Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Homilia Dominical - 1o. de março de 2015


TRANSFIGURAR A CAPACIDADE DE ESCUTAR

 

“E uma voz, que saiu da nuvem, disse: ‘Este é o meu Filho amado; escutai o que Ele diz’” (Mc 9,7)

 

O centro do relato da “transfiguração de Jesus” é ocupado pela Voz que vem de uma estranha nuvem, símbolo que a Bíblia usa para nos falar da presença sempre misteriosa de Deus que se manifesta e, ao mesmo tempo, se oculta. A Voz diz estas palavras: “Este é o meu Filho amado; escutai-o”.

Com este relato, Marcos quer indicar que o seguimento implica muito mais que uma simples confissão de fé no Jesus como Messias; os discípulos, no Monte Tabor, também passam por uma transformação: eles devem ser curados da cegueira e surdez espiritual que os impede de ver as exigências do amor e de escutar os apelos que os levam, como Jesus, a uma entrega radical de suas vidas.

 

Subindo ao Tabor interior, também nós seremos transfigurados: através desta experiência nossos olhos e ouvidos do coração se abrirão, capacitando-nos para contemplar a realidade tal como Deus a contempla.

Esta experiência igualmente nos capacita para alcançar também uma percepção diferente das outras pesso-as; não julgaremos mais as pessoas pelas suas aparências externas, mas as veremos com mais profundidade, no coração, como se estivéssemos aprendendo a “ver” com os olhos de Deus; da mesma forma, estaremos mais sensibilizados para escutar os outros com mais atenção, deixando ressoar em nosso interior as vozes que nos chegam das margens. Continuaremos descobrindo que olhar para o mundo e escutar seus clamo-res será um desafio e uma tarefa contínua que vai mais além de uma experiência isolada de encontro divi-no-humano sobre o alto da montanha.

A Transfiguração nos fala da verdade que carregamos dentro de nós, mas também de novos olhos e ouvidos abertos para entrar em sintonia com esta realidade interior.

Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.

A escuta é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia.

A verdadeira sabedoria nasce não do que está acumulado na memória, mas de uma transparente escuta no momento presente, essa simples acolhida que torna sábios os pobres, sensíveis ao sopro de Deus, este Deus sempre livre, sempre presente, desconcertante.

 

Já diziam os antigos:“Fides ex auditu”;  a vem pelo ouvido; o próprio Deus deixa-se perceber pelo ouvido; faz-se “audível” para o ser humano.

Dentre os seres vivos criados por Deus, o ser humano é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem e semelhança d’Ele, d’Aquele que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de ternura. “Deus é a Palavra suprema e o Silêncio infinito”.

Na Sagrada Escritura, o exercício do ouvido, a escuta, é prerrogativa tanto de Deus como do ser humano.

Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre de Deus é o caminho para encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, como no melhor eco de nossa oculta beleza.

É Deus mesmo que abre cada manhã os ouvidos dos discípulos e os torna atentos à escuta.

Em toda Palavra de Deus existe sempre um dinamismo que nos des-vela e re-vela nossa verdade original. Voltar a escutar é voltar a ser criança.

Tudo é palavra e silêncio. Tudo no universo vibra, emite, transmite, fala, vive.

E ao mesmo tempo tudo é escuta e percepção.

 

A escuta estabelece a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus.

No evangelho de hoje, o apelo à escuta nos interpela com força; é um apelo que brota da nossa própria vida, como abertura à profundidade de uma existência com sentido e horizonte; trata-se de um chamado a escutar uma palavra nova e original e que nos abre a uma dimensão transcendente, sempre apaixonante, de uma relação pessoal com o Criador e com os outros.

Desde nosso nascimento, começamos a viver uma relação com o meio ambiente que implica uma escuta e uma resposta. E assim nossa personalidade humana e espiritual vai se definindo.

No contexto atual, a atitude de escuta é um desafio; inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo. O ritmo da vida não nos permite “lê-la” com claridade, com a entonação que ela exige e merece. Cremos ter uma riqueza interior que queremos proclamar, e preferimos que nos escutem, mas ao falar não articulamos bem nossa mensagem, desconhecendo que nossa riqueza interior se desperta primordialmente na escuta.

É preciso destravar nossa capacidade de escuta interior, para acolher e discernir as diferentes vozes que ali se fazem presentes. Sem interioridade e sem escuta do próprio coração, nós nos desumanizamos.

 

Educados na escuta interior, estaremos sensibilizados para a escuta da realidade. Permitir que cada realidade fale para nós sua própria linguagem. Isso é ter ouvidos para a escuta.

