Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Dia de todos os Santos - 2017

SANTIDADE: o DNA de Deus no coração do ser humano

“Bem-aventurados sois vós...” (Mt 5,11)


Todo ser humano deseja ser feliz, e o desejo de felicidade é o dinamismo mais profundo que toda pessoa traz inscrita no íntimo do seu ser. Em outras palavras, a aspiração primeira que nos habita é a “alegria de viver”. Por isso, atentar contra a felicidade de viver é a agressão mais grave que se pode cometer contra o ser humano.
No entanto, na experiência de fé de muitas pessoas, a imagem de “Deus” não está associada à busca da “felicidade”. De fato, são muitos os que vêem em Deus um autêntico rival da própria felicidade, pois costumam relacionar Deus com a proibição de muitas coisas que lhes dão prazer e lhes fazem felizes, ou com a obrigação de fazer outras coisas que lhes são pesadas e desagradáveis. E, sobretudo, para muitos, “Deus” é uma ameaça, uma proibição constante, uma censura, um juiz implacável com o código de leis nas mãos... enfim, uma carga pesada que complica a vida, tornando-a sem sabor e sem sentido.
Além disso, muita gente vê em Deus a imposição de verdades que não compreende, a limitação da própria liberdade, a necessidade de submeter-se a poderes e autoridades que lhe causam rejeição...
E, para culminar, são muitos aqueles cuja experiência de fé é vivida de maneira negativa, alimentando culpas, acentuando os escrúpulos, fomentando divisões e conflitos internos, comportamentos de caráter obsessivo, práticas piedosas carregadas de moralismo e expiação..., e outras patologias.

É evidente que um “Deus” assim gera, nas pessoas, sentimentos de culpa, de insegurança e de medo.
Podemos, então, compreender perfeitamente porque muitas pessoas prescindem de Deus em suas vidas, inclusive, recusam abertamente tudo o que se refere a Deus, à religião e aos seus representantes.
Um “Deus” que é percebido e sentido como um problema, como uma presença que entra em conflito com nossa felicidade, por mais que nos digam que Ele é bom, que nos ama e que é Pai, é e será sempre um “deus” inaceitável e até insuportável. Um Deus assim não tem e nem pode ter relação alguma com a aspiração maior que carregamos dentro de nós: o desejo de sermos felizes na vida.
Não é fácil passar de uma espiritualidade que fez do sofrimento e do sacrifício um lugar de redenção, de santidade, de predileção por parte de Deus, a uma espiritualidade que integra a busca da felicidade, não só como um direito humano, senão como um sinal do Reino.
Falar de felicidade nos leva necessariamente a nos perguntar se é possível ser felizes em um mundo cheio de dores, injustiças, mortes prematuras, solidão, vida sem sentido...
No entanto, como seres humanos não podemos renunciar à busca da felicidade. O importante é que não vivamos esta busca de uma maneira solitária, nem que nossa busca seja à custa dos outros ou à margem das grandes maiorias sofredoras. A isso não se pode chamar felicidade.

A felicidade é a busca fundamental do ser humano, o sonho da humanidade desde o começo da história. O difícil é ter sabedoria para poder reconhecer os caminhos que nos conduzem a ela.
Nesse sentido, a liturgia da festa de Todos os Santos e Santas vem nos indicar este caminho, ao apresen-tar o texto das Bem-aventuranças como um programa para viver a felicidade; e o motivo primeiro é porque todas elas são, na verdade, o caminho da santidade universal (acima e além de toda religião, pois elas são simples e profundamente humanas). As Bem-aventuranças são como o mapa de navegação para nossa vida; são o horizonte de sentido e o ambiente favorável para nossa santificação, entendida como empenho para viver com mais plenitude, segundo o querer de Deus.
A primeira “canonização”, pois, teve lugar quando Jesus, num determinado dia, subiu à montanha e com grande solenidade declarou felizes os pobres, os aflitos por causa do Reino, os mansos que não recorrem à violência, os que tem fome e sede de justiça, os misericordiosos, os que não tem segundas-intenções no coração, os que trabalham em favor da paz, os perseguidos por causa da justiça. Todos eles(as) são declarados felizes porque são os que mais se parecem com Deus, ou seja, deixam transparecer em suas vidas a santidade d’Ele. E a felicidade está justamente na vivência do chamado universal à santidade.

