Teológico Pastoral

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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Homilia Dominical - 3 de outubro de 2015

ABRAÇO HUMANIZADOR

“Então, abraçando as crianças, abençoou-as, impondo as mãos sobre elas”. (Mc 10,16)

No filme “O Decálogo 1” do cineasta polonês K. Kiewsloski, o protagonista é um menino de nome Pawel, órfão de mãe, cujo pai o educa sem ensinamento religioso. Um dia o menino, brincando com o computador, vira-se repentinamente em direção à sua tia que está no quarto e lhe pergunta: “Tia, como é Deus?”. A tia permanece em silêncio por um instante, fixa nele o olhar, depois abre os braços e diz: “Vem aqui Pawel”. Ambos se abraçam intensamente.
E a tia lhe pergunta: “Diga-me Pawel, como você se sente agora?”. O menino responde: “Bem, eu me sinto bem”. E aquela que o abraça, diz: “É isso Pawel, Deus é assim”.
Deus como um abraço: uma das mais sugestivas definições de Deus, elaboradas não a partir de uma linguagem teológica, talvez sofisticada e complexa, definição encontrada nos catecismos, mas uma definição que brota da experiência do abraço, no estilo das parábolas de Jesus.
“Deus como um abraço”, experimentado na ternura e no carinho de um abraço. Um Deus que conforta a vida, porque “nominar” Deus deve equivaler a confortar a vida. Se o Deus que transmitimos não conforta e não aquece a vida, a nossa palavra é inútil. Isso vem de encontro o que dizia Pascal: “Eu estou cansado de dizer Deus, eu quero senti-Lo”.

O filme, de fato, trata da relação com Deus, a fé e a ciência. Pawel vai crescendo junto a um pai racionalis-ta, cujo único “deus” é o seu computador e a ciência, vista como o futuro e o progresso. A ciência não pode errar, tem respostas para todas as perguntas, diminuindo progressivamente o espaço para Deus.
Mas, no fim das contas, ela é incapaz de satisfazer o íntimo desejo do coração, o calor do afeto, que a Pawel é demonstrado por um simples e caloroso gesto da tia, demonstração exemplificada da verdade surpreendente da terna vizinhança de Deus. Se sobre isso se faz experiência, “sente-se Deus” e, a partir disso, supera-se a resistência de falar de Deus e a vida se regenera.

Na Igreja, podemos falar de diversos métodos pastorais. Em primeiro lugar está a importância da palavra, oral ou escrita, para anunciar o Evangelho de Jesus. Mas, junto à palavra, é preciso acrescentar as imagens e os sinais sacramentais que falam a nossos sentidos. “Somos corpo”, “somos sensibilidade”, e Deus quebra as distâncias, “faz-se corpo”, “faz-se sensibilidade” para expressar a ternura do seu coração.
Jesus acrescenta a estes métodos um caminho pastoral novo: a pastoral dos gestos significativos e em concreto a pastoral do abraço. Abraça crianças e enfermos, anciãos e mendigos, os paralíticos...
São abraços ternos e fortes ao mesmo tempo, sem palavras, como os abraços  às crianças da Palestina, ou como o abraço do pai a seu filho que chegava à casa fracassado e ferido.
O Mestre de Nazaré se identifica com as “crianças” ou “os últimos” (abraçar significa identificar-se) e deixa claro que só pode compreender e viver seu projeto – que Ele chamava “Reino de Deus” – quem está disposto a “ser criança”, ou seja, a colocar-se voluntariamente no último lugar, como Ele mesmo havia feito: “o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).
Para abraçar uma criança é preciso “descer” em direção à ela; com isso o abraço significa colocar-se no mesmo nível dela. Não se abraça de cima para baixo. O abraço nos faz iguais e nos humaniza.

