Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

OLHAR ESPERANÇADOR, DESBRAVADOR DE FUTUROS


“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)

Somos seres de “travessia”...
Mais uma vez nos deparamos com ritos de passagem: final de ano, a expectativa surpreendente da Epifania, a renovação dos desejos que nos humanizam, a ansiedade diante dos desafios do Novo ano...
Tempo celebrativo marcado pela gratidão, para acolher as experiências vividas e aprender com elas; tempo de inspiração e criatividade diante da certeza do novo; e, sobretudo, tempo para re-compor a esperança, tantas vezes reprimida ao longo do ano.
Ano Novo nos situa no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se alimenta de pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa criança a presença do Inefável.

 Mesmo diante dos profundos dilemas sociais, achamos possível ser e viver de outro modo, inventamos e reinventamos opções, criamos novas saídas... e sem cessar, sonhamos com o “mais” e o “melhor”.
Ainda que soframos ventos contrários e as nuvens se adensem no horizonte, sabemos e confessamos com o profeta Jeremias: “Há uma esperança para o teu futuro” (31,17).
Precisamente por vivermos tempos difíceis, precisamos mais do que nunca da pequena e teimosa espe-rança. Pois “a esperança é uma filhinha que todas as manhãs acorda, lava-se e faz a sua oração com um rosto novo” (Péguy).
Nesse sentido é que compreendemos a esperança como produtora e gestora do futuro; ela se revela como espera criativa e nos prepara para acolher as surpresas da vida.
A esperança é algo constitutivo de nossa humanidade, ao mesmo tempo que nos humaniza; ela carrega uma força misteriosa, um sopro criador que nos leva a olhar tudo com fé e otimismo.
O nosso interior está habitado por esperanças de todo gênero. O que faz a diferença é a qualidade, a consistência e o realismo de nossas esperanças.

A esperança, hoje como sempre, não é virtude de um instante. É a atitude fundamental e o estilo de vi-da daqueles que enfrentam a existência “enraizados e edificados em Jesus Cristo” (Col.2,6)
Ela não é a virtude própria dos momentos fáceis. Ao contrário, a esperança cristã cresce, se purifica e se enriquece em meio aos conflitos.
Frente a uma “visão imediatista” da história, sem meta e sem sentido algum, a esperança cristã  leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente.
Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala.

Santo Agostinho dizia que a esperança tem dois filhos: a indignação e a coragem.
Indignação ao ver como as coisas estão e coragem para não permitir que continuem assim.
Nós nos indignamos quando nos sentimos impotentes ante a injustiça, a violência, o abuso do poder, a marginalização em que vivem milhões de crianças e jovens sem futuro… Entretanto sabemos bem que a indignação não basta para mudar essas realidades que não apreciamos.
Por isso Santo Agostinho fala do segundo filho: a coragem, palavra que deriva do latim “cor”, coração.
Ter coragem significa ter coração. A primeira prova de coragem é, portanto, atrever-se a escutar o próprio coração e rebelar-se diante da impotência. Coragem é colocar o coração na frente, e não os cálculos racio-nais da mente ou os medos paralizantes.
Aquele que vive com esperança se sente impulsionado a fazer o que espera.
Desejar algo é antecipar o futuro e procurar uma maneira de torná-lo presente.

“Estamos abastecidos de futuro” (Pedro Arrupe)
Há um dado que é absolutamente evidente nestes tempos pós-modernos: o futuro que vamos construindo “carece de marcas de certeza” (Lefort).
Nossa concepção de futuro se atrofiou: vivemos “tempos sem futuro”. Não podemos prever o futuro com segurança. Hoje, o futuro se apresenta a nós muito mais aberto que em qualquer outra época de nossa humanidade. Os conhecimentos, os meios de comunicação, as técnicas... não nos asseguram uma certeza do que virá. Aventurar no futuro torna-se cada dia mais complexo e difuso, pois predomina a incerteza que nós mesmos geramos.
Vivemos uma geração que teme o futuro; por isso vivemos um “presente esticado” porque o futuro nos apavora. Já que preferimos não imaginar o futuro, alargamos o presente.
Precisamente porque faltam valores e um sentido para a existência é que se irrompe o medo do futuro, a acomodação, o refúgio no efêmero e no imediato, sem raízes e sem esperança. O medo do futuro nos ajuda a entender a mediocridade e o vazio do presente.
Ao reduzir nossos sonhos e aspirações ao consumo, reduzimos nossa humanidade e nossa vida.

Precisamos voltar a ter um futuro onde ancorar; um futuro que valha a pena  imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente ao futuro.
O futuro que espera se converte em projeto de ação e compromisso, alimenta a solidariedade, desperta a ternura, a acolhida compassiva...
E este compromisso é precisamente o que gera esperança no mundo.
No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.

Texto bíblico: Lc 2,16-21

Na oração: Esperança, indignação, coragem.
                   Preciosas atitudes para este novo tem-po em que temos o privilégio de viver. Você se atreveria de fazer suas essas atitudes? Você se arriscaria, por um novo começo? Que riscos concretos você se sente chamado a assumir?

