Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

terça-feira, 26 de julho de 2016

Homilia dominical - 31 de julho de 2016

A TIRANIA DO EGO

“Então poderei dizer a mim mesmo: meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (Lc 12,19)

O monólogo do “homem rico”, no Evangelho de hoje, revela que, tudo na sua vida, gira em torno do próprio eu: "meus celeiros", "meu trigo", "meus bens". Em sua vida, não existe espaço para Deus e para o próximo. Tudo é pensado em função de sua satisfação pessoal: solidariedade, partilha, misericórdia são palavras banidas de seu vocabulário.
Este homem reduz sua existência a desfrutar da abundância de seus bens. No centro de sua vida está só ele e seu bem-estar. Deus está ausente. Os empregados que trabalham em suas terras não existem. As famílias das aldeias que lutam contra a fome não contam.
Ele é expressão mais visível do dinamismo negativo que nos desumaniza: a avareza e a cobiça.

De onde vem a avareza e a cobiça? Onde se encontra a raiz do instinto de posse?
A parábola do “homem rico”, dominado pelo “ego possessivo”, é contada por Jesus a partir de uma demanda de alguém que d’Ele se aproxima e lhe suplica que resolva uma questão da partilha de bens com seu irmão, que lhe faça justiça. Jesus sabe colocar-se em seu lugar: Ele não veio ao mundo como juiz jurídico, legal. Como bom pedagogo, Ele parte de uma questão colocada por alguém e vai mais além da exterioridade da situação; ou seja, Ele vai à raiz dos problemas, que está no coração do ser humano.
Para Jesus é mais importante desmascarar a cobiça e a avareza que nos dominam que fazer valer os direitos na partilha da herança.
Podemos dizer que por detrás desse impulso de acumulação se esconde uma experiência de empobre-cimento humano. Na origem da avareza, parece existir um vazio afetivo, uma infantil experiência de inse-gurança e, em último termo, uma desconexão de nossa verdadeira identidade.
O vazio afetivo “exige” ser preenchido compulsivamente: esta é a fonte da ansiedade, que se traduz em variadas dependências, uma das quais, pode ser a afeição desordenada pelo dinheiro ou pelos bens mate-riais. Neste sentido, a cobiça ou avareza é esforço – inútil e estéril – de preenchê-lo.
Mais em profundidade, a avareza, enquanto necessidade ilimitada de acumular, se explica – como todos os comportamentos egóicos – a partir da desconexão de nossa verdadeira identidade. O que somos – em nossa identidade profunda – é Plenitude. Mas, quando nos distanciamos de nosso “eu profundo” ou o ignoramos, começamos a viver como seres separados e carentes, em luta permanente e esgotadora por dissimular aquela carência que cremos ser. Mendigamos migalhas – “ajuntamos tesouros para nós mesmos” – sem reconhecer que já somos “ricos diante de Deus”.

Esta carência existencial é reforçada pelo ambiente no qual vivemos, marcado pelo consumismo; a publicidade continuamente nos impõe a idéia de que só tem valor quem tem e acumula bens e riquezas.
Nesse ambiente, cada um de nós vai alimentando uma espécie de ego, vivendo centrados em nós mesmos e separados do resto do mundo. Tal ego é possessivo. Muitas vezes manifesta-se como um desejo insaciá-vel de dinheiro e de bens. Daí a obsessão pela riqueza. Toda a nossa economia está baseada na poderosa força impulsionadora do interesse individual. O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, a-contecimentos e natureza. A partir da riqueza, ganha força a busca do poder e do domínio sobre os outros.
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Esse ego não confia em ninguém a não ser em si mesmo. É essa falta de confiança que nos torna tão inseguros. Ficamos inevitavelmente cheios de medos, preocupações e ansiedades. O nosso ego, ou individualismo egoísta, torna-nos solitários e temerosos.
O ego não ama ninguém além de si, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros.

Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida?
O primeiro passo será desvelar e desmascarar nosso ego com todas as suas maquinações e duplicidade.
Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo o Evangelho a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação. Porque só assim deixa refletir algo da maneira de ser de Deus. Nisso consiste também em ser “rico para Deus”.
As palavras de Jesus, nesse sentido, são magistrais: “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância...; a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (v. 15).
O Evangelho não nos convida ao conformismo. O primeiro é a justiça, querida por Deus, pregada e vivida por Jesus: que todos tenham pão, moradia, saúde... fruto da comunhão, da solidariedade, novo nome da justiça; isso é o Reino, a Nova Humanidade. Mas pode ocorrer que quando tenhamos o justo, o que nos corresponde como filhos e irmãos, ambicionemos mais. Esta cobiça, pecado de raiz, nunca nos permitirá descansar.

Na vida, todos precisamos de algumas seguranças. E aspiramos condições dignas de vida. Mas, há uma linha que separa a necessidade verdadeira da ansiedade imposta, a segurança do necessário e a insegurança do excesso e do abuso. Há uma tentação muito humana que a todos nos habita: a de ter mais, acumular sempre, apossar-se de tudo... Parece que não nos satisfazemos nunca com aquilo que conseguimos. Tudo revela-se insuficiente, e o impulso por acumular – riquezas, bens, relações ou experiências – se converte em voracidade.
É preciso estar sempre alerta para não se deixar determinar pelo dinamismo da cobiça. Até onde chegar na acumulação de bens?
A resposta cristã é “viver como Jesus”: viver confiados nas mãos providentes do Deus Pai/Mãe, buscando o Reino-Utopia como o mais importante. “O resto virá por acréscimo”. A verdadeira riqueza é investir  numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do des-centramento de si mesmo em favor do serviço ao outro, o das obras em favor dos mais pobres e desfavorecidos...
Porque “ser rico diante de Deus” não significa ter “acumulado” méritos, mas deixar cair nossa falsa identidade, tomar distância do ego e, pacificado e aquietado nosso interior, fazer-nos conscientes da Ple-nitude que somos.
“Ser rico diante de Deus” significa, antes de mais nada, descobrir a nobreza de nossa identidade profun-da, identidade unitária e partilhada, a salvo de ladrões, enfermidades e mortes. Trata-se da identidade pela qual nos experimentamos no “céu”, a Presença divina que somos e na qual vivemos.

Texto bíblico Lc 12,13-21

Na oração: Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma
                   mentira perigosa que aparece como “verdade”- de so-lucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impul-sos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.
- Dar “nomes” aos apegos que travam o fluir de sua vida.
- Quais são suas “verdadeiras riquezas” pelas quais investe o melhor que há em você.




terça-feira, 19 de julho de 2016

Homilia Dominical - 17 de julho de 2016

HOSPITALIDADE: espaço de coração dilatado,
                                           gratuidade e contemplação

“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Maria, recebeu-o em sua casa” (lc 10,38)

Se existe uma atitude de vida que pede o resgate de sua profundidade e seu poder evocativo original é a da “hospitalidade”. É um dos termos bíblicos mais ricos, que nos ajuda a aprofundar e aumentar a compre-ensão sobre a relação com nossos semelhantes.
A hospitalidade é uma “experiência existencial”, situa-se no nível do ser. É uma acolhida gratuita. Aquele que é acolhido tem direitos, mas também tem deveres e aquele que acolhe está disposto a mudar sua rotina, e ambos estão disponíveis a renovar, a redefinir sua identidade: “Antes de representar um pro-blema para a minha identidade, ele (o hóspede) é estímulo para uma convivência sempre a reescrever, atualizar, enriquecer...” (Dal Corso, Marco).
A diaconia (serviço) da hospitalidade é um movimento que vem de dentro da pessoa e se estende no vaivém das relações humanas mais distantes e mais próximas. É abertura e disponibilidade àquele que interpela as nossas convicções, nosso modo rotineiro e estreito de viver.
Em contexto de hospitalidade, anfitrião e hóspede podem revelar suas riquezas mais preciosas e trazer vida nova um ao outro. Só quem tem coração dilatado vive a hospitalidade como surpresa provocativa.
A hospitalidade é antes de mais nada uma disposição da alma, aberta e irrestrita. Acolher o outro significa multiplicar a alegria do encontro, da novidade e da partilha, não só do pão mas da vida.