A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta na pessoa o desejo e a disposição de “sair de si mesma” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Criação.
“Viver a partir da santidade de Deus” representa a melhor definição da santidade cristã: reconhecer-nos como quem recebe tudo de Deus, deixar-nos amar e guiar por Ele, assemelhar-nos a Ele para fazer carne viva em nós os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem com as pessoas.

Em outras palavras, a santidade significa viver o divino que há em nós.
Só descobrindo o que há de Deus em nós, poderemos cair na conta da nossa verdadeira identidade.
Todos somos santos(as), porque nosso verdadeiro ser é o que há de Deus em nós; embora a imensa maioria das pessoas não tem consciência disso ainda, não podemos deixar de manifestar o que somos. Somos santos(as) pelo que Deus é em nós, não pelo que nós somos para Deus. Para Jesus, é santa a pessoa que descobre o amor que chega até ela sem mérito algum de sua parte, mas deixa-se envolver por este amor expansivo e passa a viver uma presença amorosa.

Na festa de Todos os Santos e Santas somos convidados a deixar semear na terra de nossa vida o anúncio mais impressionante de felicidade que Jesus nos faz. Como não ficar maravilhados diante das bem-aventuranças e deixar que cada uma delas nos des-vele e nos fale d’Ele? De fato, elas são o auto-retrato de Jesus; antes de proclamá-las, Ele as viveu na radicalidade.
As bem-aventuranças constituem a carta magna do Reino e princípio fundamental do(a) seguidor(a) de Jesus; nela aparece a visão que Jesus tinha e desejava para o ser humano. Este texto não é apenas uma normativa, uma ética, mas um modo de entender a vida humana; elas oferecem um programa de felicidade e de esperança, ou seja, elas nos ensinam a ser ditosos, no desprendimento e na solidariedade, na pureza de coração e de vida, na liberdade radical, na esperança... tanto no nível pessoal como comunitário.
As bem-aventuranças compartilham uma mesma visão “macro-ecumêmica”: valem para todos os seres humanos. O Deus que nelas aparece não é “confessional”, não é “patrimônio” de uma religião específica; não exige nenhum ritual de nenhuma religião, senão o “rito” da simples religião humana: a pobreza, a opção pelos pobres, a transparência de coração, a fome e sede de justiça, a luta pela paz, a perseguição como consequência do empenho em favor da Causa do Reino... Essa “religião humana básica fundamen-tal” é a que Jesus proclama como “código de santidade universal”, para todos os santos e santas, os de casa e os de fora, os do mundo “católico” e os de outras expressões religiosas...

Texto bíblicoMt 5,1-11

Na oração: A chave da felicidade
                     está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
A santidade é luz expansiva do divino que se faz visível no “modo contemplativo” de viver.
- Sua presença junto às pessoas é transparência da santidade de Deus?



terça-feira, 24 de outubro de 2017

Homilia dominical - dia 28 de outubro de 2017

UM CORAÇÃO CHEIO DE DEUS E DE NOMES

“Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos: amor a Deus e amor ao próximo”