Um Ano Novo feito de promessas, de caminhos... de ternura infantil.
Um ousado 2015, carregado de esperanças.


fonte: http://www.ceijesuitas.org.br/




sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

VIVA EM SUA FAMÍLIA A GRANDEZA DE SER PLENAMENTE HUMANO


“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2)

A liturgia de hoje nos propõe a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos pudéssemos celebrar e aprofundar aquilo que pode ser  um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.
Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e con-sumista: construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e inspiradora de toda família.
Entre os cristãos defende-se quase instintivamente o valor da família, mas nem sempre paramos para refletir no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.
Como seria uma família inspirada em Nazaré?
Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fechadas exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilidade para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações sadias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?...

No evangelho da Infância em são.Lucas, o relato do nascimento de Jesus é desconcertante: não há lugar para acolhê-lo; os pastores o encontram deitado em um presépio, sem outras testemunhas a não ser Maria e José. Temos a impressão que Lucas sente a necessidade de construir um segundo relato no qual o meni-no é resgatado do seu anonimato para ser apresentado publicamente. E o Templo de Jerusalém é o lugar mais apropriado para que Jesus seja acolhido solenemente como o Messias enviado por Deus a seu povo.
Mas, de novo, o relato de Lucas é desconcertante. Quando os pais se aproximam do Templo com o menino, não são os sumos sacerdotes nem os demais dirigentes religiosos que saem ao seu encontro. Também não é recebido pelos mestres da Lei que pregam suas “tradições humanas” nos átrios do Templo. Jesus não encontra acolhida nessa religião fechada em si mesma e distante do sofrimento dos mais pobres; não encontra amparo em doutrinas e tradições religiosas que não ajudam a viver uma vida mais digna e mais humana.
Somente os olhos apagados de dois idosos (Simeão e Ana) conseguem ver o Salvador; somente os braços cansados desse casal ancião conseguem abraçar o Salvador; somente eles conseguem estreitar em seus corações Aquele que é a Esperança dos povos.
Uma vida cheia de promessas e esperanças; agora, marcados pela gratidão, cantam de alegria e louvam o privilégio de acolher a Quem tinham esperado durante toda uma vida.

Em seguida, a família de Jesus retorna ao cotidiano de Nazaré, onde o menino “crescia” e se “humaniza-va”. De fato, o ambiente familiar é o lugar privilegiado para o amadurecimento físico, espiritual, social... de todo ser humano. É também o espaço propício para que cada um vá desenvolvendo a ampliando suas capacidades, seus sonhos, seu projeto de vida... Se Jesus, mais tarde, pregou e viveu o amor, a entrega, o serviço, a solicitude para com o outro, quer dizer que Ele foi incentivado a viver tudo isso no seu ambiente familiar. Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz.
Ele viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.

A família continua sendo o espaço humanizador privilegiado para o desenvolvimento de cada pessoa, não só durante os anos da infância e da juventude, mas durante todas as etapas de sua vida.
O ser humano só pode crescer em humanidade através de suas relações sadias com os outros. A família é a atmosfera insubstituível e o lugar de referência para que essas relações profundamente humanas sejam amadurecidas. Seja como casal, como filho, como irmão, como pai ou mãe, como avós..., em cada uma dessas situações a qualidade da relação os fará aproximar da plenitude humana, quando todo encontro com o outro é vivido para destravar e ativar suas ricas possibilidades e sua capacidade de amar. O espaço familiar des-vela o humano que em todos habita.
A experiência e vivência familiar, portanto, vem responder a uma demanda própria deste momento pós-moderno e se revela capaz de restituir ao ser humano de hoje a espessura de humanidade e os valores que lhe são próprios.
O clima familiar não só mobiliza a pessoa em sua integralidade (corporal, afetivo, cognitiva, volitiva...), mas a acompanha para um sentido sapiencial da vida e que a faz saboreá-la como descoberta, como oportunidade, como dom.
A espiritualidade familiar, centralizada em cada um de seus membros, visa mobilizá-los em todas as suas dimensões, promove distensão, paz e alegria, propõe um caminho de plena humanização, forma para a abertura aos outros e para a doação por amor, impele, em suma, a criar as condições para que todos atinjam a maturidade e se realizem.  
Esse itinerário existencial constitui-se como o impulso para aventurar-se na busca da verdade e do sentido primeiro e último das coisas, o estímulo de crescimento e descoberta de si, até fazer das suas capacidades pessoais um meio para transformar o mundo, agindo nas estruturas sociais e dando à humanidade uma contribuição que tenha o sabor do Reino de Deus.