Como comunidade seguidora de Jesus somos chamados a oferecer espaço aberto, hospitaleiro, onde os estranhos possam libertar-se de sua estranheza e transformar-se em nossos companheiros.
Talvez o conceito de “hospitalidade” possa oferecer uma nova dimensão à nossa compreensão de um relacionamento saudável e à formação de uma comunidade festiva e alegre em um mundo que sofre visivelmente de alienação, estranhamento e preconceito.
A hospitalidade envolve a escuta respeitosa daquilo que o outro tem a dizer, em uma abertura humilde do coração e da mente para compreender as diferenças e novidades que o outro nos traz. Aqui revela-se a diferença entre a hospitalidade de Marta e a de Maria, no evangelho deste domingo. A ansiedade e a preocupação de Marta impedem-na viver a hospitalidade com alegria. Seu ativismo compulsivo atrofia sua gratuidade e, quando se elimina a gratuidade, a vida pode perder seu sabor e seu sentido.

Como integrar Marta e Maria?
Marta é a eficácia do amor serviçal e hospitaleiro a um amigo muito querido que foi acolhido com todo carinho na casa familiar. Maria é a gratuidade que escuta absorta a novidade que Jesus traz. As duas dimensões da vida são necessárias.
Marta deve escutar o que diz Jesus e compreenderá que sua vida não fica limitada à tarefa de atender bem a familiares e amigos entre as quatro paredes da vida doméstica, senão que deve abrir-se para cuidar e servir o Reino de Deus que chega por todas as partes.
Maria não só deve estar atenta às palavras de Jesus, mas ao que dizem milhões de pessoas no mundo, suas solidões e suas alegrias, para que a novidade de Deus que se gesta em suas vidas encontre um rosto de lar onde possa ser acolhida e nascer na história.
Todos temos de ser Marta e Maria, o serviço eficaz e a gratuita contemplação de Jesus, irmanados em um modo original de viver a hospitalidade, onde o serviço pequeno e gratuito, a proximidade de portas abertas, o viver a cotidianidade como dom se constituem como a identidade cristã.

Essa é a nossa vocação: converter o “hostis” em “hospes”, o diferente em convidado, o estranho em amigo, e criar o espaço livre e sem medo, no qual a fraternidade pode ser experimentada em plenitude.
Na realidade, aqui se trata de um movimento expansivo onde se dá a travessia da hostilidade à hospitali-dade. Tal passagem é repleta de dificuldades: nossa sociedade é marcada pela presença de pessoas teme-rosas, defensivas e agressivas, agarrando-se ansiosamente ao seu modo fechado de viver, inclinadas a olhar ao redor com suspeitas, sempre à espera de que um inimigo de repente apareça e cause algum dano.
A hostilidade campeia nas redes sociais e a xenofobia circula como um veneno: daí a agressividade preconceituosa no campo político-social-racial-sexual...
De fato, ultimamente, os “estranhos” e “diferentes” tornaram-se mais sujeitos à hostilidade do que à hospitalidade: protegemos nossas casas com cães e trancas duplas, nossos edifícios com vigilantes, nossos colégios com guardas, nossas estradas com policiais, nossos aeroportos com seguranças, nossas cidades com polícia armada...
Nosso coração pode querer ajudar os outros e mostrar simpatia para com os pobres, solitários, rejeitados, minoritários...: no entanto, rodeamo-nos com um muro de medo e de sentimentos hostis, evitando instintivamente pessoas e lugares que possam nos lembrar de nossas boas intenções.
Em um mundo tão competitivo, mesmo pessoas próximas, como colegas de classe, de equipe, de trabalho, todos podem ficar infectados pelo medo e pela hostilidade quando sentem o outro como uma ameaça à sua segurança pessoal.
Muitas vezes, instituições criadas para oferecer espaço e tempo propícios para o desenvolvimento da hospitalidade (família, escolha, religião...), tornam-se tão dominadas pelo “defensismo” hostil que acabam atrofiando e bloqueando o melhor que cada pessoa traz em seu coração.

