais libertadores, sinais da presença e proximidade do Reino.
Jesus não pregou saúde, mas gerou saúde, transformando a vulnerabilidade em possibilidade e provo-cando mudanças de atitudes e formas diferentes de viver.

Ao acessar o Evangelho de hoje, reconhecemos essa intuição original. O horizonte do envio dos discípu-los não é outro que o de favorecer a vida. A “autoridade sobre os espíritos imundos”  significa o compro-misso em favor da vida e das pessoas, frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida.
A partir desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido. Enviados em favor da Vida, os discípulos sabem muito bem qual é o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, destravan-do os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
Para Jesus o mais urgente era remediar o sofrimento daqueles que careciam de uma vida digna e plena.
Porque o Deus que Ele nos revelou não é o Deus que nos complica a vida com normas e leis, senão o Deus que se humanizou para humanizar nossa vida. E assim nos indicou que só quando nos fazemos mais humanos, nos fazemos mais semelhantes a Ele que, para aliviar o sofrimento humano, se compro-meteu e se identificou com os que mais sofrem.

Jesus, presença visível da misericórdia e com a força da torrente que jorra para a vida eterna, chama a todos e a cada um em particular” para que toda a nossa vida esteja exposta ao seu amor curador e a prioridade do seu Reino relativize todo o resto.  Ele quer fazer de nós discípulos e discípulas, apaixonados por Ele e pelo seu Reino.
Ele se aproxima de cada um de nós para curar as nossas feridas, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da compaixão e da esperança teimosa.
Ele que no grão enterrado debaixo da terra já contempla a espiga, revela-nos as possibilidades de vida que se escondem onde parece que a morte tenha dito a última palavra. Ele é o que dá a água viva, o samaritano que cura as feridas, o vencedor da morte, o oleiro da nova Criação.
Só Ele que, ao revelar seu rosto no rosto de tantos excluídos e sofredores, é capaz de despertar o “sama-ritano” que todos carregamos e que permanece “adormecido” em nosso interior.
Por isso, quando o Evangelho de Marcos relata o encargo missionário que Jesus comunicou aos seus discípulos, diz que Ele lhes deu “autoridade para expulsar demônios e para curar toda sorte de males e enfermidades”.
É importante salientar que não se trata de uma “autoridade doutrinal”, para afirmar verdades e condenar erros, senão que se trata de uma “autoridade terapêutica”, para curar doenças e aliviar o sofrimento humano. Jesus, submergindo-se no mar da dor, assume o infortúnio dos inocentes, dos perdedores, das vítimas; Ele experimenta que o amor é paixão.
Tudo se resume em dar vida, erradicar as dores, devolver a dignidade aos que a perderam.

Jesus, o “terapeuta do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranqüilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que passa longe de nós e das lágrimas, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que nos estão impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes?
Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e trans-bordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. Seu caminhar é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Felizes de nós se deixarmos afetar pela capacidade de mobilização desse Samaritano!
Texto bíblicoMc 6,7-13

Na oração: “Abandonai o vosso mundo de realidades virtu-
                         ais, sacudi a poeira das vossas sandálias; apa-gai os computadores nos quais conservais cuidadosamente organogramas, hábitos rotineiros, regulamentos, ativismos, visões distorcidas da realidade... e saí pelas estradas e encru-zilhadas para escutar o rumor das pessoas reais e para alargar a vossa vida no contato com elas. Não eviteis as estradas perigosas, porque a novidade aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
A vida que abraçastes é uma paixão, uma aventura, um risco, um itinerário que deve ser percorrido com os olhos e com os ouvidos abertos e no qual a única bússola que guia para a meta é a da misericórdia e a da ternura.
Deixai que o imperativo: “Vai e faze tu a mesma coisa” vos abale. Diante de vós estão abertos os grandes caminhos da adoração e da compaixão, que desembocam na “vida eterna”.
Felizes vós que escolhestes percorrê-los!”.  (cf. Dolores Aleixandre – Buscadores de poços e caminhos).



quarta-feira, 1 de julho de 2015

Homilia dominical - Dia 5 de julho de 2015

QUANDO “CORTAMOS AS ASAS” DOS OUTROS...


“Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6,4)

Ao longo de nossa vida encontramos pessoas que nos “dão asas”, nos incitam a desbloquear o melhor de nós mesmos e nos sentimos melhores em sua presença. É como se diante de seus olhos pudéssemos re-criar continuamente nossa vida, pois nos mostram horizontes próprios que não podíamos nem imaginar. É um imenso presente receber isto e poder também ativá-lo nos outros.
Também sabemos que pode acontecer o contrário. Nós nos acostumamos a fazer uma imagem dos outros, os classificamos e os etiquetamos: inteligentes ou incompetentes, profundos ou superficiais, simpáticos ou cansativos... e os enquadramos dentro de uma aparência que nos custa muito modificar, atrofiando nossos olhos para perceber a novidade surpreendente que pode brotar no outro.

