Teológico Pastoral

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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Divórcio e divorciados: reflexão a partir do Sínodo da Familia

José María Díaz Moreno, jesuíta canonista

Há 14 anos escrevi algumas páginas intituladas “Sobre o matrimônio canônico. Três questões abertas à reflexão”. Diante da petição que agora me faz o atual diretor da Revista “Razón y Fe”, voltei a ler aquelas páginas. Sinceramente tornaria a assiná-las hoje, sem mudar nada.
As questões abertas  às quais me referia (ocidentalismo estrutural do matrimônio canônico, a fé necessária para administrar e receber o sacramento do matrimônio e a situação eclesial dos divorciados que voltaram a se casar) continuam sem se fechar. Prescindo aqui das duas primeiras, que considero de vital importância e me limito ao problema dos divorciados que voltaram a se casar.
Procuro refletir, com a maior objetividade possível, minha experiência pessoal em quase meio século de atenção a casais canônicos irreversivelmente fracassados e nos quais, um ou os dois contraentes, ao não encontrar solução na normativa canônica vigente, refizeram seu matrimônio apoiando-se só nas leis civis.

Divórcio e divorciados. Este repetido encontro com casais em situação “irregular”, desde cedo me fez cair na conta da complexidade do problema e de que não se podia aplicar a todos uma mesma solução. Assim como em medicina se diz que não há enfermidades, mas enfermos, na questão a que me refiro é preciso dizer que não há divórcios, mas divorciados, cada um com sua irrepetível história. Esta afirmação que parece óbvia, nem sempre é levada em conta.
Complementariamente, sempre neguei que a doutrina oficial da Igreja sobre a recusa da Eucaristia aos divorciados que voltaram a se casar, fosse uma doutrina absolutamente fechada e definitiva. A atenta leitura das Cartas Pastorais dos Bispos alemães do Reno Superior (1993 e 1994),  confirmou minha opinião. Mas, sobretudo, quem me deu maior segurança foi Bento XVI, quando no início de seu pontificado, no colóquio com sacerdotes na Catedral de Aosta, ao ser perguntado sobre a situação na Igreja dos divorciados que voltaram a se casar e sua proibição de se aproximarem para comungar era uma questão fechada, afirmou: “Nenhum de nós tem uma receita já pronta; sobretudo porque as situações são sempre diferentes. Sempre pensei que de nenhuma maneira se podia dar a mesma orientação e solução a quem tinha padecido a ruptura do matrimônio sacramental que a quem tinha sido o causante da ruptura”.

Lei e consciência. O respeito à própria consciência foi outra constante em meu trato com os casais em “situação irregular”, quando me colocavam o problema da recepção da Eucaristia. Nunca ocultei, nem margeei a doutrina e normativa oficial da Igreja (Familiaris Consortio, 84), nem a enfeitei com minha opinião pessoal, mas nenhum casal saiu de meu escritório sem solução em sua busca para viver na paz dos filhos de Deus. Porque, em definitiva, não é o Evangelho que é preciso interpretar segundo o Código de Direito Canônico, mas o Código Canônico segundo o Evangelho da paz e do perdão.
Quando na lei positiva da Igreja não via solução possível, sempre me remeti à própria consciência em relação à possibilidade de aproximar-se da Eucaristia, porque a consciência, segundo o texto definitivo do Vaticano II (GS, 16), é uma lei interior que não procede do homem, mas de Deus. Sempre deve prevalecer o respeito à consciência, mesmo no caso de que objetivamente a razão da decisão tomada fosse objetivamente errônea (Dignitatis humanae, 2).