Jesus, no seu ministério em favor da vida, se depara com inúmeras perguntas; muitas delas escondiam uma pretensão de colocá-lo à prova e desmoralizá-lo diante dos outros. Desta vez aparece uma pergunta funda-mental e radical: “qual é o primeiro de todos os mandamentos da Lei”?
Jesus, em primeiro lugar, responde à pergunta tal e como lhe fazem. De sua boca, o mandamento bíblico do amor recebe toda sua profundidade, não somente como compêndio da lei, mas como síntese da vida: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento”. Trata-se de amar com tudo o que existe em nosso ser, em termos de capacidade de decisão (coração), de alento vital (alma), de consciência (mente) e de força vital (forças).
Amar a Deus com todo o coração é amá-lo com o que há nele: com seu lado de luz e de sombra, com seu trigo e sua cizânia, com sua terra boa e sua terra baldia...; podemos amá-lo sem medo, podemos amá-lo sem ter que esconder nossas fragilidades, podemos amá-lo a partir de qualquer situação de nossa vida, pois nada do que é humano fica fora, tudo se converte em motivo para deixar-nos habitar por sua ternura amorosa. Isso significa que não teremos que esperar chegar à perfeição para poder amá-lo com todas as nossas forças, que não precisamos ter tudo resolvido dentro de nós, que não temos que ter a casa de nossa vida ordenada... mas que é Ele quem, ao entrar em nosso interior e habitá-lo, vai ordenando tudo à sua maneira e nos faz capazes de acolher e de amar os outros.

Mas, Jesus aproveita também para responder à pergunta que não lhe fora feita, mais profunda e revelado-ra. Jesus é mestre em fazer nova pergunta em cima de outra pergunta; Ele não perde a ocasião e aproveita das perguntas para chamar a atenção para algo mais importante.
Jesus responde, em primeiro lugar, aquilo que todos já conheciam; mas, para que não ficassem acomoda-dos com o primeiro mandamento, acrescenta-lhes o segundo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
No fundo, Jesus veio lhes dizer que sim, que o principal é o amor a Deus, mas que o amor a Deus não era verdadeiro se não era acompanhado do amor ao próximo. Mais ainda, Jesus quis indicar que o manda-mento do amor ao próximo é de igual valor e de igual importância que o mandamento do amor a Deus.
Além disso, Jesus simplificou as coisas, porque frente aos 248 preceitos e as 365 proibições reduziu tudo a dois. E com isso era suficiente: “ama a Deus e ama o teu próximo”.
Por esta resposta eles não esperavam, mesmo dizendo-lhes que estes dois mandamentos são toda a Lei. E que com estes dois mandamentos todas as demais normas e leis são secundárias.

Nós, certamente, não temos a pretensão de tentar e nem de colocar Jesus à prova. Mas é possível que tenhamos medo de lhe fazer a mesma pergunta dos fariseus, pois temos uma infinidade de leis, a maioria inúteis e sem sentido. Encantam-nos a floresta de leis; basta olhar o Código de Direito Canônico e nos encontramos com 1752 leis e vários Apêndices; cada Diocese e paróquia tem suas normas e leis; e se levarmos em consideração o Código Civil, o Código Penal e demais códigos...
Jesus é muito mais simples e direto; para Ele dois mandamentos são suficientes.
Nós também temos medo de lhe perguntar pelo essencial, pois temos medo de lhe perguntar sobre o amor; até nos atreveríamos perguntar pelo amor a Deus, mas que não diga que temos de amar o próximo “como a nós mesmos”.
No entanto, no seguimento e identificação com Jesus, precisamos de dois remos: o amor a Deus e o amor ao próximo. Se nos falta um deles, nossa fé não caminha. Não caminha se não amamos a Deus com todo nosso coração; tampouco caminha se não amamos os outros “como a nós mesmos”.
Temos inventado mil e uma devoções e nos sentimos bons; criamos uma infinidade de orações e de ritos, e nos sentimos merecedores do prêmio celeste; cumprimos uma infinidade de ritos para pacificar nossa relação com Deus. E, no entanto, sabemos que de nada vale todo este arsenal de coisas piedosas e rituais, se não somos capazes de amar. O coração que não ama é um coração de casca, estéril, seco... O coração que não ama é um coração vazio de Deus e dos seres humanos.