A mística familiar situa-se, com toda a densidade, no contexto da experiência de humanidade e de fé do ser humano, de modo que cada um possa caminhar, dentro de si e diante de si, na direção daquela verda-de, daquele bem e daquela beleza que constituem a positividade do mundo e a força da humanidade, fundamentados em Deus e garantidos por Ele. Por isso, a família pode ser considerada como uma tarefa humanizadora, capaz de tocar as fibras mais sensíveis do ser humano e convidá-lo para a valentia do servi-ço, da solidariedade e da liberdade.
O espaço familiar visa, portanto, à reorganização da vida de cada um  segundo coração do Pai e, por conseguinte, um ótimo desenvolvimento dos talentos e dos carismas recebidos.
O objetivo primeiro da família é ajudar o ser humano a tomar nas mãos, diante de Deus, a própria vida, ajudá-lo a tornar-se verdadeiramente ser humano. Seu verdadeiro desafio é exatamente o crescimento do ser humano enquanto descoberta de um projeto, escolha e determinação de empenhar-se pelos outros.
Ela possibilita “e-ducar”, no sentido de “e-ducere”: extrair a verdade da pessoa, para que consiga ter uma visão ampla de si mesma e realizar-se da melhor maneira possível em suas potencialidades.
Cada um é diferente, único, com saberes, expectativas, medos, ansiedades e desejos, pontos fortes e fraquezas, com seu ritmo e modo próprios de viver.
Assim, a pedagogia familiar evoca a verdade do ser humano, comporta uma pro-vocação, uma proposta que pede o máximo dele mesmo e, por isso mesmo, revela o que ele é capaz...Uma autêntica experiência familiar tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz tensão e também insatisfação, pede a mudança dos costumes e velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...

Texto bíblicoLc 2,22-40

Na oração: contemplar seu espaço familiar: é ambi-
                       ente instigante, provocativo, inspirador... onde todos se sentem livres para expressar sua identi-dade e originalidade? Ali educa-se para viver  uma consciência moral responsável, sadia, coerente com a fé cristã? Ou favorece um estilo de vida superficial, consumista, sem metas nem ideais, sem critérios e valores evangélicos?
Em quê dimensões você sente que sua família pode e deve crescer mais, tendo como referência a Família de Nazaré?


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

NOITE DE NATAL

ETERNA INFANCIA DE DEUS

 

“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”  (Lc 2,12)

 

A humanidade de Deus nos assusta, porque, no fundo, temos medo de nossa própria humanidade. Nesse sentido, a festa do Natal é uma ocasião propícia para que pensemos no dano que nos tem causado e continua causando o medo de nossa própria humanidade. Com certeza, nesse medo está a explicação e a raiz de tantas violências e maldades que teriam e que poderiam ser evitadas.
São muitos aqueles que, mesmo tendo fé, passam a vida aspirando ser “como Deus”. E ao forçar tanto querer ser “divinos” deixam de ser verdadeiramente “humanos”.  Tanto falso apetite de “divindade” acabou despedaçando nossa própria “humanidade”.
De fato, o que há de verdade nos evangelhos da infância é que o “divino” (ou seja, Deus) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no “humano”. E precisamente no mais humano: uma criança, sem “títulos”, de condição humilde e em circunstancias de pobreza, desamparo e perseguição.
O “divino” não se fez presente no portentoso, no milagroso, no assustador, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. O “divino” se fez presente em um recém-nascido, em um estábulo, entre palhas e animais. E foi anunciado aos pastores, um dos ofícios marginalizados daquele tempo.

A “mensagem religiosa” dos evangelhos da infância é teimosamente clara e provocadora. É a mensagem que nos diz isto: o “divino” se revela e se des-vela no “humano”, no mais humano, ou seja, no fraco, no marginalizado, no excluído e no perseguido. Em Jesus, interagem, harmoniosamente, o humilde e o sublime, o divino e o humano; n’Ele o humano é entrada para o divino, o celeste se manifesta no terrestre, um contendo, reconhecendo e beneficiando o outro. Sua maneira de assumir e viver a condição humana nos revela Deus e valoriza a humanidade com toda a Criação.
O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. A partir do primeiro Natal que houve na história, devemos dirigir nosso olhar para as “margens” e contemplar a presença de Deus que não se encontra no grandioso e notável, mas mas naquele que é marcado pela simplicidade e despojamento.
Encanta-nos quem é poderoso, o importante, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração...
Mas, o que não é nem mais nem menos que humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza, e o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos.
Daí, a conseqüência mais perigosa e mais funesta que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos atrai; a vaidade nos faz auto-referentes.  Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.

Recuperemos o Natal essencial, o Natal da Vida. Na vida de Jesus, feita de carne solidária, reconhecemos a Encarnação universal, para além de todas as fronteiras de espaço, de tempo, de cultura, de raça, de religião.
A Encarnação de Deus em todos os mundos, desde o primeiro Big Bang.
Isto é o Natal para além das formas: acolher e viver a eterna Infância ou a Bondade eterna de Deus em todas as coisas, apesar de tudo.
A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser.
Eterna infância de Deus. Aquele que não cabe no universo cabe no seio de uma jovem mãe. O Criador é cuidado no colo de uma mulher. O Amor eterno necessita ser mimado e abraçado como uma criança. Ele se faz necessitado para que aprendamos a deixar-nos ajudar e aprendamos assim a ajudar os outros. Ele está desamparado, para que tenhamos lar, pátria, calor. Repousa em um presépio, para que todas as criaturas possam sentar-se junto à grande mesa de toda a Terra.