Aqui não se trata de ser puramente receptivos a algumas idéias, escutar determinadas palavras, senão de escutar com o ouvido do coração, de procurar captar a vida que pulsa no coração do outro. E isto exige uma profundidade que talvez esteja faltando, quando estamos nos movendo na superficialidade da vida.

Além disso, saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana. Saber escutar é acolher o outro. Há muita carência dessa capacidade em nossa sociedade globalizada, individualizada e sobretudo informatizada ou tecnologizada. Estamos rodeados de aparelhos e não de pessoas; tudo são ruídos e vozerio crônico. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.

O Evangelho nos quer colocar no caminho de uma verdadeira humanização; daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora de escuta.

 

Texto bíblico:  Mc 9,2-10

 

Na oração:  Como restaurar em nós essa capacidade de escutar? A escuta se restaura no Silêncio, na capa-

                     cidade de acolher Aquele que fala no silêncio. Desse prolongado silêncio, acaba-se ouvindo a Palavra da qual brota todas as palavras humanas.

- Tomo consciência daquilo que obstrui os meus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção”.

- Tomo consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, não deixando ressoar a sua voz no meu coração.

- Tomo consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram  meus ouvidos, tornando-os  surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.

- Tomo consciência da hipersensibilidade auditiva que me faz reagir bruscamente frente à incompreensão ou me faz sucumbir  frente aos slogans da moda.

 

 

 

 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Homilia Dominical - 22 de fevereiro de 2015

QUARESMA: integração dos “animais” e “anjos” interiores

“Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13)

A afirmação ousada do Evangelho de hoje, onde Jesus no deserto “vivia entre animais selvagens e os anjos o serviam”, pode servir de ocasião para nos ajudar a “des-velar” (tirar o véu) a nossa interioridade e deixar emergir os “animais” e os “anjos” que nos habitam.
Jesus, radicalmente humano, tem consciência dos diferentes animais e anjos presentes em seu interior.
Sabe conviver com eles e integrá-los ao seu processo humanizador. As tentações não significam uma “luta desgastante” que atrofia seu interior. Ele se deixa conduzir pelo Espírito, e os anjos o alimentam.

Nosso interior é morada de animais selvagens e de anjos. Todos eles tem sua importância na nossa vida.
À luz do Tempo Quaresmal, sentimo-nos envolvidos por uma grande irmandade universal que aponta para a corrente única de vida e de sua imensa bio-diversidade, numa grande teia de inter-dependências e de comunhão de todos com a Fonte originante de tudo. Pela carne e pelo sangue, por todas as células, as fibras e as energias de nosso ser estamos vinculados com o universo.
Segundo o relato da Criação, o ser humano vem da argila, do húmus... Por isso ele carrega em si os mes-mos elementos físico químicos da natureza: minerais, plantas, animais...
O ser humano não está acima ou abaixo das outras criaturas; ele é “um” com elas e é chamado a cuidar delas. Sua vocação primeira é a de ser jardineiro.
Cada ser humano carrega latente em seu íntimo toda a sabedoria do universo. O poeta americano Walt Whitman nos legou uma frase maravilhosa e emblemática sobre este tema: "Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim".
Há multidões dentro de nós, não só de animais irracionais como também de homens e mulheres de todas as etnias, os jardineiros da criação divina. E, embora nesta grande diversidade, somos unidade na capaci-dade de pacificar e de fazer conviver todas as criaturas. Somos como a “arca de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em seu interior todos os animais, com seus instintos selvagens e primitivos, numa harmonia e convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel sagrado e revelador da identidade humana. A aliança de Deus com Noé implica uma aliança com todos os animais, domésticos e selvagens. E o maior desafio é, justamente, a convivência com todos os animais que carregamos em nosso próprio interior. São eles que nos facilitarão o acesso às nossas riquezas interiores.

Nossa animalidade não deve ser esquecida, recusada, extirpada, controlada ou domesticada. Na mística judeu-cristã, nossa animalidade deve ser salva. Salvar nossa animalidade exige explorar nomes, identidades, símbolos e energias animais. O relacionamento entre humanidade e animalidade não é antagônico, excludente. Cada pessoa é chamada a conhecer, reconhecer, nomear e levar a termo os animais que a habi-tam. E caminhar fraternalmente com seus irmãos animais (cf. Evaristo de Miranda).
É preciso, antes de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de conhecê-los, aprender a linguagem deles, fazer amizade com eles para que eles não nos destruam por dentro.
Faz parte da maturidade e crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o desafio de animais interiores como a rã, a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão... Cada animal deve ser verbalizado, integrado harmoniosamente no tem-po certo e no lugar adequado. Ao fazer isso, descobrimos as diferentes dimensões da ecologia espiritual.