“No final do meu caminho me dirão: - E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes” (D. Pedro Casaldáliga).
O coração humano deveria ser também uma espécie de agenda onde, como diz Casaldáliga, no final da vida, quando seremos perguntados sobre o amor, nos bastará abrir o coração para que Deus o veja cheio de nomes. E isso será um dos sinais de que temos vivido e amado.
Quando amamos, escrevemos o nome das pessoas em nossos corações. Por isso, podemos imaginar o coração de Deus cheio de nomes: o teu, o meu e o de todos. Também os daqueles a quem ninguém chama e a quem ninguém os leva em seu coração.
Quando quero saber se de verdade amo a Deus, olho se levo seu Nome em meu coração.
Quando quero saber se de verdade amor o meu próximo, me pergunto quantos nomes carrego escritos no coração. Quando quero saber a quantos não amo, olho o meu coração e vejo quantos nomes apaguei ou quanto nunca escrevi nele ou quantos faltam.
Ser seguidor(a) de Jesus é encher o coração de nomes, muitos deles nunca temos escutado e até é possível que nem saibamos pronunciá-los.
O(a) seguido(a), que entrega sua vida pela causa do Evangelho e por amor à humanidade, tem o coração cheio de nomes, inclusive aqueles que nem conhece e nem conhecerá nunca, mas que ele(ela) continua amando e continua investindo sua vida para que algum dia também eles entrem no fluxo do amor divino.

Esta é a razão pela qual o “segundo mandamento” – “amarás o teu próximo como a ti mesmo” – é “semelhante ao primeiro”. Não amamos por imposição, mas porque somos amor. No amor, nada é obrigação, tudo é dom! É certo que podemos viver na superfície mais egocêntrica, ignorando e bloque-ando nossa realidade mais profunda. Mas, na medida em que vivemos a partir dessa realidade profunda, tudo aparece unificado e harmonioso; tudo fica admiravelmente integrado: uma existência sem costuras, sem emendas, tecida e mantida no Amor fontal de Deus.
O amor unifica tudo a partir do mais profundo. Ele dá unidade a toda a nossa atividade, por mais dispersa que ela possa parecer. O amor é a força que pode dinamizar e unificar nossa existência. Podemos fazer muitas coisas, comprometer-nos com mil atividades, todos os dias; no entanto, o mais importante é fazê-lo sempre da mesma maneira: com amor.
O amor estimula o que há de melhor em nós. Ele ilumina nossa mente propor-cionando clareza de pensamento e criatividade; dinamiza toda nossa pessoa; faz crescer nossas energias; desperta nossa capacidade para a busca do que é me-lhor; dá um novo colorido à nossa vida cotidiana; capacita-nos a realizar nossas atividades com mais inspiração; enraíza-nos no mais profundo da vida, nessa corrente vital que flui de um Deus, que é mistério de amor. É por isso que o amor cura e salva.

Texto bíblicoMt 22,34-40

Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um
                       clima de ação de graças.




quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Nossa Senhora Aparecida - 12 de Outubro de 2017

APARECIDA: uma mulher, uma festa, uma presença inspiradora


“A segunda postura: Deixar-se surpreender por Deus. Quem é homem e mulher de esperança sabe que, mesmo em meio às dificuldades, Deus atua e nos surpreende. A história deste Santuário serve de exemplo: três pescadores, depois de um dia sem conseguir apanhar peixes, nas águas do Rio Paraíba do Sul, encontram algo inesperado: uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, tornar-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, como o vinho novo, no Evangelho que ouvimos. Deus sempre nos reserva o melhor. Mas pede que nos deixemos surpreender pelo seu amor, que acolhamos as suas surpresas. Confiemos em Deus! Longe d’Ele, o vinho da alegria, o vinho da esperança, se esgota. Se nos aproximamos d’Ele, se permanecemos com Ele, aquilo que parece água fria, aquilo que é dificuldade, aquilo que é pecado, se transforma em vinho novo de amizade com Ele” (Homilia do Papa Francisco em Aparecida – 2013)
Uma festa mariana é sempre um motivo de alegria; a festa da mãe Aparecida é, para o povo brasileiro, um momento de inspiração e de profundidade. Neste dia festivo, o que se pode afirmar de mais grandioso a respeito de Maria é que ela foi uma mulher absolutamente humana; nessa humanidade devemos descobrir a grandeza de sua pessoa. Se fundamentamos sua grandeza nos brocados e indumentárias que fomos acrescentando durante séculos, estaremos minimizando seu verdadeiro ser e dando a entender que, em si mesma, Maria não é suficientemente importante, já que a valorizamos mais pelos adornos que vamos  colo-cando sobre ela.
 Em Maria descobrimos aquilo que, na essência, todos somos. Conhecer seu verdadeiro ser é a chave para a interpretação atualizada da festa de hoje. Não devemos nos conformar em olhar Maria para ficarmos extasiados diante de sua beleza. O que descobrimos nela, devemos também descobrir em nosso próprio ser. O que importa realmente é que em Maria e em todo ser humano há um núcleo intocável que nada nem ninguém pode manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade, seria o começo de uma nova maneira de entender a nós mesmos e de entender os outros.