Hospitalidade não é mudar as pessoas, mas oferecer a elas um espaço no qual a mudança pode acontecer. Não é trazer homens e mulheres para o nosso círculo, mas oferecer uma liberdade sem as amarras de linhas divisórias. A hospitalidade não é um convite sutil para adotar o estilo de vida do anfitrião, mas a dádiva de uma chance para que o hóspede descubra o seu próprio estilo.
A hospitalidade não é uma tática para fazer de nossa fé e de nosso caminho critérios de felicidade; é abrir uma oportunidade para que os outros encontrem sua fé e seu caminho.
O paradoxo da hospitalidade é que ela deseja criar o “vazio”, não o vazio temeroso, mas um vazio amistoso no qual os estranhos podem entrar e descobrir a si mesmos livres como foram criados; livres para cantar suas canções, para falar suas línguas, para dançar suas danças; livres para expressar seus sentimentos e para seguir suas decisões. E isso não só no espaço físico da casa, mas nas redes sociais, nos diferentes grupos de interesse, nos relacionamentos...
O verdadeiro hospitaleiro é aquele que oferece o espaço onde não temos nada a temer, onde podemos ouvir nossa voz interior e descobrir nossa maneira pessoal de sermos humanos. A verdadeira hospitalidade é inclusiva e dá espaço para uma grande variedade de experiências humanas.

Texto bíblico:   Lc 10,38-42

Na oração: Continuamente nos deparamos com um Deus que chega gratuito e
                         imprevisível em nossa vida, suplicando hospitalidade. Quando Ele é acolhido,  nossa cotidianidade se converte em milagre.
- na relação com os outros, quê lugar ocupa a hospitalidade em sua espiritualidade cotidiana?




Homilia Dominical - 10 de julho de 2016

A MISERICÓRDIA DESPERTA O “SAMARITANO” EM NOSSO INTERIOR

 “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o com-portamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém”. (Papa Francisco –
                                                                                                                                                                 Misericordiae Vultus)

Os relatos evangélicos destacam que a atuação de Jesus está sempre inspirada, motivada e impulsionada pela misericórdia para com todo ser humano. É a misericórdia a que explica e define Sua maneira de ser e de atuar. O sofrimento das pessoas comove suas entranhas, penetra até o fundo de seu ser e se converte em seu princípio de ação transformadora.
O importante é entender que esta misericórdia não é um sentimento a mais, mas a reação básica de Jesus, que dirige e configura toda sua atuação. Não vem motivada por interesse algum. É amor gratuito que brota de sua profunda sintonia com o mistério insondável de Deus Pai-Mãe, fonte de misericórdia.
A partir desta misericórdia entende-se todo seu compromisso em aliviar o sofrimento humano.
Esta presença misericordiosa de Jesus está presente, de maneira contundente, na parábola do “bom samaritano”, onde o próprio Jesus “pinta” seu auto-retrato.
Jesus, o grande samaritano, se aproxima de todos e de cada um de nós para curar as nossas feridas e derramar sobre elas o óleo da sua consolação e o vinho da sua força; Ele se ocupa de nossas fragilidades, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da com-paixão e da esperança teimosa.
Com justiça, os padres da Igreja gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve misericordiosamente junto a nós pecadores, descen-do de sua “cavalgadura” e fazendo-se nosso companheiro de viagem.

Na parábola, o samaritano se sentiu impactado, se deixou afetar, seu coração se estremeceu..., ao “olhar um corpo estendido no chão”. A partir desse momento, ele “desvia” do seu caminho e se desloca em direção àquele de quem todos se desviavam e “passavam do outro lado”. Gasta do que é seu, dedica tempo, mobiliza toda sua atenção frente ao ferido. Mistura sua vida com a de um necessitado e rompe solidões. Muda seu esquema de vida e se deixa levar pela misericórdia criativa.
Dito de outra maneira: o samaritano começa a viver novos registros do que são a solidariedade, o amor e a liberdade. Seu coração tocado pela compaixão o anima a modelar a vida em prol dos outros.
Quando acolhemos a realidade e nenhuma venda nos impede ver o sofrimento do outro, a reação imediata é a compaixão. A compaixão samaritana não se reduz a um mero sentimento empático; inclui, além disso, a ação por aliviar o sofrimento do outro e o risco de compartilhar seu destino.
Em pouco mais de uma linha, o evangelista Lucas, na parábola do Bom Samaritano, ajunta uma infini-dade de ações: o samaritano se compadece, se aproxima, enfaixa suas feridas, coloca-o em seu próprio animal, o conduz à hospedaria e o cuida.
Compadecer-se, aproximar-se, curar, levar, cuidar... tecem a rede de ações que definem a ajuda sama-ritana, diferenciando-a de propostas meramente retóricas, modelos assistencialistas e ajudas estruturais desencarnadas.
A compaixão derruba as diferenças que podem dar-se na relação ajudador-ajudado. Compadecido e compadecedor se sabem igualmente vulneráveis. A compaixão prevê reciprocidade e move a descer em direção ao outro: “hoje por ti, amanhã por mim”.
A compaixão nos coloca ao lado das vítimas e, a partir daí, nos ajuda a ler o drama interno da história em termos de injustiça, desigualdade e opressão. A compaixão pergunta pelos desajustes estruturais que estão por detrás de cada desgraça. Por que nas catástrofes naturais o número de mortos costuma ser inversamente proporcional ao PIB per capita? Quê “grau de escala Richter de desgraça” é necessário para provocar um sismo em nosso interior e despertar o “samaritano” ali presente?