No entanto, no nosso processo formativo e a partir de uma visão exageradamente antropocêntrica, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou  a reprimir e a manter presos todos os animais  na gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. E com isso, passamos a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos devorar.
Com isso nos excluímos do prazer de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade é violentada.
Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens”  tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito grande e fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com eles. Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.
Cada um deles representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos... que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior. Lutar contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter acesso às reservas de riqueza do próprio coração.
Quando todas as energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o refina-mento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior de sabedoria e de desfrute espiritual. Então eles irão nos conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido.

Os “anjos” que nos habitam e nos servem são os “consolos” que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, de fortaleza, de amor... O crescimento espiritual implica abraçar toda a nossa verdade, os “animais selvagens” e os “anjos”. As “tentações” de Jesus nos inspiram a avançar em direção à nossa verdade profunda, tirando-nos de nossa superficialidade, ou talvez da nossa “zona de conforto” na qual estávamos instalados, conformando-nos com um viver estreito e sem sentido. A integração dos “animais” e “anjos” nos fará criativos e ousados na missão à qual somos chamados a realizar.
Como Noé, podemos nomear e salvar - em nossa arca interior - todos os “animais” e “anjos”.
Resgatar os nossos animais interiores do dilúvio do inconsciente, é aceitar as diferenças e aprender a viver na diversidade. É fazer despertar a consciência dos nossos limites físicos, emocionais, espirituais com a certeza de que caminhamos em direção à plenitude da Criação, para um dia vibrarmos com todas as criaturas do universo no espírito do amor. Com isso, a luz e a fortaleza angelical se expandirão em nosso interior e nos impulsionarão a uma presença harmo-niosa e acolhedora numa realidade tão desintegrada e conflituosa.

Texto bíblico:  Mc 1,12-15

Na oração: A oração visa também atingir uma relação
                    terapêutica com a nossa animalidade, num novo ambiente, numa ecologia espiritual paradisíaca e harmônica para bem viver a maravilha da vida plena e em abundância.
Diante do Deus criador, trazer os seus animais interiores e anjos à luz, deixá-los apresentar-se, serem reconhecidos e ocupar o seu lugar na ecologia espiritual. Trata-se de fazer uma aliança de Vida, entre viventes.
Os cantos e pios, urros e berros, zumbidos e silvos dos animais interiores despertam nossa atenção para dimensões esquecidas, reprimidas de nossa existência. O sussurro dos anjos nos apontará para as dimensões ricas de nossa vida que ainda não foram destravadas. Basta escutar e sentir.







quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015


MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
 PARA A QUARESMA DE 2015

“Fortalecei os vossos corações” (Tg 5,8)

Amados irmãos e irmãs!

Tempo de renovação para a Igreja, para as comunidades e para cada um dos fiéis, a Quaresma é, sobretudo, um “tempo favorável” de graça (cf. 2 Cor 6,2). Deus nada nos pede, sem que antes nos tenha dado: “Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). Ele não nos olha com indiferença; pelo contrário, tem a peito cada um de nós,  conhece-nos pelo nome, cuida de nós e vai à nossa  procura, quando O deixamos. Interessa-se por cada um de nós; o seu amor impede-lhe de ficar indiferente perante aquilo que nos acontece. Coisa diferente se passa conosco! Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (isto, Deus Pai nunca o faz!), não nos interessam os seus problemas, nem as tribulações e injustiças que sofrem; e, assim, o nosso coração cai na indiferença. Encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem! Hoje, esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão mundial tal que podemos falar de uma globalização da indiferença. Trata-se de um mal-estar que temos obrigação, como cristãos, de enfrentar.

Quando o povo de Deus se converte ao seu amor, encontra resposta para as questões que a história continuamente nos coloca. E um dos desafios mais urgentes, sobre o qual quero me deter nesta Mensagem, é o da globalização da indiferença. Dado que a indiferença para com o próximo e para com Deus é uma tentação real também para nós, cristãos, temos necessidade de ouvir, em cada Quaresma, o brado dos profetas que levantam a voz  para nos despertar.

A Deus não Lhe é indiferente o mundo, mas  ama-o  até  ao  ponto  de  entregar  o  seu  Filho  pela  salvação de todo o homem. Na encarnação, na vida terrena, na morte e ressurreição do Filho de Deus, abre-se definitivamente a porta entre Deus e o homem, entre o Céu e a terra. E a Igreja é como a mão que mantém aberta esta porta, por meio da proclamação da Palavra, da celebração dos Sacramentos, do testemunho da fé que se torna eficaz pelo amor  (cf. Gl 5,6).  O  mundo,  porém,  tende  a  fechar-se  em si mesmo e a fechar a referida porta através da  qual Deus entra no mundo e o mundo n’Ele. Sendo assim, a mão, que é a Igreja, não deve jamais surpreender-se, se for rejeitada, esmagada e ferida. Por isso, o povo de Deus tem necessidade de renovação, para não cair na indiferença nem se fechar em si mesmo. Tendo em vista esta renovação, gostaria de vos propor três textos para a vossa meditação.

