Divórcio e divorciados: reflexão a
partir do Sínodo da Familia
José María Díaz Moreno, jesuíta canonista
Há 14 anos escrevi algumas páginas intituladas “Sobre o matrimônio canônico. Três questões abertas à reflexão”. Diante
da petição que agora me faz o atual diretor da Revista “Razón y Fe”, voltei a
ler aquelas páginas. Sinceramente
tornaria a assiná-las hoje, sem mudar nada.
As questões abertas às quais me
referia (ocidentalismo estrutural do matrimônio canônico, a fé necessária para
administrar e receber o sacramento do matrimônio e a situação eclesial dos
divorciados que voltaram a se casar) continuam sem se fechar. Prescindo aqui
das duas primeiras, que considero de vital importância e me limito ao problema
dos divorciados que voltaram a se casar.
Procuro refletir, com a maior objetividade possível, minha experiência
pessoal em quase meio século de atenção a casais canônicos irreversivelmente
fracassados e nos quais, um ou os dois contraentes, ao não encontrar solução na
normativa canônica vigente, refizeram seu matrimônio apoiando-se só nas leis
civis.
Divórcio e divorciados.
Este repetido encontro com casais em situação “irregular”, desde cedo me fez
cair na conta da complexidade do problema e de que não se podia aplicar a todos
uma mesma solução. Assim como em medicina se diz que não há enfermidades, mas
enfermos, na questão a que me refiro é preciso dizer que não há divórcios, mas
divorciados, cada um com sua irrepetível história. Esta afirmação que parece
óbvia, nem sempre é levada em conta.
Complementariamente, sempre neguei que a doutrina oficial da Igreja
sobre a recusa da Eucaristia aos divorciados que voltaram a se casar, fosse uma
doutrina absolutamente fechada e definitiva. A atenta leitura das Cartas
Pastorais dos Bispos alemães do Reno Superior (1993 e 1994), confirmou minha opinião. Mas, sobretudo, quem
me deu maior segurança foi Bento XVI, quando no início de seu pontificado, no
colóquio com sacerdotes na Catedral de Aosta, ao ser perguntado sobre a
situação na Igreja dos divorciados que voltaram a se casar e sua proibição de
se aproximarem para comungar era uma questão fechada, afirmou: “Nenhum de nós tem uma receita já pronta;
sobretudo porque as situações são sempre diferentes. Sempre pensei que de
nenhuma maneira se podia dar a mesma orientação e solução a quem tinha padecido
a ruptura do matrimônio sacramental que a quem tinha sido o causante da
ruptura”.
Lei e consciência. O
respeito à própria consciência foi outra constante em meu trato com os casais
em “situação irregular”, quando me colocavam o problema da recepção da
Eucaristia. Nunca ocultei, nem margeei a doutrina e normativa oficial da Igreja
(Familiaris Consortio, 84), nem a enfeitei com minha opinião pessoal, mas
nenhum casal saiu de meu escritório sem solução em sua busca para viver na paz
dos filhos de Deus. Porque, em definitiva, não é o Evangelho que é preciso interpretar
segundo o Código de Direito Canônico, mas o Código Canônico segundo o Evangelho
da paz e do perdão.
Quando na lei positiva da Igreja não via solução possível, sempre me
remeti à própria consciência em
relação à possibilidade de aproximar-se da Eucaristia, porque a consciência,
segundo o texto definitivo do Vaticano II (GS, 16), é uma lei interior que não
procede do homem, mas de Deus. Sempre deve prevalecer o respeito à consciência,
mesmo no caso de que objetivamente a razão da decisão tomada fosse
objetivamente errônea (Dignitatis humanae, 2).
Tenho, neste momento, muito presentes em minha recordação, os casos de
casais, divorciados e recasados, que conservaram sua fé e formaram uma família
cristã, quando chegava o momento da Primeira Comunhão dos filhos e estes
perguntavam a seus pais por quê eles nunca comungavam, se acreditavam que Jesus
está realmente na Eucaristia. Se nesse momento, os pais tomavam a decisão de
comungar com seus filhos, essa decisão deve ser respeitada e ajudá-los para que
possam viver a alegria da fé que conservaram e souberam transmitir.
