A
‘AUTORIDADE’ DOS ÚLTIMOS
“Quem acolher em meu nome uma destas
crianças é a mim que estará acolhendo” (Mc 9,37)
Sempre a mesma discussão e a
mesma tentação: quem é o maior? quem é o primeiro? quem é aquele que manda?... O
Evangelho de hoje nos situa em Cafarnaum,
lugar onde são “des-velados” dois dinamismos opostos. De um lado, Cafarnaum
como lugar onde o poder se torna competição e intriga, onde o segui-mento se
torna privilégio, onde palavras como serviço, entrega ou humildade soam vazias
porque por de-trás delas há outras intenções menos evangélicas. E é tão difícil
sair daí. É tão complicado deixar que a cri-ança ocupe o centro, que os últimos
sejam os primeiros. O impulso do poder e da vaidade vão se impondo a tal ponto
que acabamos sufocando a criança que quer se expressar e deixar-se surpreender
dentro de nós.
De outro lado, Cafarnaum
é essa criança que é Boa Nova, que nos abre às alegrias e às surpresas, que
crê no amor, que reconhece sua ignorância e não se importa porque para ela
sempre são novas todas as coisas, que em cada amanhecer descobre novas
oportunidades, que não entende os grandes porque sabe que o essencial está em
outro nível, que pede porque se reconhece necessitada, que é vulnerável e não
se envergonha de suplicar o cuidado, que vive em meio a sonhos, que espera nas
promessas...
Cafarnaum de crianças sempre últimas. Cafarnaum
bendita e generosa. Cafarnaum possível.
Qual das duas “cafarnaum” eu alimento?
Diante da oculta intenção dos discípulos de
começar a construir uma nova comunidade sobre as bases do poder, a partir do maior e do primeiro, Jesus inverte esse modelo,
pois Ele não precisa de seguidores que sejam os grandes nem os primeiros, mas de
companheiros que queiram fazer-se últimos e servidores dos outros; Jesus
destrói os desejos de poder dentro de seu grupo, e assim apresenta com realismo
o que impli-ca segui-lo no caminho do Reino.
Mais uma vez o Evangelista Marcos nos situa
Jesus “em casa”, lugar de reunião da comunidade, onde Ele estabelece um diálogo
com os Doze. O paradoxo é brutal: pelo caminho, enquanto seguiam a Jesus, iam
discutindo para ver “quem era o
maior entre eles”.
Os Doze tinham interiorizado os critérios da velha sociedade, edificada a
partir dos poderosos.
E Jesus, ao descobrir a má
intensão dos discípulos, corta o mal pela raiz: “Se
alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos”.
Depois, coloca uma criança no
meio deles e a abraça. O gesto de Jesus e as palavras que o acompanham
tornam-se chocantes e surpreendentes. O lugar central já não corresponde nem a
Pedro nem a João nem a Tiago; no espaço central da Igreja, abraçada a Jesus,
encontramos uma criança, ou seja, um ser humano que depende da acolhida e ajuda
dos outros, um necessitado que nem sequer pertence ao grupo.
A comunidade de Jesus tem que ser
servidora e acolhedora daqueles que são como aquela criança, dos desvalidos e
dos que não contam. Quando numa comunidade surgem disputas pelo poder e pelos
primeiros lugares, inevitavelmente nascem as divisões e se rompe a fraternidade
“Entrar no Reino” significa entender e
compartilhar o projeto de Jesus, ou seja a “fraternidade universal” e o “amor
que se faz serviço”, pois Ele veio “buscar” os últimos (enfermos, excluídos,
pecadores).
Isso se revela impossível para quem rege sua
vida por critérios de poder, prestígio, ambição... alimentando atitudes que
separam, dividem ou geram competição. O poder
deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da
competição, da suspeita, da intriga. A cultura do poder suga o “espírito” da
vida de uma comunidade, minando a criatividade e fragilizando seus laços de
convivência. Sorrateiramente esta tentação toma conta do coração humano e o
petrifica, impedindo a expansão da vida em direção aos outros. Por isso Jesus
quer que seus servidores saibam se colocar no final, para, a partir dali,
acompanhar e ajudar os outros (especialmente os perdedores deste mundo),
superando a lógica do mando e do poder.
Todos se encontram agora
igualados, formando um corpo em torno à criança (que está no meio), a quem
devem receber e servir. No lugar onde estava Ele, Jesus colocou uma criança
(não um templo, nem uma bíblia, nem o código canônico...), de quem todos devem
se aproximar, acolher e servir.
Jesus coloca uma criança no
centro para que ali fique; os discípulos discutiam sobre esse centro, mas agora
descobrem que está ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé,
convertendo-a em hierarquia máxima, em meio ao grupo onde Ele mesmo estava.
Dessa forma, Jesus interpreta a autoridade a partir da ternura: a
criança é importante porque está no centro da comunidade. Por isso, uma
sociedade que não cuida e não protege suas crianças, é uma sociedade fracassada
e não pode ser abençoada por Deus. Para muitos, é mais fácil confiná-las na
prisão, lavando covardemente as mãos, “descartando-as” e não se preocupando em oferecer-lhes as
mínimas condições para o seu crescimento e formação.
Com seu
gesto e palavra, Jesus declara as crianças como coração e autoridade suprema da
Igreja. Dessa forma, o que começava sendo uma pergunta hierárquica sobre o
poder, entendido como sinal de Deus so-bre o mundo (quem é o maior?), desemboca
numa exigência ética de inversão do poder, de anti-hierarquia.
A comunidade cristã não é um grupo de sábios
doutores, uma sociedade de poderosos e influentes, uma associação de burocratas
sacros, mas um lar para as crianças, um espaço onde os mais necessitados encon-tram
acolhida e cuidado, um espaço de vida, dignidade e ternura.
A
essência da Igreja consiste em abrir espaço de vida e crescimento, de afeto e
ternura para com os mais necessitados, e de um modo especial para com as
crianças.
Eles, Jesus e a criança,
constituem a verdade messiânica. Desaparecem os modelos de domínio (ser maior,
ser primeiro), o maior e primeiro é a criança. A partir daí se pode falar de
uma Igreja entendida como espaço de acolhida e como escola de vida para os
necessitados e crianças. Aqueles que acolhem uma criança, oferecendo-a espaço
para o abraço no centro da casa, esses são comunidade cristã.
Frente aos discípulos
patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder, Jesus eleva o modelo de uma
Igreja que é família, lar materno a serviço dos mais desprotegidos.
Texto bíblico:
Mc 9,30-37
Na oração: É preciso estarmos abertos para as surpresas de
Deus! Entremos, pois, na casa em Cafarnaum,
mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo. O “mistério”
contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando
novidade em nossa vida cotidiana.
Há muito que ver em Cafarnaum, mas nem
todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não
se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não
vibrarão com a novidade das palavras e gesto de Jesus... Somente os olhares dos
pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que
estamos acostumados a ver, é também “nascer de novo”. É preciso despertar a “criança
interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com
outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.