O ícone do “bom samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o próximo concreto, histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas decisivas, em relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do necessitado. O “próximo” não é somente o outro para mim, mas eu para o outro.
O “próximo”, no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca uma resposta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco, para socorrer o ferido.
Mais ainda, o encontro com este ícone da ternura desperta dentro de nós o samaritano que permanece “adormecido”. Somente a Misericórdia de Deus, que revela seu Rosto no rosto de tanta exclusão, violência e sofrimento, é capaz de despertar o “samaritano” que todos carregamos.
Isso implica em abandonar a estreiteza de nossos projetos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos sofredores e excluídos, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
O “bom samaritano” é todo aquele que se detém ao lado do sofrimento de outra pessoa, quem quer que seja. Não deve, porém, ser uma parada curiosa, estéril, inútil ou escandalosa, mas de comoção, compaixão, disponibilidade, ajuda concreta. É doação de si mesmo.
Felizes de nós se deixarmos afetar pela mobilização do samaritano!

Diante da presença do homem semi-morto, o sacerdote e o levita dão a volta; o samaritano se aproxima.
Dois itinerários que determinarão não só a sorte da vítima, mas também a dos viajantes. Os dois primeiros, recusando seu auxílio, revelam sua desumanidade, com a desculpa de manter sua pureza religiosa. O samaritano é um exemplo de humanidade, mesmo com o risco de tornar-se “impuro”.
Muitas das ações samaritanas nos colocam em situações de aperto: aproximar-nos até ficar “impuros”.
O compromisso samaritano passa por “manchar-se”, exige tomar partido pelos últimos, arriscar-se a perder subvenções, expor-se a ter o nome na ficha policial. Em suma, ficar “impuro” perante os olhos da “religião oficial” do Estado.
A parábola ainda nos faz cair na conta do profundo valor simbólico que se esconde por detrás do simples ato do samaritano de fazer o ferido montar sobre sua própria cavalgadura. O samaritano conduz o animal para a pousada como um servo conduz seu senhor. A distinção entre aquele que monta e aquele que conduz o animal é muito forte, ainda hoje, no mundo oriental.
Desejar que outro mundo é possível a partir das vítimas, significa pôr-se a seu serviço, descer de nossa cavalgadura e ser presença compassiva junto a elas. São elas as que deveriam marcar nossos modos de vida, nossos consumos, nossas políticas. E para isso é preciso começar por escutar o quê dizem, o quê esperam, por quê lutam, o quê temem?...
Não é fácil escutar a voz das vítimas, a maioria das vezes a encobrimos com tranqüilizadores discursos românticos que convertem a pobreza em um lugar idílico de solidariedade espontânea. Ser samaritano é um estilo de vida.

Texto bíblico:   Lc 10,25-37

Na oração: O evangelista Lucas não deixa dúvida: todos os personagens da parábola
                     “vêem” o homem ferido à beira da estrada.
Adentremo-nos no movimento de olhares proposto pela parábola do bom samaritano, para descobrir as atitudes básicas dos personagens e que nos levam a nos aproximar da realidade tal qual ela é, e a nos comprometer com um “outro mundo possível”.




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