Ter o “eterno menino” diante de nossos olhos desperta em nós renovação de vida, inocência, novas possibilidades de vida que nos impulsionam em direção ao novo futuro.
- Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus nascido humildemente em um presépio, onde em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada Salvadora do Menino Deus. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo.
- Imaginamos um Natal onde aproveitamos para fazer uma viagem ao interior de nosso espírito, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade.
- Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde faremos presentes em nossos corações a todos as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.
Estes são, pois, os sentimentos que queremos alimentar neste Natal, em meio a uma situação sombria da Terra e de toda a humanidade. Sentimentos de que ainda temos futuro, porque a Estrela é magnânima e o “Menino” é eterno e porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que este se afunde totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de todos os povos. Todo é resto é passageiro.
tTodos intuimos que o humano é uma maravilha, mas que precisa ser cuidado e potenciado. O Natal é o anúncio de que a porta para esse cuidado e essa potenciação está aberta. É inegável que temos desfigurado o Natal até torná-lo irreconhecível e anti-cristão. Mas continua pulsando em nós o desejo de outros natais possíveis.

Texto bíblicoLc 2,1-14

Na oração: Belém, “a casa do pão” é muito mais que um
                       lugar geográfico; Belém é o nome poético do
mistério mais belo e real, o nome de todos os lugares onde a vida é gerada e cuidada, onde o pão é assado e com-partilhado.
Belém é o mistério da vida, tão frágil e divina. Jesus, Maria e José: um pai, uma mãe, um filho. Isso é tudo, isso é o todo: o mistério do cosmos, da Terra e da vida, do homem e da mulher, com suas alegrias e dores, seus amores e medos, suas esperanças e dúvidas.
Tua casa é Belém, quanto mais pobre mais verdadeira. É em tua própria Belém que Deus se encarna nova-mente.
O Natal não é ruído. O Natal é silêncio. O Natal é quietude. O Natal é paz interior. Neste silêncio é quando se sente e se experimenta, de forma vital, o interior de todo ser humano, sua dignidade compartilhada.
O Natal silencioso nos leva a contemplar esta dignidade de todo ser humano que é divina.

                                                        Um “humano” Natal a todos.





sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Homilia dominical - 20 de Dezembro de 2014

Advento: “O futuro tem um coração de tenda” (Ermes Ronchi)


“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1,35)

Hoje vivemos tempos conturbados e, para alguns, também bastante confusos. Muitos gostariam que, após
tão longa caminhada, tudo fosse mais claro e evidente, ao invés de se sentirem outra vez tateando em busca de um caminho a seguir. Isso acaba provocando desconforto a quem desejava segurança e defini-ções permanentes; mas, por outro,  o espírito de busca lhe dá agilidade e flexibilidade para levar a missão adiante, da maneira mais adequada a cada momento histórico.
Mons. Tonino Bello, que sonhava com uma Igreja de avental, imagem que se tornou muito popular entre nós nestes últimos anos, sonha também com uma Igreja como tenda:
 “A Igreja deve se parecer com uma pedra imóvel ou com uma tenda que pode ser desarmada ao nascer do sol quando o viajante se põe a caminho para enfrentar uma nova viagem? ...
A tenda ajuda a compreender que a Igreja é uma instituição transitória que simplesmente anun-cia a Jesus Cristo; não se coloca ela mesma no centro e não assume aquele eclesiocentrismo da visão cristã, mas o Cristocentrismo. Jesus está no centro, e a Igreja aponta para Jesus. A Igreja está em marcha, a Igreja caminha com a humanidade, a Igreja não deve fincar raízes e se agar-rar à terra para se firmar, como a ostra na pedra... A Igreja deve ser móvel, e a tenda talvez evoque melhor essa dimensão itinerante da Igreja...”

O Advento é uma boa ocasião para fazer memória do futuro: do futuro que virá e do futuro que pode-mos antecipar. Porque o futuro não é o que ainda não existe; ele pode se fazer presente em forma de pro-jeto e de promessa. Nós o antecipamos quando vivemos fraternalmente, quando lutamos em favor da paz, da justiça e da solidariedade.
Ao antecipá-lo, o Senhor se faz humilde e silenciosamente presente. Porque se faz presente, podemos esperá-Lo. Se não o fazemos presente, a esperança se converte em uma ilusão sem futuro.
A essência de nosso ser encontra-se à nossa frente, um secreto desejo de escapar da pequenez do já realizado. A terra está prometida aos que se põem em marcha para alcançá-la.
Ter saudades do futuro. Pressentir. Entrever. Suspirar. Manter o coração velando, mesmo quando dorme.
Esse é o dinamismo do Advento.