É preciso continuar pensando. O Papa Francisco convocou a III Assembléia
Extraordinária do Sínodo dos Bispos, sobre os desafios pastorais da família no
contexto da Evangelização. Como novidade, muito razoável, será realizado em
duas etapas: a primeira, agora em outubro (2014) e a segunda em 2015.
Já conhecemos o “Instrumentum Laboris” para a primeira etapa. Nele são
recolhidas e analisadas as respostas à ampla pesquisa realizada em toda a
Igreja sobre a situação atual da família cristã.
A pesquisa, por seu conteúdo e sua universalidade constitui uma
novidade muito esperançosa. Outros Sínodos dos bispos – talvez a instituição
teológico-jurídica mais importante do Vaticano II – se limitaram a perguntar e
recolher a opinião do setor clerical (hierárquico) da Igreja. Para este Sínodo
foi perguntado a toda a Igreja, que é majoritariamente laical. Esta novidade é
um sinal de esperança.
A situação da família tal como é e não como os clérigos às vezes
imaginam. Por isso, é um acerto a ser muito agradecido, que este Sínodo supere
em muito a visão clerical da família.
A primeira coisa era procurar ouvir a família. É um bom começo. À
vista dessas respostas, substancialmente recolhidas no “Instrumentum laboris”,
não creio que seja uma aventura pensar que a reflexão e o ensinamen-to sinodal
não vai se limitar ao problema dos divorciados que voltaram a se casar e sua
possível admissão à comunhão eucarística. E não se limitará a este problema
porque, por mais grave que seja, não é o principal problema da família cristã
neste momento da história.
Infelizmente, os divorciados que voltaram a se casar e que pedem aproximar-se
da Eucaristia são uma minoria.
O problema, mais amplo e grave, é o descenso impressionante da
natalidade, a diminuição dos matrimônios, e especificamente dos matrimônios
canônicos, a falta de autenticidade cristã na decisão de contrair matrimônio
sacramental, o aumento das uniões de fato, sem nenhum vínculo jurídico (que na
legislação de muitos países, essa aberração jurídica é chamada de “divórcio
expres”), o aumento progressivo dos fracassos matrimoniais e sua inevitável
incidência na transmissão da fé aos filhos, etc...
A familia cristã, a partir
da vertente religiosa, passa por momentos de especial e grave dificuldade. Com
esta afirmação, de nenhuma maneira diminuo a importância ao problema dos
divorciados recasados e sua admissão à Eucaristia, mas procuro situá-lo em uma
perspectiva necessariamente muito mais ampla.
Mas, voltando a este problema concreto, como canonista e buscando uma
solução na doutrina e normativa da Igreja, pessoalmente pediria duas resoluções
sinodais:
a)
Uma simplificação dos processos de nulidade canônica.
Porque é verdade que nem todos os matrimônios que fracassam são, na realidade,
nulos, mas muitos deles, sim, o são. E sem trair a verdade, é preciso facilitar
o máximo possível o procedimento processual para podê-lo provar. A experiência
de quase meio século assim me tem ensinado.
b)
A admissão, na doutrina e na normativa eclesial,
daquilo que se conhece como solução de foro íntimo: quando não há dúvida sobre
a validez canônica do primeiro matrimônio, mas estamos diante de um fracasso
irreversível do mesmo e diante da estabilidade e vivência cristã do matrimônio
que contraíram só a partir da lei civil. Nesses casos, o definitivo deveria ser
a decisão tomada em consciência pelo
casal em nova união, depois de uma séria reflexão na qual se poderia contar com
o parecer e o conselho de outras pessoas de fé, sacerdotes e leigos.
Sinceramente, não creio que a admissão desta solução, nestes casos, seja
praticar uma falsa misericórdia. Seria, antes, “testemunhar de um modo crível a Palavra de Deus
nas situações humanas difíceis, como mensagem de fidelidade, mas também como
mensagem de misericórdia” (cardeal
Walter Kasper)
(Fonte: www.religiondigital.com)