Maria é grande em sua simplicidade e não temos nada que acrescentar ao que ela foi desde o princípio. Basta olhar para o seu verdadeiro ser e sua maneira original de se fazer presente junto aos outros para, então, descobrir o que há de Deus em seu interior; isso é que sempre será puríssimo, imaculado. Se descobrimos isso nela, é para tomar consciência de que também está presente em cada um de nós.
Como a imagem negra e despojada encontrada no rio Paraíba do Sul, Maria não necessita nenhum adorno. Néscio é aquele que pinta um diamante; tolo é aquele que cobre uma pérola de purpurina; fantasioso é aquele que pretende enfeitar uma rosa que acaba de se abrir pela manhã; insensato é aquele que tenta acariciar uma borboleta que acaba de sair de seu casulo. Maria é o diamante, a pérola, a rosa, a borboleta. Livre de toda indumentária, ela é mais formosa.
De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos também em nós mesmos. Somos milhões de diamantes que habitamos esta terra, embora cobertos de terra e barro. De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos em nós em nós também.
Contemplar Maria e deixar des-velar (tiar o véu) a nobreza humano-divina escondida em nosso interior.

Em todos nós, algo de bom, de inocente, de imaculado, continua a dizer “sim” ao incompreensível Amor... É preciso encontrar esta dimensão interior por onde entra a vida, este lugar por onde entra o amor. É uma experiência de silêncio, uma experiência de intimidade, alguma coisa de mais profundo do que aquilo que aparentamos ser; existe em nós alguma coisa de mais divino e mais profundo, que é a beatitude original.
Somos habitados por uma realidade mais profunda que a nossa resistência, um sim mais profundo que todos os nossos “nãos”, uma inocência original que todos os nossos medos e feridas...
Maria é a nossa verdadeira natureza, é a nossa verdadeira inocência original, aberta à presença do divino.
Nesse sentido dizemos que ela é Imaculada como referência única de uma humanidade que também é capaz de escutar Deus e de responder-lhe; ela é Imaculada porque nos “des-vela” que também nós podemos romper as amarras que nos desumanizam; ela é Imaculada porque “re-vela” que o ser humano é “lugar” de abertura a Deus, que é possível viver em liberdade, dialogando com os outros, a serviço da comunhão e da vida.

Porque se fez presente a Deus, Maria vai se fazendo presente na vida das pessoas de uma maneira sempre mais criativa e atenta; presença que se faz manancial de vida para os outros, tornando-se, ao mesmo tempo, amiga, irmã e mãe de todos.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desperta e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias  que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.

Escutando as palavras de Maria – “Fazei tudo o que Ele vos disser!” -  nosso ouvido interior se afinará para perceber melhor o clamor dos empobrecidos e excluídos da festa da vida. É o clamor de nosso mundo.
Maria de Nazaré nos recorda que a falta de vinho é esquecimento da fraternidade, é falta de amor e de comunhao, é ausencia do Reinado de Deus entre nós. Por outro lado, em meio a tantas carencias, também se fazem visíveis os sinais do Reino: desejos de solidariedade, gente que protege a vida, homens e mulheres que buscam a Deus e se comprometem com a vida, tantas vezes ameaçada. Maria nos atrai para a festa que nunca se acaba: compartilhar nossa existencia com muita gente e viver sob os impulsos do Espírito.
A festa de hoje nos ajuda a ativar uma sensibilidade solidária, pois é muito frequente estar próximo e não perceber os outros, estar junto e não ter consciência dos problemas e dificuldades dos outros. É preciso ampliar o olhar para entrar em sintonia compromissada com a realidade carente.
O mundo nos reconhecerá pelos nossos gestos de solidariedade.