Não é preciso ser especialista culto ou profissional para descobrir que o abraço expressa proximidade, afe-to, carinho, solidariedade, empatía, amor. O abraço é sem dúvida algo comum na família e na sociedade, mas quando se realiza no espaço religioso expressa, com gestos concretos, o amor e a benevolência de Deus Pai a seus filhos e filhas, seja qual for sua situação física, cultural, social ou moral. É um abraço que antecipa o abraço eterno do Pai às suas criaturas no final dos tempos.
A Igreja deve manifestar-se, deste modo, como uma mãe carinhosa e não como uma juíza autoritária que com seu dedo levantado ameaça a todos os que se desviaram do bom caminho. Assim expressou João XXIII na inauguração do Concílio Vat. II: “em nosso tempo a Igreja prefere usar a medicina da misericórdia mais que a da severidade”.
Por isso o papa Francisco não se limita a falar dos pobres ou a optar por eles, mas se aproxima deles e os abraça. Não é simplesmente um abraço pastoral mas algo mais profundo, a pastoral do abraço. É um abraço que tem um profundo sentido profético de denúncia de um sistema que descarta e exclui.
Por isso, o papa Francisco abraça sobretudo àqueles que não tem quem os abrace, aos que estão sozinhos, aos marginalizados, aos descartados, aos feridos do caminho;  a estes lhes manifesta a ternura e o carinho de Deus.

Seguramente a pastoral do abraço precisa complementar-se com outras mediações pastorais, mas, com certeza, é o caminho pastoral mais impactante, e, em muitos casos, o mais necessário e o único possível, quando as palavras e os gestos são incapazes de expressar algo muito profundo. Os setores populares são aqueles que melhor captam este tipo de pastoral.
O abraço pastoral faz parte da dimensão encarnatória da salvação e da graça. Deus não chega até nós através de uma espécie de fluidos etéreos e invisíveis, mas através de mediações sensíveis, físicas, corporais, sacramentais. O abraço sacramental é como um sacramento que expressa a dignidade de cada pessoa e o amor misericordioso do Pai, que em Jesus se revelou a nós e que o Espírito atualiza na história.
E por isto não basta o abraço litúrgico da paz na eucaristia, é preciso sair às ruas e abraçar o pobre, o enfermo, a mulher abandonada, o ancião desamparado, o privado de liberdade...
Como afirma o Papa Francisco, “no abraço ao pobre estamos abraçando a carne de Cristo”.
Através de seus abraços e através da pastoral do abraço Jesus nos aproximou a presença e a ternura de Deus. Com seus abraços nos manifestou e expressou o abraço do Pai a seu povo. E nos abriu um caminho pastoral para que nós façamos o mesmo: a pastoral do abraço. Seremos capazes de segui-la?

O abraço é a palavra da pele que acaricia, das mãos que tocam, dos braços que sustentam, do corpo que diz sua verdade a outro corpo, o compromisso de acolher e defender a outra pessoa. Foi neste nível que Jesus se situou, expressando às crianças a alegria de sua vida e recebendo, em troca, a ternura e a carícia que elas lhe transmitiam com a sua alegria; Jesus se revela em gesto generoso de entrega e doação, para que o outro seja, para que a criança possa crescer em humanidade.
Abraçar é: segurar, envolver alguém com os braços, especialmente de modo afetuoso, manter próximo. É uma forma de carinho, de apoio e compreensão.
Não se abraça só o corpo, mas a pessoa. É um gesto que ‘diz’: “eu estou unido a você”.
“O abraço é como uma circunferência. De forma simbólica, é um elo. Um momento em que os corações estão mais próximos e se comunicam. Entrega até anatomicamente.”

Texto bíblico:
                 Mc 10,2-16

Na oração: O abraço fala
                   uma linguagem universal. Abraçados nós nos ajudamos uns aos outros.
A tecnologia ergue barreiras, um abraço as derruba. A linguagem do abraço é a tradução da linguagem do coração.
Deixe que um abraço fale por você, quando as palavras parecerem inoportunas ou saírem com dificuldades...
Um abraço nunca diz: “A culpa é sua”. É comemoração, celebração. Significa apreço, afeição, reconhecimento. Significa confiança, empatia, segurança.
Desde sempre fomos abraçados pelo Criador: prolongue este gesto divino no seu cotidiano. Abrace sempre! Abrace muito!