Tenho, neste momento, muito presentes em minha recordação, os casos de casais, divorciados e recasados, que conservaram sua fé e formaram uma família cristã, quando chegava o momento da Primeira Comunhão dos filhos e estes perguntavam a seus pais por quê eles nunca comungavam, se acreditavam que Jesus está realmente na Eucaristia. Se nesse momento, os pais tomavam a decisão de comungar com seus filhos, essa decisão deve ser respeitada e ajudá-los para que possam viver a alegria da fé que conservaram e souberam transmitir.
É preciso continuar pensando. O Papa Francisco convocou a III Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, sobre os desafios pastorais da família no contexto da Evangelização. Como novidade, muito razoável, será realizado em duas etapas: a primeira, agora em outubro (2014) e a segunda em 2015.
Já conhecemos o “Instrumentum Laboris” para a primeira etapa. Nele são recolhidas e analisadas as respostas à ampla pesquisa realizada em toda a Igreja sobre a situação atual da família cristã.
A pesquisa, por seu conteúdo e sua universalidade constitui uma novidade muito esperançosa. Outros Sínodos dos bispos – talvez a instituição teológico-jurídica mais importante do Vaticano II – se limitaram a perguntar e recolher a opinião do setor clerical (hierárquico) da Igreja. Para este Sínodo foi perguntado a toda a Igreja, que é majoritariamente laical. Esta novidade é um sinal de esperança.
A situação da família tal como é e não como os clérigos às vezes imaginam. Por isso, é um acerto a ser muito agradecido, que este Sínodo supere em muito a visão clerical da família.

A primeira coisa era procurar ouvir a família. É um bom começo. À vista dessas respostas, substancialmente recolhidas no “Instrumentum laboris”, não creio que seja uma aventura pensar que a reflexão e o ensinamen-to sinodal não vai se limitar ao problema dos divorciados que voltaram a se casar e sua possível admissão à comunhão eucarística. E não se limitará a este problema porque, por mais grave que seja, não é o principal problema da família cristã neste momento da história.
Infelizmente, os divorciados que voltaram a se casar e que pedem aproximar-se da Eucaristia são uma minoria.
O problema, mais amplo e grave, é o descenso impressionante da natalidade, a diminuição dos matrimônios, e especificamente dos matrimônios canônicos, a falta de autenticidade cristã na decisão de contrair matrimônio sacramental, o aumento das uniões de fato, sem nenhum vínculo jurídico (que na legislação de muitos países, essa aberração jurídica é chamada de “divórcio expres”), o aumento progressivo dos fracassos matrimoniais e sua inevitável incidência na transmissão da fé aos filhos, etc...

A familia cristã, a partir da vertente religiosa, passa por momentos de especial e grave dificuldade. Com esta afirmação, de nenhuma maneira diminuo a importância ao problema dos divorciados recasados e sua admissão à Eucaristia, mas procuro situá-lo em uma perspectiva necessariamente muito mais ampla.
Mas, voltando a este problema concreto, como canonista e buscando uma solução na doutrina e normativa da Igreja, pessoalmente pediria duas resoluções sinodais:
a)      Uma simplificação dos processos de nulidade canônica. Porque é verdade que nem todos os matrimônios que fracassam são, na realidade, nulos, mas muitos deles, sim, o são. E sem trair a verdade, é preciso facilitar o máximo possível o procedimento processual para podê-lo provar. A experiência de quase meio século assim me tem ensinado.
b)      A admissão, na doutrina e na normativa eclesial, daquilo que se conhece como solução de foro íntimo: quando não há dúvida sobre a validez canônica do primeiro matrimônio, mas estamos diante de um fracasso irreversível do mesmo e diante da estabilidade e vivência cristã do matrimônio que contraíram só a partir da lei civil. Nesses casos, o definitivo deveria ser a decisão tomada  em consciência pelo casal em nova união, depois de uma séria reflexão na qual se poderia contar com o parecer e o conselho de outras pessoas de fé, sacerdotes e leigos. Sinceramente, não creio que a admissão desta solução, nestes casos, seja praticar uma falsa misericórdia. Seria, antes, “testemunhar de um modo crível a Palavra de Deus nas situações humanas difíceis, como mensagem de fidelidade, mas também como mensagem de misericórdia”  (cardeal Walter Kasper)

(Fonte: www.religiondigital.com)


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