QUÊ VEMOS AO OLHAR A CRUZ?
“Os homens
nunca fazem o mal tão completamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem
por convicção religiosa” (Blaise Pascal)
“Sou Padre
católico e concordo plenamente com o Ministério Público de São Paulo, em querer
retirar os símbolos religiosos das repartições públicas… Nosso Estado é laico e
não deve favorecer esta ou aquela religião. A Cruz deve ser retirada! Aliás,
nunca gostei de ver a Cruz em Tribunais, onde os pobres têm menos direitos que
os ricos e onde sentenças são barganhadas, vendidas e compradas. Não quero mais
ver a Cruz nas Câmaras legislativas, onde a corrupção é a moeda mais forte. Não
quero ver também a Cruz em delegacias, cadeias e quartéis, onde os pequenos são
constrangidos e torturados. Não quero ver, muito menos, a Cruz em
prontos-socorros e hospitais, onde pessoas pobres morrem sem atendimento. É
preciso retirar a Cruz das repartições públicas, porque Cristo não abençoa a
sórdida política brasileira, causa das desgraças, das misérias e sofrimen-tos dos
pequenos, dos pobres e dos menos favorecidos”. (Frade
Demetrius dos Santos Silva)
“Essa é a única morte que nos pode dar força
diante das outras mortes” (Libânio)
Todas
as mortes são para nós um absurdo,
porque a morte é o nada que entra na nossa história, e seria nada mesmo, se não
houvesse essa morte de Jesus que deu sentido a todas as outras mortes. Só por
isso valeu a morte de Jesus. Diante dos sofrimentos e da morte somos convidados
a olhar
para este Homem que assumiu a morte para estar conosco, para estar ao nosso
lado; é nessas horas que vamos encontrá-Lo.
Sexta-feira Santa é convite a
entrar e mergulhar no mistério desse Homem que, ao mesmo tempo, assumiu nossa
humanidade ao extremo e nos mostrou a face misericordiosa de Deus Pai.
Jesus
não escapou de nenhuma experiência nossa, Ele não fugiu das experiências que
tecem o nosso cotidiano, Ele as viveu a cada dia de modo humano. E de repente
essa experiência humana chega a seu extremo, ao extremo da dor e do sofrimento.
Carregar
a cruz
não é um ato dolorista nem um ato suicida, é um ato de entrega da própria
existência.
Ao
contemplar o Crucificado, muitos questionamentos vão surgindo:
* a Cruz
é sinal de solidariedade ou sinal de poder, sinal de libertação ou sinal de
opressão, sinal de rebeldia ou sinal de submissão, sinal dos vencidos ou sinal
dos vencedores...?
*
Perguntamo-nos se é a Cruz dos condenados deste mundo ou a cruz dos que
condenam, a Cruz dos crucificados da terra ou a cruz dos que continuam
crucificando como em outro tempo crucificaram a Jesus?
A
primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota,
torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força
destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente
aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado
com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em
todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes. A partir da Cruz,
Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e
vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
O
Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio,
insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos
e morre nossa morte.
Despojado
de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de
toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu
mistério, como amor e somente amor.
Nós
cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de
Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os
crucificados da história.
Jesus
não morreu por vontade divina nem para expiar nossos pecados, senão que foi
condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo
e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos,
de todos os caídos.
Na
contemplação da Paixão fazemos memória comovida de Jesus, e ao “fazer
memória” confessamos que Ele está vivo, revivemos Sua vida, O ressuscitamos na
vida. Não buscamos argumentos lógicos e dog-máticos, mas sinais de vida
em toda Sua vida e também em Sua morte. Descobrimos, como afirma a teóloga
Mercedes Navarro, que “Jesus morreu de vida”: de bondade e de
esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade
arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu
de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido
recordar Jesus, olhando nas chagas de sua Cruz as pegadas de sua vida.
Os
relatos dos evangelistas nos recordam que nós cristãos somos seguidores de um Crucificado.
A
leitura orante do relato da Cruz de Jesus nos faz abrir os olhos para ler também nossa própria vida e a vida de
toda a humanidade. Não se trata meramente de uma referência externa, presa ao
passado, mas de uma mensagem de sabedoria permanente, que transcende o tempo e
o espaço.
“Porque
os judeus pedem sinais, os gregos procuram sabedoria, ao passo que nós anunciamos
Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, mas para
aqueles que são chamados é Cristo, força de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor.
1,22-24)
Situar-se,
pois, diante do Crucificado, acarreta diversas conseqüências para nossa vida;
podemos destacar as seguintes:
Denúncia:
a
Cruz nos fala de uma aliança de poderes, religioso e político, que acabaram
cruelmente com a vida de um inocente. Isso ocorreu com Jesus e, por desgraça, ocorre
ao longo de toda a história humana. Crer no Crucificado implica denunciar
ativamente todo tipo de opressão contra os inocentes.
Compromisso: para nós que
cremos em Jesus, todo e qualquer “crucificado” – seja qual for o motivo de sua
cruz – é alguém sagrado, que suplica nossa compaixão ativa e nossa
solidariedade eficaz.
Como
diz Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não
estamos dispostos a fazer descer da cruz aqueles que estão nela.
Esperança
de vida: a
Cruz – que se completa com a mensagem da ressurreição, com a qual forma um
único acontecimento – proclama que a Vida não morre; que, inclusive
naquelas circunstâncias nas quais parece que tudo é fracasso, a Vida abre
caminho; nenhuma morte é o final.
Ensinamento:
como
viver a própria cruz? Para começar, sabemos que, a rigor, não podemos
chamar “cruz” a todo sofrimento. Há sofrimentos evitáveis, em nós e nos outros,
contra os quais teremos que lu-tar; há outros inevitáveis, que precisamos
acolhê-los e dar-lhes sentido; e há outros, que são consequência de uma opção
de amor fiel: estes são a “cruz”, pois são a opção construtiva que
admiramos em Jesus: aqui é importante assumi-los lúcida, paciente e confiadamente.
Assim vivida, a Cruz é fonte de vida; tal é a mensagem do Crucificado: “viver como
Deus quer o que Deus não quer”.
Textos bíblicos: Mc 15,21-41 1Cor. 1,18-25