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Homilia Dominical - 20 de setembro de 2015

A ‘AUTORIDADE’ DOS ÚLTIMOS

“Quem acolher em meu nome uma destas crianças é a mim que estará acolhendo” (Mc 9,37)

Sempre a mesma discussão e a mesma tentação: quem é o maior? quem é o primeiro? quem é aquele que manda?... O Evangelho de hoje nos situa em Cafarnaum, lugar onde são “des-velados” dois dinamismos opostos. De um lado, Cafarnaum como lugar onde o poder se torna competição e intriga, onde o segui-mento se torna privilégio, onde palavras como serviço, entrega ou humildade soam vazias porque por de-trás delas há outras intenções menos evangélicas. E é tão difícil sair daí. É tão complicado deixar que a cri-ança ocupe o centro, que os últimos sejam os primeiros. O impulso do poder e da vaidade vão se impondo a tal ponto que acabamos sufocando a criança que quer se expressar e deixar-se surpreender dentro de nós.
De outro lado, Cafarnaum é essa criança que é Boa Nova, que nos abre às alegrias e às surpresas, que crê no amor, que reconhece sua ignorância e não se importa porque para ela sempre são novas todas as coisas, que em cada amanhecer descobre novas oportunidades, que não entende os grandes porque sabe que o essencial está em outro nível, que pede porque se reconhece necessitada, que é vulnerável e não se envergonha de suplicar o cuidado, que vive em meio a sonhos, que espera nas promessas...
Cafarnaum de crianças sempre últimas. Cafarnaum bendita e generosa. Cafarnaum possível.
Qual das duas “cafarnaum” eu alimento?

Diante da oculta intenção dos discípulos de começar a construir uma nova comunidade sobre as bases do poder, a partir do maior e do primeiro, Jesus inverte esse modelo, pois Ele não precisa de seguidores que sejam os grandes nem os primeiros, mas de companheiros que queiram fazer-se últimos e servidores dos outros; Jesus destrói os desejos de poder dentro de seu grupo, e assim apresenta com realismo o que impli-ca segui-lo no caminho do Reino.
Mais uma vez o Evangelista Marcos nos situa Jesus “em casa”, lugar de reunião da comunidade, onde Ele estabelece um diálogo com os Doze. O paradoxo é brutal: pelo caminho, enquanto seguiam a Jesus, iam discutindo para ver “quem era o maior entre eles”. Os Doze tinham interiorizado os critérios da velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
E Jesus, ao descobrir a má intensão dos discípulos, corta o mal pela raiz: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que  serve a todos”.
Depois, coloca uma criança no meio deles e a abraça. O gesto de Jesus e as palavras que o acompanham tornam-se chocantes e surpreendentes. O lugar central já não corresponde nem a Pedro nem a João nem a Tiago; no espaço central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança, ou seja, um ser humano que depende da acolhida e ajuda dos outros, um necessitado que nem sequer pertence ao grupo.
A comunidade de Jesus tem que ser servidora e acolhedora daqueles que são como aquela criança, dos desvalidos e dos que não contam. Quando numa comunidade surgem disputas pelo poder e pelos primeiros lugares, inevitavelmente nascem as divisões e se rompe a fraternidade

“Entrar no Reino” significa entender e compartilhar o projeto de Jesus, ou seja a “fraternidade universal” e o “amor que se faz serviço”, pois Ele veio “buscar” os últimos (enfermos, excluídos, pecadores).
Isso se revela impossível para quem rege sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição... alimentando atitudes que separam, dividem ou geram competição. O poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando a criatividade e fragilizando seus laços de convivência. Sorrateiramente esta tentação toma conta do coração humano e o petrifica, impedindo a expansão da vida em direção aos outros. Por isso Jesus quer que seus servidores saibam se colocar no final, para, a partir dali, acompanhar e ajudar os outros (especialmente os perdedores deste mundo), superando a lógica do mando e do poder.
Todos se encontram agora igualados, formando um corpo em torno à criança (que está no meio), a quem devem receber e servir. No lugar onde estava Ele, Jesus colocou uma criança (não um templo, nem uma bíblia, nem o código canônico...), de quem todos devem se aproximar, acolher e servir.
Jesus coloca uma criança no centro para que ali fique; os discípulos discutiam sobre esse centro, mas agora descobrem que está ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de pé, convertendo-a em hierarquia máxima, em meio ao grupo onde Ele mesmo estava.
Dessa forma, Jesus interpreta a autoridade a partir da ternura: a criança é importante porque está no centro da comunidade. Por isso, uma sociedade que não cuida e não protege suas crianças, é uma sociedade fracassada e não pode ser abençoada por Deus. Para muitos, é mais fácil confiná-las na prisão, lavando covardemente as mãos, “descartando-as”  e não se preocupando em oferecer-lhes as mínimas condições para o seu crescimento e formação.