“O futuro tem um coração de tenda”: assim Ermes Ronchi intitula um de seus livros. Não conhecemos por completo o caminho que orientará nossos passos, mas nos alegramos por ele e seguimos animados pelo Espírito e pela promessa do Senhor, montando e desarmando nossa tenda, sempre que necessário.
O contexto atual, social e eclesial, deve ser vivido como um tempo de reflexão e renovação, tempo para dizer “sim” ao futuro, “sim” para voltar a levantar-nos e aprender de nossos erros. Uma ruptura pode fazer emergir um “sim” a novas oportunidades, um “sim” para melhor conhecer-nos a nós mesmos, querer-nos, valorizar-nos e voltar a dizer “sim” ao novo que nos desafia. Na fé e na vida da comunidade, sempre é o “sim” que nos seduz e que abraçamos: o “sim” ao seguimento de Jesus, o “sim” a uma maneira de amar diferente, comprometida e apaixonante, “sim” ao evangelho, “sim” a um olhar contemplativo que vê o mundo com olhar admirado; dizer “sim” na Igreja é compromisso, fraternidade e universalidade, fazendo nossas as necessidades e os sonhos daqueles que também vivem motivados e inspirados por esse “sim expansivo”.

Maria diz “sim”, faz-se peregrina e o futuro se escancara diante dela.
Enquanto muitos teriam buscado explicações, a ela lhe bastou uma simples saudação: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Onde muitos veriam uma loucura, ela viu um horizonte aberto e um futuro de sentido; onde muitos teriam buscado provas, garantias, ela respondeu: “Faça-se em mim segundo tua Palavra”.
Inspirando-nos na atitude de Maria, queremos nos instalar no provisório, na tenda, e ir avançando junto com os outros, discernindo os chamados do Espírito. Não gostamos apenas de imaginar a Igreja como uma tenda, mas de aceitar com alegria morar nela, com tudo o que isso significa de mobilidade, de temporário, de adaptação, de viver na intempérie, porém também de acolhida, de relacionamento...
Santa Maria, tenda humilde do Verbo, movida somente pelo vento do Espírito.
Como Maria, podemos nos converter em pessoas de esperança, abertas à novidade do Espírito, que espreita oculto nas dobras de nossa história. Podemos chegar a ser sentinelas da manhã, espreitando no horizonte sinais de esperança e de vida.
“Alarga o espaço de tua Tenda, estende tuas lonas sem temor,
alonga tuas cordas, reforça as estacas!” (Is. 54,2)

            Seja uma TENDA sempre aberta: “entrada franca”.
- Nada de “cachorros” que atemorizem o visitante: seu caráter, seu orgulho, seu egoísmo, sua inveja, sua ironia, sua rudeza, seu autoritarismo...  Que o outro não se retire, suspirando: “Não tive coragem... tive medo que ele me mandasse embora, que risse de mim, que não me compreendesse...”

- Nada de longas esperas que desanimam: esteja sempre atento, nem que seja para um cumprimento, um sorriso, um aperto de mãos, caso você não tenha tempo para uma conversa.
Uns instantes de intensa atenção basta para acolher o outro.

- Nada de móveis que impeçam a circulação; mantenha sua tenda vazia, disponível. Não imponha seus gostos, suas idéias, seus pontos de vista. Nada de retribuições que custam caro: se você oferece alguma coisa, faça-o gratuitamente e nada espere em troca. Nada de contrato oneroso: “entra-se” e “sai-se” à vontade, com naturalidade, sem formalidades...

Passos para a oração


1. Formular uma oração de entrega e encontro.
2. Pedir ao E. Santo que amplie o espaço de sua Tenda.
3. Texto bíblico:  Lc. 1,26-38
4. Deus não é distância e solidão. Ele é infinitamente vinda,
    iniciativa, presença, libertação. Peregrino em sua direção,
    Ele bate, querendo entrar e ficar... mas aguarda.
    Quando Ele entra em sua tenda, tudo se modifica...
5. Deus possibilita cada um “entrar” em sua Tenda e
    captar em profundidade a sua realidade, a perceber a raiz do
    seu ideal de vida, como também suas contradições e ilusões,
    medos  e necessidades.
    Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da Tenda, com as regiões
    fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...

        Somos TENDA, lugar de encontro. Ele vem. Sua presença causa mudança.
                   TENDA, lugar de discipulado – olhar, escutar e seguir.
                   TENDA, lugar de unção-acolhida, serviço e adoração.
                   TENDA, lugar de lava-pés, servo, mandamento novo, amizade.
                   TENDA, lugar de inspiração do Espírito, de oração.
                   TENDA, minha realidade pessoal e lugar de encontro com o outro.

5. Agora responda: - como está sua tenda interior? Preparada para acolher o Senhor que vem?
                                 - há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?





segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Papa Francisco no Angelus: Com Jesus a alegria é de casa