EvangelhoJo 2,1-11

Na oração: Com a imaginação, situe-se em Caná e coloque-se junto a uma
                     das talhas cheias de água que João, intencionalmente, diz que eram “de pedra, destinadas às purificações rituais dos judeus”. É a maneira dele fazer ver a rigidez pétrea e a inutilidade da água na hora de animar uma festa.
- Sinta tudo o que há de água depositada e parada em sua vida, com a desculpa de usá-la como purificação na relação com Deus; sinta-se como talha de pedra, fria e rígida, que o(a) torna incapaz de mobilizar sua vida em favor da vida.
- Reconheça e agradeça tudo o que na sua vida se parece com o vinho, que lhe dilata e lhe dá sentido de festa.
Vinho expansivo que provoca alegria, abundância, reconstrução de novas relações...



segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Homilia Dominical - 8 de outubro de 2017

HÁ UMA VINHA PLANTADA DENTRO DE NÓS


“Certo proprietário plantou uma vinha...” (Mt 21,33)

Segundo o relato da Criação, nós viemos da argila, do húmus... Por isso carregamos em nosso corpo os mesmos elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais...
O universo inteiro mora, adormecido, dentro de nossos corpos. Cada ser humano carrega latente em seu íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não só de animais, plantas, pássaros, peixes, minerais... como também de homens e mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. Há um universo inteiro dentro do corpo, universo mais fantástico, mais colorido,  mais belo que o universo que existe do lado de fora.
E o maior desafio é, justamente, a convivência e a harmonia com todo o universo que carregamos em nosso próprio interior.
Partindo do evangelho de hoje, podemos dizer que há uma vinha em nosso interior, plantada com todo cuidado. A vinha interior é plantada por Deus em função da vida; por isso ela é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. Ela deve ser o lugar da fecundidade, da convivência e da celebração.
A vinha interior é o “mundo” de nossa psique, de nossos afetos, de nossas energias, de nossa espirituali-dade, de nossos sentimentos e desejos, de nossas relações básicas, quer conosco mesmos e com os outros, quer com as criaturas e com Deus. Quando todos estes dinamismos estão pacificados e integrados, cria-se um “cosmos” interior, expressão da “vinha secreta” que todos carregamos.
Esta vinha é expansiva, acolhedora, aberta a todos, compartilhando seus frutos abundantes. Ela é lugar de movimento, de encontro, de desafio, lugar provocativo e criativo..., enfim, lugar carregado de presenças. Somos a verdadeira vinha a partir da qual Deus nos encontra e se dá a conhecer; cada um de nós é autêntica vinha da eterna presença de Deus.

Na perspectiva bíblica, a imagem da vinha nos fala de convivência, harmonia, alegria, de acolhida e da gratuidade, por ela ser dada em herança.
Os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares trazem, como que enraizados nas fendas mais profundas de sua interioridade, sonhos de rara beleza. São desejos de convívio, de superação da dor e da solidão, sonhos de fraternidade e da harmonia... O “eu interior” é uma vinha que se des-vela e se re-vela aos olhos encantados.Toda pessoa possui, nas profundezas de si mesma, um lugar misterioso onde a vinha se esconde, muitas vezes em meio a entulhos de feridas, traumas, rejeições.... Ela deve reencontrar a “vinha perdida”, não fora mas nas profundezas de si mesma. Há dentro dela uma vinha secreta, fechada, que precisa ser aberta.
Caminhar pelo vinha interior é uma aventura, um desafio... Essa é a peregrinação interior: ampliar o espaço da vinha para que ela seja sempre lugar da acolhida e da festa.
É nesta direção que a imagem bíblica da vinha também aponta: torná-la uma fonte de bênçãos, de comunhão com as outras pessoas e estreitamento de relações com o próprio Criador. A vinha é o lugar no qual não só existimos e revelamos nossa verdadeira identidade, mas onde somos chamados a uma pleni-tude de vida, em aliança e comunhão com Deus e com todos.

