A JUSTIÇA SUBVERSIVA DE DEUS
“Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a
todos, começando pelos últimos até os primeiros” (Mt 20,8)
Outra
parábola surpreendente de Jesus onde o protagonista é o dono da vinha, um homem
bom e justo, que quer trabalho e pão para todos. Ao contá-la, certamente Jesus
despertou nos ouvintes um desconcerto geral. Os trabalhadores são contratados
em horários diferentes, ao longo do dia e, surpreendentemente, o dono da vinha
paga a todos um denário, que era o que uma família precisava para viver cada
dia na Gali-léia. Os que chegaram primeiro protestaram, considerando uma
injustiça o fato de terem trabalhado mais e recebido o mesmo valor pela diária.
Jesus revela uma concepção
revolucionária de justiça do Pai. Deus
desafia a justiça calculadora, auto-suficiente. Nós achamos justiça pagar algo
com seu preço equivalente. Mas Deus tem outros critérios: para Ele, justo
é o que é bom. A justiça de Deus é idêntica à sua bondade. O dono da
vinha pagou o salário que não era proporcional ao trabalho feito, mas sim
proporcional às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias.
Ele não se fixa nos méritos de cada um, se trabalhou muitas horas ou se
trabalhou poucas horas; o que lhe preocupa é que, esta noite, todos tenham o
que comer.
A parábola também revela que o
importante é a intensidade do trabalho e a intenção com que ele é realizado e
não apenas sua duração; revela também que o trabalho a serviço do Senhor já é
uma graça e um privilégio. No Reino não se trabalha por méritos ou para receber
recompensa. A retribuição já está dada no fato de “trabalhar
na vinha do Senhor”.
Outro aspecto que a parábola deixa transparecer
é que, além da relação de trabalho,
baseada no rendi-mento e regida pela justiça, existe a relação amorosa, baseada na generosidade e regida pela bondade e
pela ternura. Precisamente aos “primeiros” que foram trabalhar na vinha, o dono
teve de recordar uma coisa que é absolutamente lógica: “o
teu olho é mau porque eu sou bom?”
A última palavra é a chave de
todo o texto. Deus Pai se relaciona com seus filhos não a partir do critério do
mérito segundo o rendimento, mas a partir da generosidade. Ele não anda calculando o que cada um merece. Isso é
uma falsa idéia que serviu somente para ‘deformar” a imagem de Deus que todos
nós carregamos dentro. Muita gente fundamenta sua fé num Deus “deformado”,
porque é um Deus que se parece muito mais a um patrão que ajusta contas com
seus criados do que um Pai que quer sempre que seus filhos vivam. Deus é
generoso, e basta.
As pessoas que tem em sua cabeça
o Deus-patrão, que paga segundo os méritos e o rendimento, não entendem e nem
podem entender o Deus-Pai revelado por Jesus no Evangelho.
Há cristãos que passam pela vida
como “diaristas”, calculando o que vão “ganhar” e “merecer”. E há cristãos que
caminham pela vida como “filhos” do Pai do céu: eles não pensam em ganhos e em merecimentos;
só pensam em ser bons filhos, honrados por trabalharem na vinha do Pai e que
vibram quando alguém acolhe o chamado para colaborar. Para eles o que importa
não são os “méritos”, mas a “generosidade”.
Em geral, aqueles que vêem a si mesmos como os “primeiros”
e, portanto, como os que apresentam maior rendimento, os mais eficazes
e os melhores, o que fazem mais pelos outros, não podem tolerar que os “últimos”
sejam tratados como eles, que vêem a vida somente a partir da eficácia, dos
direitos, dos privilégios e do bom rendimento. Não possuem outros critérios em
sua cabeça e nem sequer em suas vidas há lugar para outras categorias ou outros
valores.
Ora, as pessoas que assimilaram
tais critérios são pessoas que não entendem as “razões do coração” e, portanto,
tais pessoas correm o perigo de não entender a generosidade e, o que é pior,
normalmente não estão capacitadas para compreender que a vida tem de se reger
por uma bondade tão grande que supere todas as obrigações do direito e da
justiça humana.
Ao dizer isso, estamos tocando na
utopia do Reino anunciado por Jesus.
Por isso, a ética de Jesus nos desconcerta, nos confunde. Pois não temos a
coragem de afirmar que na vida inteira, tanto na vida privada quanto na vida
social e pública, se não é a bondade e
o amor que prevalecem, fazemos desta
vida uma selva, um campo de batalha, um inferno, no qual caem os mais fracos e
tiram proveito os que dominam os outros.
Sabemos muito bem que todo aquele que pretende
situar-se na frente ou acima dos outros provoca divi-são, inveja,
ressentimentos e, definitivamente, rompe a proximidade entre as pessoas.
Ao contrário, aquele que não pretende postos de
honra e de importância, somente pelo fato de agir assim, produz uma corrente de
harmonia, de união, de humanidade, de proximidade entre as pessoas.
Na parábola de hoje há um “pecado de raiz” que
afeta a todos: a comparação com
outros. E da comparação brotam a inveja e a queixa. E quanto mais se
compara com outros, mais insatisfeito fica e mais se sente prejudicado por Deus
e pelo destino. Com isso, trava o fluir da própria vida.
Na parábola, o que deveria ser um motivo de
alegria para os primeiros que foram chamados, é sentido como ameaça à própria
segurança. Quando ouvimos as palavras dos “primeiros” – justificando-se e
pedindo reconhecimento - percebemos uma queixa mais profunda. É a que vem do
coração que acha que nunca receberam o que lhe era devido. Na sua queixa, o
trabalho é visto como escravidão.
É a queixa expressa de inúmeras maneiras, sutís ou não, formando uma
montanha de ressentimento.
Fechados
em si mesmos, só olham para si, para suas obras, para a duração do seu
trabalho; encouraçados na própria justiça, não há neles a mais mínima abertura
para a gratuidade e a alegria da comunhão, para a vivência
da filiação e da fraternidade.
Queixar-se é contraproducente e nocivo. Alguém que só reclama
é alguém difícil de conviver.
O trágico
é que, uma vez expressa, a lamúria leva
ao que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa queixa íntima é
sombria e pesada: condenação dos outros, condenação própria, justificativas...
entran-do numa espiral de auto-rejeição. À medida que se deixa arrastar ao
interior do vasto labirinto das suas queixas, fica mais e mais perdido, até
que, no fim, acaba achando-se a pessoa mais incompreendida, rejeitada,
negligenciada e desprezada do mundo.
Texto bíblico: Mt
20,1-16
Na oração: - é
na “queixa”, declarada ou não, que
reconheço em mim a
imagem dos “trabalhadores da primeira hora”. Quais são minhas queixas?
- não é fácil distinguir o
meu ressentimento e administrá-lo de
maneira sensata; esta é a realidade:
onde quer
que se encontre meu lado
virtuoso, aí também existirá sempre um lado queixoso
e ressentido;
-
abrir espaço em meu interior para
que a bondade e a gratuidade do Pai prevaleçam na minha relação com
os outros.