DESLOCAMENTO PARA OS
‘SANTOS LUGARES’ DOS POBRES
“Jesus foi para o outro lado do mar da
Galiléia, também chamado de Tiberíades” (Jo 6,1)
O Evangelho de hoje nos traz esta revelação:
não podemos resolver as coisas a partir desta margem, se não vemos as coisas
também a partir da outra, sem arriscar-nos a fazer a travessia em direção a
terras novas, ao encontro de outros povos e culturas, para aprender e
compartilhar com eles a missão em favor da vida.
Frente àqueles que queriam fechar-se no
interior da comunidade, João insiste que o evangelho devia expandir-se numa
marcha arriscada de entrega criadora, descobrindo comunidades e formas de vida
novas, para recrear, a partir delas, o Evangelho.
Afinal, Jesus desencadeou um “movimento”
e o Evangelho não é para os que estão “sentados”, acomo-dados, como quem maneja
o televisor com o comando à distância; não é o Evangelho para os que “esperam”
a que outros “venham”, mas Evangelho para “fazer estrada”, viver em atitude de
“saída” para buscar, sair ao “encontro”... É o Evangelho para velejadores
ousados e que se sentem inspirados a “fazer a travessia”. Para proclamar o
Evangelho é preciso sair dos lugares conhecidos, estreitos e rotineiros... e
abrir-se às surpresas dos “lugares novos”.
“Passar para a outra margem”: esta deve ser a expressão chave que nos mobiliza e dá
sentido ao nosso seguimento de Jesus. São muitos os que querem que a Igreja
continue fechada em seu legalismo-moralismo-ritualismo, apesar do movimento
ativado pelo Vaticano II e apesar dos insistentes apelos do Papa Francisco.
Muitos querem que o cofre do Evangelho se conserve onde sempre esteve, sob sete
chaves... Mas Jesus nos diz de novo e com veemência: “ide para a outra margem”. Ele nos convida e nos
anima a ir “mais além” do conhecido e do trilhado, para o “outro lado”.
Como humanos tendemos a nos
instalar, acomodando-nos naquilo que conseguimos. Facilmente nos acostumamos ao
conhecido e nos deixamos embalar pela rotina que evita sobressaltos e nos
confere uma certa sensação de segurança e conforto.
E isto ocorre também com nossas
idéias, crenças, atitudes, visões...
Acostumados a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva,
nos custa abrir-nos a outros ângulos novos ou desconhecidos.
Preferimos, quase sem nos dar conta,
permanecer instalados “na margem” conhecida, habitual, costumei-ra. É a
preferida de nossa mente e de nossa sensibilidade, pela simples razão de nos
ser familiar e nos trazer tranquilidade.
Dizem que, ao pintar
uma paisagem, os artistas a olham
dobrando-se e pondo a cabeça entre as pernas abertas, por mais incômodo que
seja a pos-tura, porque assim se libertam da visão “oficial” do conjunto que
todos vêem quando estão de pé, e descobrem novos ângulos, perspectivas não usuais e a surpresa do novo no molde antigo.
Isto acaba sendo a maneira de ver
as coisas por outra perspectiva. É o
segredo da arte, da vida e das decisões
bem tomadas. Um enfoque novo sempre
proporciona um ponto de referência melhor para uma avaliação independente, seja
de linhas e cores, seja de opções e atitudes de vida.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande
ajuda para uma sadia vivência do Evangelho.
Jesus,
no Evangelho de hoje, convida os seus discípulos a saírem de seus lugares para
ver as coisas a partir de um novo ângulo: o ângulo dos margi-nalizados. A
mudança de perspectiva possibilita um novo olhar e abre caminho para perceber
outros aspectos que a “visão acostumada” não capta.
A “outra
margem” é a novidade do presente, a descoberta incessante, a amplitude sem
limites. Mas só po-demos começar a cruzá-la se estivermos dispostos a deixar
nossos rotineiros pontos de vista e nossos caminhos trilhados, e nos entregar
com docilidade à Vida – outro nome de nosso “mestre interior” -, para que ative
em nós a coragem e a ousadia de abrir-nos ao diferente.
Na realidade, quando tudo na vida se torna
fácil, é mais provável que nos instalemos em nossas seguran-ças. Somente quando
nossa vida é sacudida e colocada em crise é que conectamos com outro anseio
mais profundo. Tal anseio podemos considerá-lo também como a voz de nosso
“mestre interior” que nos dá paz, mas que não nos deixa em paz. Se não o
afogamos com compensações nem o calamos com nosso ruído, escutaremos sua voz
que nos anima a cruzar a “outra margem”.
Por isso, ao escutar estas palavras de Jesus, é
provável que reconheçamos o “eco” que produzem em nosso interior, e que o
convite a “sair” se torne familiar.
Se lemos os Evangelhos com um pouco mais de
atenção veremos que Jesus está continuamente “passando para a outra margem” e
convidando os seus seguidores a fazerem o mesmo.
Isto nos move a pensar que esta travessia não é
apenas geográfica, não se trata de voltar ao lugar de onde saiu. Tem que haver
algo mais profundo, ao menos um impulso à não instalação. Nenhuma margem pode
converter-se em lugar de parada, todas são lugares de passagem.
Com Jesus estamos continuamente
passando para outra margem, fazendo contínuas travessias em direção ao outro,
não permanecendo fechados em nós mesmo; passar em direção ao outro como
passagem necessária para passar em direção a Deus. Aquele que se instala, se
perde. Temos de buscar sempre novos horizontes. Qualquer conquista obtida
graças a Jesus é só um prelúdio, o vislumbre de uma conquista que não perece, e
que só se consegue quando nos desapegamos das conquistas parciais.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na
oração: Se somos
seguidores de Jesus não deveríamos mais falar de “marginalizados”, pois essa
linguagem
indica que nos situamos no
centro, “perto” de Deus e colocamos os outros distantes de nós e “longe” de
Deus. Não se trata de buscar o outro entre os marginalizados, mas de
deslocar-nos para a margem e colocar o outro no centro. Tal como Jesus, somos
chamados a nos “fazer margem” para deixar-nos afetar e aprender com o outro que
está do “outro lado”. O seguimento de Jesus é questão de deslocamento: em qual
margem me situo? Aquela do centro, conhecida, que me dá segurança...? Ou aquela
do diferente?