QUARESMA: “contemplar novos e
estranhos mundos”
“...porque Deus amou tanto o mundo...” (Jo 3,16)
Esta afirmação faz parte do
núcleo essencial da fé cristã. Deus ama o mundo, e o ama tal como é: inaca-bado
e imperfeito, cheio de conflitos e contradições, capaz do melhor e do pior...
Este mundo não percor-re seu caminho sozinho, perdido e desamparado. Deus o
envolve com seu amor de ternura.
Isto tem consequências de máxima
importância. O mundo inteiro transforma-se em objeto do nosso inte-resse e da
nossa preocupação.
Se
há um “hábito do coração” que
poderia ser ativado nesta Quaresma é este: a “leitura orante da realidade do
mundo”. Este “hábito do coração”
tem suas raízes no relato evangélico de hoje, onde Jesus nos
convoca a olhar o mundo como Deus
olha: com amor e compaixão
Assim como a Salvação do mundo foi determinada a partir de um “olhar”
que saiu do coração de Deus, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu
coração, estremecendo-O de compaixão
e movendo-O à ação, assim também
toda nossa presença no mundo tem de
ter sua origem num olhar misericordioso
e compassivo, amoroso e esperançoso...
Inspirados na afirmação de Jesus,
contemplamos com o olhar do Deus compassivo nosso mundo frag-mentado, cheio
de conflitos que geram sofrimento, exclusão, morte... E esses espaços e
fronteiras são cada vez mais extensos e problemáticos; mas, nas profundezas de
todos esses “mundos que nos são estra-nhos” se revela a presença
amorosa do Pai. Pois tudo foi
alcançado e redimido pelo amor expansivo de Deus.
A Quaresma nos
conduz à contemplação da realidade na qual vivemos e à qual somos
enviados apostolicamente; tal exercício nos possibilita ter presente, como uma
visão de conjunto, as grandes questões sociais e eclesiais que desafiam hoje os
cristãos, enquanto seguidores de Jesus e comprometidos com a fé e a justiça, em diálogo
com a cultura e com as tradições religiosas.
Esta
contemplação da nossa realidade (“ver o mundo”) nos ajudará a
nos aproximar e a conhecer mais profundamente o mundo no qual estamos
imersos. Nesse sentido, contemplar o
mundo a partir de Deus será um convite a encarnar-nos
nele para transformá-lo.
Tal aproximação e conhecimento
deste mundo devem ser feitos a partir de uma atitude de compaixão:
não de confrontação ou enfrentamento, mas movidos pelo desejo de compreender as
entranhas do mun-do no qual vivemos. Não se trata de fazer um juízo moral
sobre ele, nem para aprová-lo nem para conde-ná-lo. Assumimos uma atitude
crítica valorizando o que nele há de potencialidades abertas e emergentes, bem
como detectando suas limitações, desvios... Ao mesmo tempo queremos nos deixar
interpelar por ele, fazendo com que ressoem em nós suas perguntas e suas
inquietações, suas luzes e suas sombras, suas riquezas, seus paradoxos e suas
contradições.
Estamos
mergulhados no mundo trabalhando junto e com as
pessoas, mas na mesma ação somos contemplativos porque “encontramos a
vida divina no mais profundo da realidade”.
Existe uma forma
contemplativa de viver no meio do mundo, ou seja uma forma diferente de
descobrir o Deus oculto no centro das realidades. Como um pêndulo, o cristão
oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a
variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com todo seu
“mundanismo” e complexidades. É tão familiar com o mundo que sente o Espírito
de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais
inesperada.
O tempo Quaresmal nos sensibiliza e nos
capacita para nos aproximar do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir”
até Deus passa pelo “descer”
até às profundezas da humanidade.
A
pessoa contemplativa, movida por um olhar
novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo
como “sacramento
de Deus”. Um olhar capaz de
descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura,
pela compaixão e por isso gerador de mise-ricórdia; um olhar que compromete solidariamente.
As
grandes fronteiras do mundo (globalização, diferentes culturas, ciência e tecnologia,
ecologia, bioética, migrações...) vão adquirindo cada dia proporções novas e
surpreendentes; elas constituem os
grandes desafios que pedem de nós, seguidores de Jesus, uma presença
inspiradora e samaritana.
Esta é a atitude
contemplativa: ver Deus no mundo e o mundo em
Deus.
Tal atitude
fundamenta uma grande paixão e interesse pelo mundo. Para descobrir Deus
não é preciso fugir do mundo; o seguidor de Jesus não é aquele que, por medo,
se distancia do mundo, mas é aquele que, movido por uma radical paixão, desce ao coração da realidade em que se encontra,
aí se encarna e aí,
“esvaziando-se”,
participa ativamente da solidariedade de
Deus com a humanidade, que é o centro da salvação; ele estabelece sua
moradia no mundo, inserido nos “extremos” do trabalho, da vida,
dos direitos, da ética na política..., ali onde se faz mais necessária a
atividade profética.
Neste momento em que tudo parece
confuso, incerto e desalentador, nada nos impede introduzir um pouco de amor,
de compaixão, de sensibilidade e justiça, no mundo. É o que fez Jesus. Sua
presença nas periferias da pobreza e exclusão deixou transparecer o rosto
humano e compassivo do Pai.
O mistério Pascal nos convida a “olhar”
nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidade, paixões, sentimentos,
fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade,
salvando-a.
Nesta
contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para
poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez
presente para fazer Redenção.
A espiritualidade
quaresmal abre-nos à missão apostólica, desvelando os aspectos
criativos e esperançosos da realidade, denunciando as forças que desagregam ou
excluem, propondo novos modos de viver o compromisso eclesial e social...,
enfim, impulsionando a sermos agentes de trans-formação e atuantes no âmbito
público.
Isso demanda
lucidez, conhecimento rigoroso e sapiencial da realidade; para isso é preciso
deixar-se afetar pela realidade (compaixão), incorporar uma leitura compassiva
e entrar no fluxo da graça expansiva de Deus, que tudo redime.
Texto
bíblico: Jo 3,14-21
Na oração: diante de Deus responda: quê impacto tem sua vida cristã na realidade
social que o(a) cerca?
Verificar, diante de Deus, se a experiência quaresmal está despertando
em seu interior uma sensi-
bilidade social, um espírito solidário e um compromisso com o mundo da
exclusão.