No entanto, há sempre em nós uma tendência a delimitar, defender e fechar-nos em nossa própria vinha. Isso fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos aquilo que está para além da nossa vinha. São grandes os riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza atrofia a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. A própria vinha se torna uma “bolha de proteção” e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que fazemos.
Contemplando o cenário do nosso interior vamos também tomando consciência que perdemos o sentido da corrente da vida e de sua imensa diversidade. Esquecemos a teia das inter-dependências e da comu-nhão de todos com a Fonte originária de tudo.
Segundo a imagem bíblica da Vinha, quando rompemos a aliança com Deus e nos afastamos d’Ele, ela fica estéril. Por nossa atitude de arrogância e de autossuficiência, nós nos fazemos centro e vamos deixando que nossos instintos de poder, vaidade, prestígio... ocupem o espaço da vinha interior. Este auto-centramento se revela como uma força de desintegração de nós mesmos com nossa fonte Original, como força de auto-destruição e, por fim, como ruptura de comunhão com o Todo.
A “centração em nós mesmos”, sem levar em conta a rede de relações que nos envolve, provoca a quebra da “religação” com tudo e com todos. Este é o veneno que nos corrói por dentro: a petrificação de nossa interioridade, o embrutecimento de nossa sensibilidade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com todos...
E nossa vinha interior deixa de ser fecunda e oblativa.

Deus investiu pesado no plantio e no cuidado desta vinha interior, esperando frutos saborosos.
Uma leitura honesta do texto do evangelho de hoje nos move a fazer-nos graves perguntas: Estamos produzindo em nossos tempos os frutos que Deus espera de sua vinha: justiça para com os excluídos, solidariedade, compaixão para com quem sofre, a vivência do perdão...?
No entanto, quê coisas horríveis fizemos com a vinha interior!
Ferir nossa vinha é ferir o próprio Criador, é atrofiar a vida e suas possibilidades.
Quando observamos esta vinha outra verdejante, lugar da criatividade, da relação, da comunhão... e agora entulhada de lixo, de contaminação... uma sensação de violação, de sacrilégio, se manifesta em nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas de nosso ser: “Que fizestes de minha vinha!”
Deus não tem por que abençoar uma vinha estéril da qual não recebe os frutos que espera. Não tem porque identificar-se com nossa mediocridade, nossas incoerências, desvios e pouca fidelidade. Se não respondemos às suas expectativas, Deus continuará abrindo caminhos novos para seu projeto de salvação com outras pessoas que produzam frutos de justiça.

Ampliar a vinha do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudan-ças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando a “vinha interior”, abrasada e iluminada pela força do Espírito, começa a romper as paredes de proteção e se conecta com a grande “vinha exterior”: lugar da missão, do compromisso, do empenho em favor do Reino.
Não tem sentido ampliar a “vinha externa” se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade sente-se bloqueada... Vinha ampla é convite a sonhar alto, a pensar grande..., ousar ir além, rompendo o modo rotineiro de viver.
Por isso, nós e o universo só seremos felizes quando todos formos uma grande vinha, por onde o Senhor passeia, à hora da brisa fresca da tarde (Gen 3,8) . A vinha é a face graciosa que Deus oferece à huma-nidade. Na vinha, Deus realiza seu sonho. E fica feliz.

Texto bíblicoMt 21,33-43

Na oração: deixe o Espírito transitar pela sua vinha interior, para
                     que aí Ele estabeleça o “cosmos” (harmonia e bele-za”) e crie um coração novo, de onde brotarão frutos de refinado sabor.
- Dê nomes aos “frutos” de sua vinha interior.




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