ROMA, 14 de Dezembro de 2014 (Zenit.org) - O Santo Padre Francisco rezou neste domingo de dezembro a oração do ângelus na janela do seu escritório no Palácio Apostólico, virado para a Praça de São Pedro, onde uma multidão de milhares de peregrinos e fieis o aguardavam.
Neste III domingo de Advento a Praça estava cheia de centenas de crianças dos ‘Centros Oratórios Romanos’ para a benção que nesta data o Papa dá às imagens do Menino Jesus que serão colocadas nas suas casas, escolas ou paróquias.
"Queridos irmãos e irmãs, queridos filhos e jovens, bom dia.
Durante duas semanas o Tempo do Advento nos convidou à vigilância espiritual para preparar o caminho para o Senhor, o Senhor que vem. Neste terceiro domingo a liturgia nos propõe outra atitude interior para viver a espera do Senhor, ou seja, alegria. A alegria de Jesus, como diz esse cartaz, a alegria de Jesus é de casa. Ou seja que nos propõe a alegria de Jesus.
O coração do homem deseja alegria, todos nós aspiramos a alegria, cada família, cada povo aspira à felicidade. Mas qual é a alegria que o cristão está chamado a viver e testemunhar? É aquela que vem da proximidade com Deus, da sua presença na nossa vida. Uma vez que Jesus entrou na história com seu nascimento em Belém, a humanidade recebeu a semente do Reino de Deus como uma terra que recebe a semente, promessa de colheita futura. Não há necessidade de procurar em outro lugar! Jesus veio para trazer alegria para todos e para sempre.
Não é só uma alegria esperada ou deslocada para o paraíso, ‘aqui na terra estamos tristes, mas no paraíso estaremos alegres’, não, não é isso. Mas, de uma alegria já real e que já é possível sentir agora, porque o mesmo Jesus é nossa alegria, é nossa casa.
Como dizia esse vosso cartaz, ‘Com Jesus a alegria está em casa’, repitamos isso, novamente: ‘Com Jesus a alegria está em casa’, e sem Jesus existe alegria? Não! Jesus está vivo, é o ressuscitado, e obra em nós, especialmente com a palavra e os sacramentos.
Todos nós batizados, filhos da Igreja, estamos chamados a acolher sempre novamente a presença de Deus no nosso meio e ajudar os outros a descobri-la, ou redescobri-la se a tivessem esquecido. É uma missão muito bonita, semelhante a de João o Batista: orientar as pessoas à Cristo – não a nós mesmos – porque Ele é a meta para a qual tende o coração do homem quando busca a alegria e a felicidade.
Mais uma vez São Paulo na liturgia de hoje nos indica as condições para ser "missionários da alegria": orar sem cessar, sempre dar graças a Deus, seguir o seu Espírito, buscar o bem e evitar o mal. Se este será o nosso estilo de vida, então a Boa Nova poderá entrar em muitas casas e ajudar as pessoas e famílias a descobrir que em Jesus está a salvação. Nele é possível encontrar a paz interior e a força para enfrentar cada dia as diversas situações da vida, até mesmo as mais pesadas e difíceis.
Nunca se ouviu falar de um santo triste ou de uma santa com cara fúnebre, nunca se ouviu, seria uma contradição.
O cristão é uma pessoa que tem o coração cheio de paz, porque sabe colocar a sua alegria no Senhor, até mesmo quando passa por momentos difíceis na vida.
Ter fé não significa não ter momentos difíceis, mas ter a força para enfrentá-los sabendo que não estamos sozinhos. E esta é a Paz que Deus dá a seus filhos.
Com o olhar voltado para o Natal está próximo, a Igreja nos convida a testemunhar que Jesus não é um personagem do passado: Ele é a Palavra de Deus que hoje continua a iluminar o caminho do homem, seus gestos, os sacramentos, são a manifestação da ternura, do consolo e do amor do Pai a cada ser humano. A Virgem Maria ‘causa de nossa alegria’ nos torne sempre alegres no Senhor, que vem libertar-nos de tantas escravidões interiores e exteriores”.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Homilia dominical - 3o. domingo do advento

ADVENTO: uma Voz em nossa voz


“Eu sou a voz que grita no deserto” Jo 1,23)

É frequente ler nos jornais e na internet títulos como estes: “a canção mais ouvida da semana”, “o livro mais vendido”, “o filme mais assistido”...
E se aparecesse, algum dia, um título assim: “a voz mais escutada pelos cristãos durante a semana”!
Os cristãos, como todas as demais pessoas, escutam muitas vozes, muitas canções, muitas notícias, muitos comentários... Será a voz profética na comunidade, uma dessas vozes mais escutadas?
Na Igreja, como na sociedade, há excesso de palavras, há excesso de discursos, de declarações, de documentos. Sobram palavras, e nos falta a Palavra. “No princípio era o Verbo, depois só verbos”.
O que as pessoas escutam de nós cristãos, hoje? Nossas palavras, nossas vozes, nossas ideias, nossas teologias, nossas ideologias..., é palavreado vazio, é palavra rotineira, improvisada, não pensada, não vivida...?  Ou escutam palavras de vida e de esperança, palavras que abrem um sentido para a existência?
As pessoas escutam hoje a voz de Deus em nossa voz? Escutam a voz de Jesus na voz da Igreja? Ou elas estão cansadas de escutar sempre o mesmo, palavras que não despertam o interesse nem o gosto espiritual? Palavras que adormecem o espírito e não fazem brotar a esperança? Palavras que resvalam pela pele da alma e não conseguem atingir o centro de suas vidas?
Nossa voz chega à alma das pessoas, levando consolo, inspiração e esperança?