1. “Se um membro sofre, com ele sofrem todos os  membros” (1 Cor12,26) – A Igreja.
Com o seu ensinamento e, sobretudo, com o seu testemunho, a Igreja oferece-nos o amor de Deus, que rompe esta reclusão mortal em nós mesmos que é a indiferença. Mas, só se pode testemunhar algo que antes experimentamos. O cristão é aquele que permite a Deus revesti-lo da sua bondade e misericórdia, revesti-lo de Cristo para se tornar, como Ele, servo de Deus e dos homens. Bem nos recorda a liturgia de Quinta-feira Santa com o rito do lava-pés. Pedro não queria que Jesus lhe lavasse os pés, mas depois compreendeu que Jesus não pretendia apenas  exemplificar  como  devemos  lavar  os  pés uns aos outros; este serviço, só o pode fazer quem, primeiro, se deixou lavar os pés por Cristo. Só essa pessoa “tem parte com Ele” (cf. Jo 13,8), podendo assim servir o homem. A Quaresma é um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos  como  Ele.  Verifica-se  isto  quando  ouvimos a Palavra de Deus e recebemos os sacramentos, nomeadamente a Eucaristia. Nesta, tornamo-nos naquilo que recebemos: o corpo de Cristo. Neste corpo, não encontra lugar a tal indiferença que, com tanta frequência, parece apoderar-se dos nossos corações; porque, quem é de Cristo, pertence a um único corpo e, n’Ele, não podemos olhar com indiferença o outro. “Assim, se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros; se um membro é  honrado,  todos  os  membros  participam  da  sua alegria” (1 Cor12,26). A Igreja é communio sanctorum, não só porque, nela, tomam parte os Santos, mas também porque é comunhão de coisas santas: o amor de Deus, que  nos foi revelado em Cristo, e todos os seus dons;  e, entre estes, há que incluir também a resposta de  quantos se deixam alcançar por tal amor. Nesta comunhão dos Santos e nesta participação nas coisas  santas, aquilo que cada um possui, não o reserva  só para si, mas tudo é para todos. E, dado que estamos interligados em Deus, podemos fazer algo  mesmo pelos que estão longe, por aqueles que não  poderíamos jamais, com as nossas simples forças,  alcançar: rezamos com eles e por eles a Deus, para  que todos nos abramos à sua obra de salvação.

2. “Onde está o teu irmão?”  (Gn 4,9) – As paróquias e as comunidades.

Tudo o que se disse a propósito da Igreja universal  é  necessário  agora  traduzi-lo  na  vida  das paróquias e comunidades. Nestas realidades eclesiais, consegue-se porventura experimentar que fazemos parte de um único corpo? Um corpo que, simultaneamente, recebe e partilha aquilo que Deus nos quer dar? Um corpo que conhece e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos? Ou refugiamo-nos num amor universal pronto a comprometer-se lá longe no mundo, mas que esquece o Lázaro sentado à sua porta fechada (cf. Lc 16,19-31)? Para receber e fazer frutificar plenamente aquilo que Deus nos dá, devem-se ultrapassar as fronteiras da Igreja visível em duas direções. Em primeiro lugar, unindo-nos à Igreja do Céu na oração. Quando a Igreja terrena reza, instaura-se reciprocamente uma comunhão de serviços e bens que chega até à presença de Deus. Juntamente com os Santos, que encontraram a sua plenitude em Deus, fazemos parte daquela comunhão onde a indiferença é vencida pelo amor. A Igreja do Céu não é triunfante, porque deixou para trás as tribulações do mundo e usufrui sozinha do gozo eterno; antes pelo contrário, pois aos Santos é concedido já contemplar e rejubilar com o fato de terem vencido definitivamente a indiferença, a dureza de coração e o ódio, graças à morte e ressurreição de Jesus. E, enquanto esta vitória do amor não impregnar todo o mundo, os Santos caminham conosco, que ainda somos peregrinos. Convicta de que a alegria no Céu pela vitória do amor crucificado não é plena enquanto houver, na terra, um só homem que sofre e geme, escrevia Santa Tereza de Lisieux, doutora da Igreja: “Muito  espero  não  ficar  inativa  no  Céu;  o meu desejo é continuar a trabalhar pela Igreja e pelas almas”. (Carta 254, de 14 de Julho de 1897).
Também nós participamos dos méritos e da alegria dos Santos e eles tomam parte na nossa luta e no nosso desejo de paz e reconciliação. Para nós, a sua alegria pela vitória de Cristo ressuscitado é origem de força para superar tantas formas de indiferença e dureza de coração.

