TRANSFIGURAR A CAPACIDADE DE
ESCUTAR
O centro do relato da “transfiguração de Jesus” é ocupado pela Voz que vem de uma
estranha nuvem, símbolo que a Bíblia usa para nos falar da presença sempre
misteriosa de Deus que se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta. A Voz diz
estas palavras: “Este é o meu Filho
amado; escutai-o”.
Com este relato, Marcos quer indicar que o seguimento
implica muito mais que uma simples confissão de fé no Jesus como Messias; os
discípulos, no Monte Tabor, também passam por uma transformação: eles devem ser
curados da cegueira e surdez espiritual que os impede de ver as exigências do amor
e de escutar os apelos que os levam, como Jesus, a uma entrega radical de suas
vidas.
Subindo ao Tabor interior, também nós seremos
transfigurados: através desta experiência nossos olhos e ouvidos do coração se
abrirão, capacitando-nos para contemplar a realidade tal como Deus a contempla.
Esta experiência igualmente nos capacita para
alcançar também uma percepção diferente das outras pesso-as; não julgaremos
mais as pessoas pelas suas aparências externas, mas as veremos com mais
profundidade, no coração, como se estivéssemos aprendendo a “ver” com os olhos
de Deus; da mesma forma, estaremos mais sensibilizados para escutar os outros
com mais atenção, deixando ressoar em nosso interior as vozes que nos chegam das
margens. Continuaremos descobrindo que olhar para o mundo e escutar seus clamo-res
será um desafio e uma tarefa contínua que vai mais além de uma experiência
isolada de encontro divi-no-humano sobre o alto da montanha.
A Transfiguração
nos fala da verdade que carregamos dentro de nós, mas também de novos olhos e
ouvidos abertos para entrar em sintonia com esta realidade interior.
Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza
egoísticamente.
A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver
na inércia.
A verdadeira sabedoria nasce não do que está acumulado na memória, mas de uma
transparente escuta no momento
presente, essa simples acolhida que torna sábios os pobres, sensíveis ao sopro
de Deus, este Deus sempre livre, sempre presente, desconcertante.
Já diziam os antigos:“Fides ex auditu”; a fé
vem pelo ouvido; o próprio Deus
deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano.
Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele,
d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de ternura. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.
Na Sagrada Escritura, o exercício
do ouvido, a escuta, é prerrogativa
tanto de Deus como do ser humano.
Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre de Deus é o caminho para
encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, como no
melhor eco de nossa oculta beleza.
É Deus mesmo que abre cada manhã
os ouvidos dos discípulos e os torna atentos à escuta.
Em toda Palavra de Deus existe
sempre um dinamismo que nos des-vela e re-vela nossa verdade original. Voltar a
escutar é voltar a ser criança.
Tudo é palavra e silêncio. Tudo
no universo vibra, emite, transmite, fala, vive.
E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.
A escuta estabelece
a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus.
No evangelho de hoje, o apelo à escuta nos
interpela com força; é um apelo que brota da nossa própria vida, como abertura
à profundidade de uma existência com sentido e horizonte; trata-se de um
chamado a escutar uma palavra nova e
original e que nos abre a uma dimensão transcendente, sempre apaixonante, de
uma relação pessoal com o Criador e com os outros.
Desde nosso nascimento, começamos a
viver uma relação com o meio ambiente que implica uma escuta e uma resposta. E
assim nossa personalidade humana e espiritual vai se definindo.
No contexto atual, a atitude de escuta
é um desafio; inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma
trazer consigo. O ritmo da vida não nos permite “lê-la” com claridade, com a
entonação que ela exige e merece. Cremos ter uma riqueza interior que queremos
proclamar, e preferimos que nos escutem, mas ao falar não articulamos bem nossa
mensagem, desconhecendo que nossa riqueza interior se desperta primordialmente
na escuta.
É preciso destravar nossa
capacidade de escuta interior, para acolher e discernir as diferentes vozes que
ali se fazem presentes. Sem interioridade e sem escuta do próprio coração, nós
nos desumanizamos.
Educados na escuta interior, estaremos
sensibilizados para a escuta da realidade.
Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter
ouvidos para a escuta.
Aqui não se trata de ser puramente receptivos a
algumas idéias, escutar determinadas palavras, senão de escutar com o ouvido do
coração, de procurar captar a vida que pulsa no coração do outro. E isto exige
uma profundidade que talvez esteja faltando, quando estamos nos movendo na
superficialidade da vida.
Além disso, saber escutar o outro é uma simples, mas
profunda acolhida humana. Saber escutar é acolher o outro. Há muita carência
dessa capacidade em nossa sociedade globalizada, individualizada e sobretudo
informatizada ou tecnologizada. Estamos rodeados de aparelhos e não de pessoas;
tudo são ruídos e vozerio crônico. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas
falta o interlocutor que escuta sabiamente.
O Evangelho nos quer colocar no caminho
de uma verdadeira humanização; daí a insistência em ter uma atitude aberta e
acolhedora de escuta.
Texto bíblico: Mc 9,2-10
Na oração: Como
restaurar em nós essa capacidade de escutar? A escuta se restaura no Silêncio,
na capa-
cidade de acolher Aquele
que fala no silêncio. Desse prolongado silêncio, acaba-se ouvindo a Palavra da
qual brota todas as palavras humanas.
- Tomo consciência daquilo que
obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes
de prestar atenção”.
- Tomo consciência da
superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro,
não deixando ressoar a sua voz no meu coração.
- Tomo consciência de todas as
mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram meus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da
verdade e da vida.
- Tomo consciência da
hipersensibilidade auditiva que me faz reagir bruscamente frente à
incompreensão ou me faz sucumbir frente
aos slogans da moda.