Com seu gesto e palavra, Jesus declara as crianças como coração e autoridade suprema da Igreja. Dessa forma, o que começava sendo uma pergunta hierárquica sobre o poder, entendido como sinal de Deus so-bre o mundo (quem é o maior?), desemboca numa exigência ética de inversão do poder, de anti-hierarquia.
A comunidade cristã não é um grupo de sábios doutores, uma sociedade de poderosos e influentes, uma associação de burocratas sacros, mas um lar para as crianças, um espaço onde os mais necessitados encon-tram acolhida e cuidado, um espaço de vida, dignidade e ternura.
A essência da Igreja consiste em abrir espaço de vida e crescimento, de afeto e ternura para com os mais necessitados, e de um modo especial para com as crianças.
Eles, Jesus e a criança, constituem a verdade messiânica. Desaparecem os modelos de domínio (ser maior, ser primeiro), o maior e primeiro é a criança. A partir daí se pode falar de uma Igreja entendida como espaço de acolhida e como escola de vida para os necessitados e crianças. Aqueles que acolhem uma criança, oferecendo-a espaço para o abraço no centro da casa, esses são comunidade cristã.
Frente aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder, Jesus eleva o modelo de uma Igreja que é família, lar materno a serviço dos mais desprotegidos.

Texto bíblico: Mc 9,30-37

Na oração: É preciso estarmos abertos para as surpresas de
                   Deus! Entremos, pois, na casa em Cafarnaum, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
Há muito que ver em Cafarnaum, mas nem todos os olhares poderão acolher o que ali acontece. Há olhares opacos que não se alegrarão, olhares desconfiados que não o entenderão, olhares frios que não vibrarão com a novidade das palavras e gesto de Jesus... Somente os olhares dos pobres e pequenos se admirarão, e a paz do coração será sua recompensa.
“Ver de novo”, ver outras coisas diferentes daquilo que estamos acostumados a ver, é também “nascer de novo”. É preciso despertar a “criança interior” que há em nós, nossa capacidade de atenção à vida, de buscar com outros, de deixar-nos surpreender diante da presença despojada de Deus.