Em  segundo  lugar,  cada  comunidade  cristã  é chamada a atravessar o limiar que a põe em relação com a sociedade circundante, com os pobres e com os incrédulos. A Igreja é, por sua natureza, missionária, não fechada em si mesma, mas enviada a todos os homens. Esta  missão  é  o  paciente  testemunho  d’Aquele que quer conduzir ao Pai toda a realidade e todo o homem. A missão é aquilo que o amor não pode calar. A Igreja segue Jesus Cristo pela estrada que a conduz a cada homem, até aos confins da terra (cf. At 1,8). Assim podemos ver, no nosso próximo, o irmão e a irmã pelos quais Cristo morreu e ressuscitou. Tudo aquilo que recebemos, recebemo-lo também para eles. E, vice-versa, tudo o que estes irmãos possuem é um dom para a Igreja e para a humanidade inteira.

Amados irmãos e irmãs, como desejo que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença!

3. “Fortalecei os vossos corações”  (Tg 5,8) – Cada um dos fiéis
Também como indivíduos nós temos a tentação da indiferença. Estamos saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade de intervir. Que fazer para não nos deixarmos absorver por esta espiral de terror e impotência? Em primeiro lugar, podemos rezar na comunhão da Igreja terrena e celeste. Não subestimemos a força da oração de muitos! A iniciativa 24 horas para o Senhor, que espero se celebre em toda a Igreja – mesmo em nível diocesano – nos dias 13 e 14 de Março, pretende dar expressão a esta necessidade da oração. Em segundo lugar, podemos levar ajuda, com gestos de caridade, tanto a quem vive próximo de nós como a quem está longe, graças aos inúmeros organismos caritativos da Igreja. A Quaresma é um tempo propício para mostrar este interesse pelo outro, através de um sinal – mesmo pequeno, mas concreto – da nossa participação na humanidade que temos em comum.  E, em terceiro lugar, o sofrimento do próximo constitui um apelo à conversão, porque a necessidade do irmão recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência de Deus e dos irmãos.

Se humildemente pedirmos a graça de Deus e aceitarmos os limites das nossas possibilidades, então confiaremos nas possibilidades infinitas que tem de reserva o amor de Deus. E poderemos resistir à tentação diabólica que nos leva a crer que podemos salvar-nos e salvar o mundo sozinhos. Para superar a indiferença e as nossas pretensões de omnipotência, gostaria de pedir a todos para viverem este tempo de Quaresma como um percurso de formação do coração, a que nos convidava Bento XVI (Carta Enc. Deus caritas est, 31).  Ter  um  coração  misericordioso  não  significa  ter um  coração  débil.  Quem  quer  ser  misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador, mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro.

Por isso, amados irmãos e irmãs, nesta Quaresma desejo rezar convosco a Cristo: “Fac cor nostrum secundum cor tuum – Fazei o nosso coração semelhante ao vosso” (Súplica das Ladainhas ao Sagrado Coração de Jesus). Teremos assim um coração forte e misericordioso, vigilante e generoso, que não se deixa fechar em si mesmo nem cair na vertigem da globalização da indiferença.
Com estes votos, asseguro a minha oração para cada pessoa que crê e para toda a comunidade eclesial para que percorram, frutuosamente, o itinerário quaresmal, enquanto, de minha parte, vos peço que rezeis por mim. Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde!

Vaticano, Festa de São Francisco de Assis, 4 de  Outubro de 2014.


Papa Francisco

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Quaresma - 4a. feira de cinzas

CINZASPáscoa no horizonte

O Ano Litúrgico é um “tempo terapêutico” que toca, desvela e transforma todas as dimensões da vida. A partir desta perspectiva, a Quaresma e a Páscoa são consideradas tempos de intensa mobilização para a mudança interior e comunitária. A expressão bíblica para indicar essa transformação é “metánoia”, que indica mudança, conversão, fazer o retorno, ter diante dos olhos outro caminho a percorrer, tomar outro atalho com uma mudança de direção.
De acordo com este tempo litúrgico, o caminho para a transformação começa simbolicamente com a “Quarta-feira de Cinzas”. Com a imposição das cinzas, reconhecemos a necessidade de dar outro rumo à vida, com todo o nosso ser. Mudar nosso coração de pedra por um coração de carne, misericordioso, com entranhas, humano. A liturgia na Igreja expressa isso mediante uma fórmula ritual: ao traçar a cruz com cinzas a fronte de cada um, proclama: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Ou seja, mude de caminho, com renovada decisão, e assuma a causa de Jesus de Nazaré: seu Reinado de justiça e de paz.