João é a voz que grita. A verdade é o que está já aí e ninguém a reconhece. João é aquele que tem consci-ência de sua identidade e de sua missão; ele tem a honestidade de reconhecer sua verdade e a sinceridade de não ser considerado como Messias; ele não se faz o centro das atenções mas indica sempre o “outro”; ele não atrai os olhares sobre si mesmo mas convida a olhar o “outro”. Sua voz anuncia um Outro.
A identidade de João é revelada pela sua relação com Jesus. Sua voz está a serviço de Jesus. Não é a voz que louva a si mesmo.

Neste tempo de Advento somos convidados a descer em direção à nossa interioridade, para deixar aflorar o que é mais original em nós, nossa verdadeira identidade. Desconhecemos a nós mesmos, a nossa origina-lidade. Somos únicos, sagrados, com uma voz única. Nossa identidade se expressa também através da voz.
Nossa voz é desvelamento de nossa interioridade; a voz revela aquilo que está cheio nosso interior. Voz descentrada ou voz centrada em si mesmo? Voz que fala de si mesmo ou voz aberta à realidade? Nossa voz está a serviço de quê? De quem? É voz que eleva e salva o outro, ou voz que critica, afunda? É voz que aponta para um sentido? Somos “voz de quem não tem voz”?
Vivemos a cultura da aparência, da massificação, do vozerio crônico. O que vale é quem fala mais alto, se impõe, não abre espaço para os outros se expressarem. Vive-se às custas dos outros, mendigando elogios, bajulações... Daí a superficialidade da vida.

São muitas as vozes que nos tocam e nos constituem. Às vezes, elas ressoam em nós como brisa suave, às vezes como punhais, mas sempre nos deixando marcas profundas de estímulos ou de desânimo: senti-mentos de alegria ou tristeza, de paz ou guerra, de tranqüilidade ou inquietação, de fé ou descrença... de amor ou ódio.
Ambivalentes como nós, as vozes podem criar armadilhas ou abrir portas para largos horizontes, podem embalar ou derrubar, acolher ou afastar; com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, podemos sacudir consciências, animar, levantar, entusiasmar, provocar ímpetos de se arriscar a viver até o fundo; ou podemos desanimar, sufocar, destruir, seduzir para fazer da vida um sucesso trivial e sem sentido.
Existem vozes que podem mudar a vida, para o bem ou para o mal.
Há uma voz que constrói e uma que destrói, uma voz que comunica calor e luz, outra que semeia frieza, uma que infunde confiança e restitui o indivíduo a si mesmo e ao seu futuro, outra que o arrasa.

“Morte e vida estão em poder da língua” (Prov. 18,21). Há vozes que ferem e há vozes que elevam.
Há uma voz pela qual tudo começa e re-começa, outra pela qual tudo termina, deixando o silêncio atrás de si. Depois de certas vozes, não resta mais nada a dizer.
Todos conhecemos pessoas destruídas pelas vozes agressivas, como também pessoas reconstruídas, recriadas pelo ressonância das vozes ternas.
Todo encontro com o nosso semelhante revela a nossa relação com as vozes, as boas e as más, as que unem e as que dividem, as que consolam e as que amedrontam, as que curam e as que matam.
Certas vozes nos acompanham por muito tempo. Todos nós lembramos de vozes proferidas por pessoas especiais em momentos de dificuldades, que nos deram luz e força.
Toda voz tem também uma força operativa, desencadeia um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e nos nossos interlocutores. Elas abrem e chegam ao coração, despertando as esperanças adormecidas.
Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado.
A voz foi além de sua vibração sonora.

Na Igreja todos somos chamados a ser microfones de Deus. Mas a voz que as pessoas tem de escutar é a de Deus. Por isso temos que anunciar sua Palavra mais que nossas palavras.
Como João Batista, o cristão é chamado a ser voz que anuncia e denuncia; ele se reconhece como a “voz que grita no deserto”; ele se define como “a voz dos que sofrem”, a “voz dos que não tem voz”, a “voz dos oprimidos que buscam a liberdade”, a “voz daqueles que ninguém os ouve”, a “voz que anuncia a pre-sença de Deus na história”... O cristão é sempre a “voz do Outro”; o cristão é sempre a voz de Deus hoje. Voz de Deus nem sempre escutada; voz de Deus que hoje parece estar em silêncio.
O cristão é a voz de Deus que está ali, apontando para o novo, e parece que ninguém a quer ouvir.
No entanto, nada o faz calar; sua presença expande a Voz de Vida.

Texto bíblicoJo 1,6-8.19-28
  
Na oração:  Você é atento ao que fala, o modo como fala,  o
                     tom e os sentimentos que sua voz expressa?
                      Você consegue distinguir sua voz em contextos diferentes? É voz que eleva ou que arrasa? Voz que acalenta ou voz que julga? Voz que se fixa no passado ou voz que abre possibilidades para o futuro? Voz que anima ou voz que afunda?... Você deixa “ressoar” a Voz de Deus em sua voz?
Dê graças não tanto por dizer palavras mas que sua vida se converta em Palavra de Deus, em Evangelho.