terça-feira, 8 de setembro de 2015

Palavra de Deus

A Palavra de Deus, oito passos


O mês de setembro é dedicado à Palavra de Deus. Já fizemos grandes progressos em relação à Palavra, mas, o analfabetismo bíblico ainda é grande entre nós. Tudo foi escrito para que tenhamos esperança e consolação. É preciso, pois, pegar o livro, comê-lo, ruminá-lo. Lembremos o que dizia Paulo Apóstolo: eu sofro e faço tudo pelo Evangelho, por isso estou na cadeia como um malfeitor. Lembrava, porém, que a Palavra de Deus não se deixa acorrentar.
Nossa experiência com a Palavra tem oito passos. Antes de sermos anunciadores precisamos ouvir, compreender, internalizar e praticar a Palavra. Para que se respeite esta “lógica da experiência” com as Sagradas Escrituras vejamos os oito passos a serem percorridos e vividos.
Primeiro passo: “ouvintes da Palavra”. Ouvir com o coração. Para ouvir é preciso silenciar, dar tempo, acolher a Deus que fala e se comunica na Palavra. Ouvir não é apenas dar ouvidos, mas, deixar a Palavra ressoar, ecoar, transpassar o coração.
Segundo passo: “amigos da Palavra”. Deus fala conosco como os amigos. A Bíblia é uma carta de amor, de amizade, de aliança. Para os amigos nós dedicamos tempo e fazemos de tudo para manter amizade. Quem é amigo da Palavra irá frequentá-la sempre e vibrar de alegria, por este encontro de amizade.
Terceiro passo: “familiares da Palavra”. Ter familiaridade com as Escrituras consiste em tê-las nas mãos, no coração e na missão. A Palavra nos regenera, recria e refaz. Quanto mais lemos, meditamos, estudamos tanto mais nos familiarizamos com a Bíblia. Somos consortes da Palavra.
Quarto passo: “praticantes da Palavra”. Nossos gestos e ações falam mais que nossas pregações. Jesus chama de feliz quem ouve a Palavra e a pratica. Ainda mais, por em prática o que ouvimos e pregamos equivale a construir nossa casa sobre a rocha. Não podemos ter um discurso espiritual e uma vida carnal.
Quinto passo: “discípulos da Palavra”. Neste estágio a Palavra se faz carne em nós. Ele está sempre no princípio de tudo. No princípio do dia, no principio das reuniões, da catequese, da celebração dos sacramentos. Assim, acontece a animação bíblica de toda a vida e pastoral da Igreja.
Sexto passo: “servidores da Palavra”. Não devemos ser donos, patrões, senhores, dominadores da Palavra. Muito menos falsificadores, demagogos, tagarelas. É um verdadeiro “mundanismo espiritual” servir-se da Palavra para nossos interesses próprios. Nada devemos tirar ou acrescentar às Sagradas Escrituras. Não se pode manipular o povo com a Bíblia.
Sétimo passo: “mártires da Palavra”. Sofrer e morrer pela Palavra é um ato de fé e de amor. Estevão, João Batista, Paulo, Tiago, Pedro, enfim, todos os apóstolos foram mártires da Palavra. Assim também aconteceu com os missionários, os santos, religiosos, religiosas, leigos e leigas. Ser mártir, morrer pela Palavra significa internalizar e testemunhar e sofrer pela Palavra. Na boca ela é doce, mas se torna amarga no coração, isto é, a Palavra é exigente, purificadora.
Oitavo passo: “consagrados à pregação da Palavra”. Jesus rezou: “Que eles sejam consagrados pela verdade” (Jo 17, 19). A Palavra é a verdade. Paulo Apóstolo recomenda a Timóteo: “cumpre a missão de pregador do Evangelho, consagra-te ao teu ministério” (II Tm 4,5). Consagrados pela Palavra, consagramos-nos em anunciá-la.
Por fim, precisamos permanecer na Palavra, pois ela é inesgotável, não envelhece, não passa. Permanecer na Palavra significa muitas coisas, como por exemplo, realizar lectio divina diariamente, os conhecimentos bíblicos, não trocar a Palavra pelo devocionalismo, memorizar um texto bíblico no cotidiano, etc. A Igreja sempre venerou as Divinas Escrituras da mesma forma como o corpo do Senhor. Que a Palavra não caia no chão, possa tinir em nossos ouvidos, descer ao coração e subir para nossos lábios.
                                                       

D. Orlando Brandes
Arcebispo de Londrina

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Homilia dominical - dia 06 de setembro de 2015

tSENTIR O ESPÍRITO DA PALAVRA


“Abre-te! Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou...” Mc 7,35)

O Evangelho de hoje nos diz que os pagãos também foram destinatários da presença inspiradora e salva-dora de Jesus: Ele saiu da região de Tiro, passou por Sidônia até o mar da Galiléia e atravessou os limites da Decápole. É uma das pouquíssimas vezes que vemos Jesus fora de seu país, na região dos pagãos, em meio às pessoas de outra religião.
Com efeito, vemos, em primeiro lugar, como Jesus não está entre os pagãos com uma atitude “após-tólica”, não o vemos preocupado em catequizá-los, nem fazer proselitismo religioso: não procura  conver-ter ninguém à sua religião, à fé israelita no Deus de Abraão. E tampouco faz discursos religiosos, nem o vemos proclamando uma doutrina, ensinando e divulgando as santas máximas de sua mensagem.
Simplesmente “cura”. Em outras palavras: “faz o bem”, não fala sobre o bem; realiza atos, não ditos.

Não podemos dizer que Jesus passou pelo território pagão com indiferença, ou com os olhos fechados, pois ali também ele se encontrou com uma humanidade sofrida e excluída.
Por isso, trouxeram-lhe um surdo-mudo e lhe pediram que lhe impusesse as mãos sobre ele.
O texto faz referência a um percurso corporal: de Jesus são nomeados as mãos, os dedos, a saliva, os olhos e a respiração; do surdo-mudo, os ouvidos e a língua. No começo do relato o surdo-mudo aparece fechado em seu silêncio e em sua solidão, levado diante de Jesus por outros e logo afastado deles pelo mesmo Jesus. Dir-se-ia que não só está atado e travado por seu problema de comunicação, mas também impedido para tomar iniciativas e decisões livres.
O contato com Jesus, em intensa proximidade corporal, e a força de seu imperativo “abre-te”, soltam-lhe todas suas ataduras e lhe permitem de novo pronunciar sua própria palavra.
Como por um efeito contagioso, todos os presentes se põem a proclamar o ocorrido e escutamos seu rumor admirado, como um eco das palavras de Deus na criação: “Ele tem feito bem todas as coisas”.