As “cinzas” são o símbolo daquilo que morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Cinzas obtidas dos ramos que na celebração do ano anterior nos ajudou a fazer memória da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém. O modo de louvar, de rezar, de celebrar do ano passado, já não serve mais; não podemos usar os mesmos ramos, os mesmos argumentos, a mesma intensidade. Daqui brota a necessidade de não nos apegarmos àquilo que serviu alguma vez para nosso crescimento espiritual e comunitário, para fazer apare-cer a novidade de uma notícia que sempre desperta mais assombro.
Os ramos transformados em cinzas, passaram pelo fogo. Essa é a nossa garantia: que aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado. Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas, sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa prepotência e auto-centramento. 
Das cinzas  surgirá a maturação; as folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos humaniza.
As cinzas, também, apresentam a textura e a leveza para deixar-se espalhar pelo vento, para que o “sopro do Espírito” as leve para onde quer que seja, as lance em terras novas, conferindo-lhes novas fertilidades.
Marcados pelas cinzas, deixamo-nos conduzir pelo Vento do Espírito para lugares onde seja necessário nossa presença, nosso testemunho, nossa profecia. Quaresma é tempo para confiar nas cinzas e no vento, para sair e criar o novo, preparar o novo mundo e fecundar a nova terra.

Para ajudar a fazer a “travessia” de uma vida estreita e limitada a uma vida expansiva, aberta e compro-metida, a liturgia quaresmal nos convida a viver as chamadas “práticas quaresmais” ou seja, o jejum, a esmola, a oração como atitudes que nos permitem abrir e ampliar espaços em nosso coração, para Deus e para os outros. São também práticas que nos fazem crescer na identificação e no seguimento de Jesus Cristo, pois a Quaresma implica “ter os olhos fixos n´Ele”, para deixar-nos impregnar pelo seu “modo de ser e viver”, alargando cada vez mais as quatro dimensões básicas da vida: relação consigo, com os outros, com a criação e com Deus.

Fazer jejum não se limita a renunciar algo (alimento, bebida, vícios…); tal atitude pode nos levar a fari-saísmos ou voluntarismos, quando o centro somos nós mesmos. Fazer jejum significa ativar e reforçar os dinamismos humanos oblativos, ou seja, aqueles que nos des-centram e nos expandem na direção do serviço e do compromisso com o outro, sobretudo os mais pobres e excluídos. Se o jejum não nos faz mais compassivos, solidários, com espírito de partilha... ele se reduz a uma simples penitência, vazia de sentido. No seu horizonte, o outro não está presente.
A quaresma deverá, então, ser um tempo para “jejuar alegremente”; e isto implica duas coisas:
- jejuar de julgar os outros e festejar a nobreza escondida em cada um; jejuar de preconceitos que nos afastam e fazer festa por aquilo que nos une na vida; jejuar das tristezas e celebrar a alegria; jejuar de pensamentos e palavras doentias e alegrar-nos com palavras carinhosas e edificantes; jejuar de lamentar fracassos e festejar a gratidão; jejuar de ódio e festejar a paciência santificadora; jejuar de pessimismos e viver a vida com otimismo como uma festa contínua; jejuar de preocupações, queixas e lamentações, e festejar a esperança e o cuidado providente de Deus; jejuar de pressas e ativismos e saber festejar o repouso reparador;...

Algo disto também é vivido através da prática da “esmola”, que não se reduz a renunciar algo próprio, o que sobra. Implica fazer da vida uma contínua “oferta”, ou seja, uma atitude de vida atenta à realidade do
outro, deixando-se afetar pela sua pobreza, sofrimento e exclusão. Trata-se de viver o espírito de partilha, colocando “pitadas” de misericórdia nos gestos de proximidade; ter um olhar contemplativo que sabe ler entre linhas, que está atento à sede de compaixão daqueles que o cercam; revelar uma forma de se rela-cionar com os outros de outra maneira, mais gratuita e desinteressada; não é tirar da bolsa, mas do cora-ção; compartilhar o que se é e o que se tem, em suma, que seja expressão de amor.

