QUANDO “CORTAMOS AS ASAS”
DOS OUTROS...
“Um profeta só não é estimado em sua
pátria, entre seus parentes e familiares” (Mc 6,4)
Ao longo de nossa vida
encontramos pessoas que nos “dão asas”, nos incitam a desbloquear o melhor de
nós mesmos e nos sentimos melhores em sua presença. É como se diante de seus
olhos pudéssemos re-criar continuamente nossa vida, pois nos mostram horizontes
próprios que não podíamos nem imaginar. É um imenso presente receber isto e
poder também ativá-lo nos outros.
Também sabemos
que pode acontecer o contrário. Nós nos acostumamos a fazer uma imagem dos
outros, os classificamos e os etiquetamos: inteligentes ou incompetentes,
profundos ou superficiais, simpáticos ou cansativos... e os enquadramos dentro de
uma aparência que nos custa muito modificar, atrofiando nossos olhos para
perceber a novidade surpreendente que pode brotar no outro.
Algo parecido experimentou Jesus
com as pessoas de seu povoado. As perguntas levantadas – “como
conseguiu tanta sabedoria”; “Ele não é o
carpinteiro, filho de Maria...?”; “Suas irmãs não moram conos-co?”...
– manifestam a simplicidade e a veracidade do processo de maturação de Jesus.
Seu caminho humano é tão humano que custa acreditar. É mais um entre tantos,
como as pessoas comuns entre as quais convivia, sem apresentar-se nada de
especial, crescendo pouco a pouco.
E Jesus não pode
fazer nada em Nazaré, pois ali lhe “cortaram as asas”. Ele era muito conhecido
para eles, muito comum, muito igual... O problema de fundo está em que quando
uma pessoa não se ajusta àquilo que a sociedade e seus parentes e amigos
esperam dela, essa pessoa cai em desgraça. A “conduta desviada” de Jesus tem um
custo muito alto e acarreta enorme rejeição e sofrimento.
No texto do
Evangelho de hoje, os conterrâneos de Jesus, em lugar de abrir-se à novidade
que se revela diante de seus olhos, optam por recorrer a etiquetas com as quais
desqualificá-lo. Desse modo, colocam em seus olhos uma espécie de filtro que os
impede ver em profundidade.
Jesus “admirou-se
com a falta de fé deles”, ou seja, de sua incapacidade para ver mais além, de
sua resistência em conectar-se com o Novo que se faz visível, da ignorância na
qual decidiam permanecer instalados.
O relato
de hoje está nos falando da humanidade plena de Jesus, que aparece como um
entre tantos, filho de uma mulher chamada Maria, de uma família conhecida, simples
carpinteiro, sem títulos e sem privilégios. Por isso é tão difícil aceitá-lo
como profeta enviado de Deus.
No entanto, todo
o cristianismo posterior vai depender, de algum modo, desse “curriculum” de
Jesus.
Ao contrário das pessoas de seu
povoado, Jesus, ao longo de sua vida e, sobretudo, através de seu “minis-tério
terapêutico”, revelou a capacidade de despertar a autoria em cada pessoa, de
devolver-lhe sua digni-dade, de remetê-la a si mesma, de ajudá-la a conectar-se
com seu ser mais profundo para poder “abrir as asas” e voar em direção a largos
horizontes.
Do mesmo modo, com sua presença
instigante, Ele ativava e fazia vir à
tona o que de mais humano havia nas pessoas. Frente os doentes, pobres e
excluídos, Jesus os desafiava a serem mais humanos, pois via neles a nobreza
interior que carregam.
Hoje,
Jesus continua inspirando caminhos mais humanos numa sociedade que busca somente
bem-estar, afogando o espírito e matando a compaixão. Ele pode despertar o
gosto por uma vida mais humana em pessoas vazias de interioridade, pobres de
amor e necessitadas de esperança.
Diante de Jesus “destravador
de asas”, somos também chamados a ser presença “ativadora de asas” para
aqueles com os quais convivemos e nos encontramos cotidianamente , renovando a
confiança nas pessoas, apostando no melhor que cada um conserva em seu coração.
Às vezes é
difícil viver tal atitude com aqueles que nos cercam, pois nos encanta o
grande, o importante, o notável, o solene, o que impressiona e chama a atenção,
o que se impõe e causa admiração...
Mas, o que é
simplesmente humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso é
o que tantas vezes menos valorizamos, e é isso o que mais necessitamos, pois é o
que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade.
Somos “educados”
para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a
conseqüência mais perigosa que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória
nos seduz.
Queremos, a todo
custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem
por dentro e destroçam nossa própria humanidade.
Quando
isso acontece, o milagre – a novidade – é impossível; só fica a rotina do
sempre visto e conhecido.
O ser humano “abre suas asas” quando
matura suas potencialidades, multiplica suas capacidades, extrai riqueza e
criatividade das profundezas de seu ser...
Sabemos
que toda pessoa se transforma a partir de seu interior. Mas é através da ação e
da presença instigante do outro que
ela se sente motivada a transpor obstáculos no seu cotidiano e revelar-se criativa, que sonha e faz o futuro, que apaixona-se
pelo que aprende, pelo que cria e realiza.
O
vínculo entre as pessoas e o sentimento de pertencer e de ser respeitado em
suas potencialidades, limites e necessidades levam as pessoas a reencontrar a
essência de sua condição de vida.
Só
seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita...
respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos
permite tomar consciência de nós mesmos e de nossa nobreza.
A mediação do
outro é muito importante para que possamos nos conhecer melhor e sentir que não
estamos sozinhos nos reveses da vida.
Os seguidores de Jesus com sua
presença humanizadora, são promotores de habi-lidades para a
vida; com sua presença inspiradora, “dão asas” e despertam nas pessoas as
potencialidades do humano que habitam em cada uma delas, levando-as a
experimentar condições ousadas de crescimento e realização; na convivência
cotidiana, interagem com as pessoas e conseguem extrair delas o melhor, fo-mentam
o papel ativo delas, incentivam-nas a desenvolver sua autonomia e dar asas à
sua imaginação.
Texto bíblico: Mc
6,1-6
Na
oração: Deixe-se
atrair para além de si mesmo pois a vida ainda está muito à sua
frente.
Mire alto, bem mais alto
onde habita
o Espírito que deseja renovar o ritmo de seus passos.
É Ele que destrava as ricas
possibilidades latentes em seu interior.