“Abre-te”: esta é a única palavra que Jesus pronuncia em todo o relato. Expressão que desata as palavras emudecidas no interior daquele homem; expressão que desbloqueia a voz e os ouvidos, ou seja, restaura nele a capacidade da comunicação, de escutar e responder. Por isso, esse imperativo não está dirigido somente aos ouvidos do surdo mas ao seu coração.
Jesus, com sua presença terapêutica, destrava interioridades. Ele assumiu uma estratégia terapêutica de “inclusão”. Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões.
Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, de suas emoções, projetos, relações e abertura ao outro.
Poderíamos dizer que Jesus ativa no surdo-mudo a dom de “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” tudo o que estava oculto em seu interior. Sabemos que a palavra abarca todas as expressividades humanas; mas ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a expressão dos sentimentos, as atitudes éticas... tudo isso também faz parte da palavra humana. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, sentimento, ação... São humanizadoras, por excelência.

A cura do surdo-mudo nos convida a deixar que Jesus continue realizando com cada um de nós seu gesto criador, como fez Deus na primeira manhã da criação, modelando com suas mãos e insuflando seu alento, curando nossa surdez e gaguejamento.
A mesma palavra dirigida ao surdo-mudo “Abre-te”, pode ressoar hoje em nossos ouvidos e em nosso coração, convidando-nos a destravar dimensões importantes de nossa vida, para assim podermos conti-nuar realizando pequenos gestos criadores e oferecendo sinais de vida, também entre aqueles que não compartilham nossa fé.
O quê precisa ser desbloqueado em nossa vida? Talvez alguma capacidade adormecida, ou algum recurso interior que permanece latente; talvez um novo sonho ou projeto, uma abertura para crescer em comunicação com os outros, uma “palavra” diferente que expresse o sentido de nossa existência...

O contexto pós-moderno no qual vivemos nos motiva a considerar a importância e o sentido da “pala-vra”, a prestar atenção ao seu dinamismo e à sua força expressiva e criativa.
Sem dúvida, em nosso momento atual, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Banalizamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj).
É preciso novamente dar oportunidade às palavras, pois viver é a arte de saber lidar com as palavras.
Cada palavra tem seu impacto interior, algumas evocam e fazem presentes não só as ressonâncias imediatas, senão que nos conduzem às profundas e estremecedoras experiências.
Temos a nobre tarefa de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e poder assim confrontá-la  com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.

"Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?" (Clarice Lispector).
De fato, na cena do evangelho de hoje, Jesus desencalha palavras e mobiliza o homem para ir desfrutando palavras novas, inspiradoras, que rompem a sua solidão e expandem a sua vida em direção aos outros e em direção ao grande Outro.
“Em algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação” (Affonso Romano de Santana).

As palavras são feitas à nossa medida e adquirem vida quando as pronunciamos, convertendo-se assim em um prolongamento de nós mesmos, de nossos sentimentos e de nossos valores. As palavras são o reflexo de nosso viver e sentir, de nossas misérias e grandezas; são a “alma” de quem as pronuncia ou as escreve. Com elas não estamos sozinhos; com elas podemos transcender nossa pobre realidade.
As palavras se desgastam quando nos afastamos do contato originário com a realidade, quando nos distanciamos dos acontecimentos que nos alcançam, quando renunciamos a sentir e saborear as coisas internamente, quando não nos deixamos afetar pelos matizes quase infinitos da dor de nosso próximo.
Por isso é importante progredir no caminho do silêncio, no qual nos educamos na escuta autêntica do nosso coração, que é a única capaz de fazer emergir palavras carregadas de vida e de sentido.
E como já disse alguém “as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas”.

Texto bíblico:  Mc 7,31-37

Na oração: nas profundezas do silêncio de seu coração e sob a ação do Espírito, “escave” palavras inspiradas
                   que serão portadoras de vida junto àqueles que lhe são mais próximos.





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