Algo parecido experimentou Jesus com as pessoas de seu povoado. As perguntas levantadas – “como conseguiu tanta sabedoria”; “Ele não é o carpinteiro, filho de Maria...?”; “Suas irmãs não moram conos-co?”... – manifestam a simplicidade e a veracidade do processo de maturação de Jesus. Seu caminho humano é tão humano que custa acreditar. É mais um entre tantos, como as pessoas comuns entre as quais convivia, sem apresentar-se nada de especial, crescendo pouco a pouco.
E Jesus não pode fazer nada em Nazaré, pois ali lhe “cortaram as asas”. Ele era muito conhecido para eles, muito comum, muito igual... O problema de fundo está em que quando uma pessoa não se ajusta àquilo que a sociedade e seus parentes e amigos esperam dela, essa pessoa cai em desgraça. A “conduta desviada” de Jesus tem um custo muito alto e acarreta enorme rejeição e sofrimento.

No texto do Evangelho de hoje, os conterrâneos de Jesus, em lugar de abrir-se à novidade que se revela diante de seus olhos, optam por recorrer a etiquetas com as quais desqualificá-lo. Desse modo, colocam em seus olhos uma espécie de filtro que os impede ver em profundidade.
Jesus “admirou-se com a falta de fé deles”, ou seja, de sua incapacidade para ver mais além, de sua resistência em conectar-se com o Novo que se faz visível, da ignorância na qual decidiam permanecer instalados.
O relato de hoje está nos falando da humanidade plena de Jesus, que aparece como um entre tantos, filho de uma mulher chamada Maria, de uma família conhecida, simples carpinteiro, sem títulos e sem privilégios. Por isso é tão difícil aceitá-lo como profeta enviado de Deus.
No entanto, todo o cristianismo posterior vai depender, de algum modo, desse “curriculum” de Jesus.

Ao contrário das pessoas de seu povoado, Jesus, ao longo de sua vida e, sobretudo, através de seu “minis-tério terapêutico”, revelou a capacidade de despertar a autoria em cada pessoa, de devolver-lhe sua digni-dade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a conectar-se com seu ser mais profundo para poder “abrir as asas” e voar em direção a largos horizontes.
Do mesmo modo, com sua presença instigante, Ele  ativava e fazia vir à tona o que de mais humano havia nas pessoas. Frente os doentes, pobres e excluídos, Jesus os desafiava a serem mais humanos, pois via neles a nobreza interior que carregam.

Hoje, Jesus continua inspirando caminhos mais humanos numa sociedade que busca somente bem-estar, afogando o espírito e matando a compaixão. Ele pode despertar o gosto por uma vida mais humana em pessoas vazias de interioridade, pobres de amor e necessitadas de esperança.
Diante de Jesus “destravador de asas”, somos também chamados a ser presença “ativadora de asas” para aqueles com os quais convivemos e nos encontramos cotidianamente , renovando a confiança nas pessoas, apostando no melhor que cada um conserva em seu coração. 
Às vezes é difícil viver tal atitude com aqueles que nos cercam, pois nos encanta o grande, o importante, o notável, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração...
Mas, o que é simplesmente humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso é o que tantas vezes menos valorizamos, e é isso o que mais necessitamos, pois é o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a conseqüência mais perigosa que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos seduz.
Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.


Quando isso acontece, o milagre – a novidade – é impossível; só fica a rotina do sempre visto e conhecido.
O ser humano “abre suas asas” quando matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e criatividade das profundezas de seu ser...
Sabemos que toda pessoa se transforma a partir de seu interior. Mas é através da ação e da presença instigante do outro que ela se sente motivada a transpor obstáculos no seu cotidiano e revelar-se  criativa, que sonha e faz o futuro, que apaixona-se pelo que aprende, pelo que cria e realiza.
O vínculo entre as pessoas e o sentimento de pertencer e de ser respeitado em suas potencialidades, limites e necessidades levam as pessoas a reencontrar a essência de sua condição de vida.
Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita... respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos permite tomar consciência de nós mesmos e de nossa nobreza.
A mediação do outro é muito importante para que possamos nos conhecer melhor e sentir que não estamos sozinhos nos reveses da vida.

Os seguidores de Jesus com sua presença humanizadora, são promotores de habi-lidades para a vida; com sua presença inspiradora, “dão asas” e despertam nas pessoas as potencialidades do humano que habitam em cada uma delas, levando-as a experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência cotidiana, interagem com as pessoas e conseguem extrair delas o melhor, fo-mentam o papel ativo delas, incentivam-nas a desenvolver sua autonomia e dar asas à sua imaginação.

Texto bíblico:  Mc 6,1-6

Na oração: Deixe-se atrair para além de si mesmo pois a vida ainda está muito à sua
                   frente.
                   Mire alto, bem mais alto onde habita o Espírito que deseja renovar o ritmo de seus passos.
                   É Ele que destrava as ricas possibilidades latentes em seu interior.



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