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Homilia dominical - 2o. Domingo do Advento

ADVENTO: FOME E SEDE DE ESTRADAS 


"Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!” (Mc 1,3)

Neste tempo de preparação para o Natal, aparece na liturgia cristã um personagem sumamente interessan-te e provocador: seu nome é João; “a terra se chama João”, escreveu Pablo Neruda. Ou seja, um nome universal; um nome que revela a identidade de um homem que rompe os esquemas estabelecidos; sua missão profética se dá no deserto, longe dos templos e da religião oficial.
A partir da margem ele grita e este grito é o que melhor revela o espírito de Advento. Ele denuncia que nossos caminhos estão bloqueados e que as veredas da humanidade estão torcidas, impedindo que venha e se manifeste o Deus da justiça.
Uma frase de Fernando Pessoa poderia sintetizar o quão inspirador é este tempo do Advento:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso cor-po, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Por isso, Advento é tempo propício para destravar nossa vida, colocando-a em movimento.
É nesse contexto de uma realidade atrofiada, pessoal e social, que ressoa forte a voz de João: “preparai...”. Somos nós que devemos nos mobilizar, fazendo-nos Caminho de Humanidade, precursores de “Alguém” maior. Somos peregrinos que preparam o Caminho para o verdadeiro Enviado de Deus, para os homens e as mulheres da paz e da plenitude futura.
“Preparai” significa estar atentos para não permanecermos fechados em nossos pequenos reinos e abrir um espaço de esperança frente a um mundo que gira em torno a si mesmo. Se estamos apegados ao que temos e somos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
É preciso “endireitar-se”, ter um horizonte de vida, preencher nosso vazio de vida interior, “aplainar” e descer de nossas montanhas de orgulho e soberba... Vivemos instalados em certos costumes, estilos de vida medíocres…Vivemos no centro de uma humanidade torcida, retorcida e, no fundo, envenenada. Para endireita-la é preciso forçar, fazer que se quebrem e se rompam as resistências interiores, a fim de que tudo se aclare, se desvele.

Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta?
Ou nos entrincheiramos em estruturas caducas que perderam a capacidade de resposta?
Caminhar é sair do centro, das seguranças, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de fazer a travessia para o outro lado. Somos passageiros, um Caminho aberto à vida de Deus que permanece, caminho que anuncia e prepara a Vida. Por isso precisamos, mais do que nunca, da figura do profeta; autênticos profetas que, sem medo e partindo de sua experiência de Deus, nos ajudem a encontrar o verdadeiro caminho; pessoas que por sua dedicação e experiência pessoal possam lançar alguma luz nesse emaranhado de caminhos que se entrecruzam e que a imensa maioria são sendas perdidas que não levam a lugar nenhum.
A humanidade deveria ser caminho de vida, jamais caminho de morte.
Nunca foi oferecido ao ser humano tantos falsos caminhos de salvação como agora:caminho fechados, caminhos obstruídos que veda passos e impede a circulação da vida, caminhos que paralisam mobiliza-ções, caminhos que travam saltos históricos, caminhos que barram transformações sociais, caminhos embrutecidos que conduzem à crueldade e à violência, caminhos mortíferos que precipitam à morte.
Nada mais desolador do que ser “inviável”, ficar “sem via”, ficar sem caminho, sem saída, sem futuro.
Nada mais trágico do que perder o caminho.

“O ser humano é Terra que anda” (Atahualpa Yupanqui). O caminho está dentro de nós. Sem caminho nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Somos peregrinos. A vida cristã é um movimento constante de passagem. Somos seres em trânsito, rumo ao novo. Itinerantes. Caminhar sempre. O próprio caminhar desvenda mais caminho.
Enquanto amadurecemos no caminho, importa colher e acolher o que o próprio caminho oferece. Expandir a esperança que ilumina a mente e o coração.
Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade. Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor.
“Senhor, mostra-nos teus caminhos!”
Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça.
De Deus viemos. Dele somos. Nele vivemos. Para Ele vamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos Pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo seu seguidor. O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.

Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo.
Mas, ao mesmo tempo, é um caminho solidário: no caminho de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.
Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho: “Emanuel, Deus conosco”.
Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade.
Pioneiras são as pessoas que vão a lugares onde ninguém esteve antes: “gente de fronteira”.
                  “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.
Caminhar é preciso. O seu caminho tem coração?

Texto bíblico: Mc 1,1-8

Na oração:  rezar a bagagem de sua vida; imagine-se diante de sua mo-
                      chila... onde  colocou tudo o que você leva consigo, desde os anos de sua infância até agora (os dias felizes e menos felizes, as experiências plenificantes e as experiências frustrantes, tudo o que lhe pesa e lhe aborrece, o que você sente que o importuna, o que lhe pressiona e o abate, talvez alguma coisa que lhe parece insuportável...).
- Contemple as experiências bonitas e enriquecedoras em sua bagagem, as
  “coisas” que você guarda com carinho...  Faça “memória” das maravilhas
  que o Senhor realizou em você, na estrada da vida. Reze... louve... agradeça...
- Diante do Senhor, pegue a sua mochila para sentir o seu peso... ofereça-a.   



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