Enfim, outra prática quaresmal que nos faz crescer na identificação com Jesus e a viver na perspectiva do outro é a oração. A oração, é vista, muitas vezes, como um modo de “terceirizar” soluções: pedir a Deus que faça o que nós não fazemos; e se Ele não faz será sua suprema vontade que tudo se mantenha igual, fechando a pessoa em sua cápsula tão distante da vida das pessoas.
Quaresma é tempo propício para ter Jesus orante diante dos olhos, como referente e inspirador. 
A oração de Jesus o fazia mergulhar de cheio nas dores, nas exclusões e nas injustiças cotidianas, e o provocava a revisar suas práticas concretas, para cultivar vínculos mais semelhantes aos que Ele descobria como o sonho do Pai. Na oração, Jesus exalta os pequenos e excluídos; nas experiências compartilhadas de oração vai delineando sua missão e ampliando seus próprios limites, abre-se aos “pagãos”, reconhece e aceita o novo que brota das margens.
Em atitude orante, Jesus abre os olhos e ouvidos dos cegos e surdos, põe de pé os paralíticos, anima os desfalecidos a recomeçar, cura os doentes... A solidão no monte o impulsiona a compreender com mais profundidade o sentido daquilo que vive e a comprometer suas mãos com maior decisão nas vidas daqueles com quem se encontra...

Texto bíblicoMt 6,1-6.16-18

Na oração: Em nosso interior há todo um mundo de vozes, ruídos e imagens que surgem de nós mesmos,
                    daqueles que nos rodeiam, de nossa comunidade e também de Deus. É preciso tomar consciência dos “movimentos internos” que acontecem na oração, acolhê-los, interpretá-los e verificar a direção que eles estão indicando.
Daí a importância do silêncio na oração; ele é a chave a raiz da palavra carregada de vida; o silêncio é o território da palavra ousada e criativa; a palavra mais significativa brota de uma longa espera, de um prolongado silêncio; do silêncio brota a palavra que torna nossa vida mais intensa, abrindo-nos a Deus e aos outros; na oração aprendemos a distinguir e dar nome àquilo que vem de Deus; vamos aprendendo a escolher as cores que nos ajudam a preencher nossa vida, por dentro e por fora, com as tonalidades que melhor nos harmonizem com a paisagem que Deus quer pintar no mundo.


domingo, 15 de fevereiro de 2015

Homilia integral do Papa Francisco na Missa com os novos cardeais Cardeais – 15.02.2015
«Senhor, se quiseres, podes purificar-me». Compadecido, Jesus, estendeu a mão, tocou-o e disse: «Quero, fica purificado» (cf. Mc 1, 40-41). A compaixão de Jesus! Aquele «padecer com» levava-O a aproximar-Se de cada pessoa atribulada! Jesus não Se retrai, antes, pelo contrário, deixa-Se comover pelo sofrimento e as necessidades do povo, simplesmente porque Ele sabe e quer «padecer com», porque possui um coração que não se envergonha de ter «compaixão».
Ele «já não podia entrar abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados» (Mc 1, 45). Isto significa que, além de curar o leproso, Jesus tomou sobre Si também a marginalização que impunha a Lei de Moisés (cf. Lv 13, 1-2.45-46). Não teme o risco de assumir o sofrimento alheio, mas paga por inteiro o seu preço (cf. Is 53, 4).
A compaixão leva Jesus a agir de forma concreta: a reintegrar o marginalizado. Temos aqui os três conceitos-chave que a Igreja nos propõe na liturgia da palavra hodierna: a compaixão de Jesus perante a marginalização e a sua vontade de integração.
Marginalização: Moisés, ao tratar juridicamente a questão dos leprosos, reclama que sejam afastados e marginalizados da comunidade, enquanto persistir o mal, e declara-os «impuros» (cf. Lv 13, 1-2.45-46).
Imaginai quanto sofrimento e quanta vergonha devia sentir, física, social, psicológica e espiritualmente, um leproso! Não é apenas vítima da doença, mas sente que é também o culpado, punido pelos seus pecados. É um morto-vivo, como «se o pai lhe tivesse cuspido na cara» (cf. Nm 12, 14).
Além disso, o leproso suscita medo, desprezo, nojo e, por isso, é abandonado pelos seus familiares, evitado pelas outras pessoas, marginalizado pela sociedade; mais, a própria sociedade o expulsa e constringe a viver em lugares afastados dos sãos, exclui-o. E o modo como o faz é tal que, se um indivíduo são se aproximasse de um leproso seria severamente punido e com frequência tratado, por sua vez, como leproso.
A finalidade desta legislação era «salvar os sãos», «proteger os justos» e, para os defender de qualquer risco, marginalizava «o perigo» tratando sem piedade o contagiado. De facto, assim decretou o sumo sacerdote Caifás: «Convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação inteira» (Jo 11, 50).
Integração: Jesus revoluciona e sacode intensamente aquela mentalidade fechada no medo e autolimitada pelos preconceitos. Contudo Ele não abole a Lei de Moisés, mas leva-a à perfeição (cf. Mt 5, 17), declarando, por exemplo, a ineficácia contraproducente da lei de talião; declarando que Deus não gosta da observância do sábado que despreza o homem e o condena; ou, quando perante a mulher pecadora, não a condena, pelo contrário salva-a do zelo cego de quantos já estavam prontos para a lapidar sem dó nem piedade, convictos de aplicar a Lei de Moisés. Jesus revoluciona também as consciências no Sermão da Montanha (cf. Mt 5), abrindo novos horizontes para a humanidade erevelando plenamente a lógica de Deus: a lógica do amor, que não se baseia no medo mas na liberdade, na caridade, no zelo salutar e no desígnio salvífico de Deus: «Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tm 2, 3-4). «Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 12, 7; cf. Os 6, 6).
Jesus, novo Moisés, quis curar o leproso, quis tocá-lo, quis reintegrá-lo na comunidade, sem Se «autolimitar» nos preconceitos; sem Se adequar à mentalidade dominante do povo; sem Se preocupar de modo algum com o contágio. Jesus responde à súplica do leproso sem demora e sem os habituais adiamentos para estudar a situação e todas as eventuais consequências. Para Jesus, o que importa acima de tudo é alcançar e salvar os afastados, curar as feridas dos doentes, reintegrar a todos na família de Deus. E isto deixou alguém escandalizado!
Jesus não teme este tipo de escândalo. Não olha às mentes fechadas que se escandalizam até por uma cura, que se escandalizam diante de qualquer abertura, qualquer passo que não entre nos seus esquemas mentais e espirituais, qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensar e à sua pureza ritualista. Ele quis integrar os marginalizados, salvar aqueles que estão fora do acampamento (cf. Jo 10).
Trata-se de duas lógicas de pensamento e de fé: o medo de perder os salvos e o desejo de salvar os perdidos. Hoje, às vezes, também acontece encontrarmo-nos na encruzilhada destas duas lógicas: a dos doutores da lei, ou seja marginalizar o perigo afastando a pessoa contagiada, e a lógica de Deus que, com a sua misericórdia, abraça e acolhe reintegrando e transformando o mal em bem, a condenação em salvação e a exclusão em anúncio.
Estas duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. São Paulo, ao pôr em prática o mandamento do Senhor de levar o anúncio do Evangelho até aos últimos confins da terra (cf. Mt 28, 19), escandalizou e encontrou forte resistência e grande hostilidade sobretudo da parte daqueles que exigiam, inclusive aos pagãos convertidos, uma observância incondicional da Lei mosaica.O próprio São Pedro foi duramente criticado pela comunidade, quando entrou na casa de Cornélio, um centurião pagão (cf. Act 10) .
O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).
Curando o leproso, Jesus não provoca qualquer dano a quem é são, antes livra-o do medo; não lhe cria um perigo, mas dá-lhe um irmão; não despreza a Lei, mas preza o homem, para o qual Deus inspirou a Lei. De facto, Jesus liberta os sãos da tentação do «irmão mais velho» (cf. Lc 15, 11-32) e do peso dainveja e da murmuração dos «trabalhadores que suportaram o cansaço do dia e o seu calor» (cf. Mt 20, 1-16).
Consequentemente, a caridade não pode ser neutra, indiferente, morna ou esquiva. A caridade contagia, apaixona, arrisca e envolve. Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita (cf. 1 Cor 13). A caridade é criativa, encontrando a linguagem certa para comunicar com todos aqueles que são considerados incuráveis e, portanto, intocáveis. O contacto é a verdadeira linguagem comunicativa, a mesma linguagem afectiva que comunicou a cura ao leproso. Quantas curas podemos realizar e comunicar, aprendendo esta linguagem! Era um leproso e tornou-se arauto do amor de Deus. Diz o Evangelho: «Ele, porém, assim que se retirou, começou a proclamar e a divulgar o sucedido» (cf. Mc 1, 45).
Amados novos Cardeais, esta é a lógica de Jesus, este é o caminho da Igreja: não só acolher e integrar, com coragem evangélica, aqueles que batem à nossa porta, mas ir à procura, sem preconceitos nem medo, dos afastados revelando-lhes gratuitamente aquilo que gratuitamente recebemos. «Quem diz que permanece em [Cristo], deve caminhar como Ele caminhou» (1 Jo 2, 6). A disponibilidade total para servir os outros é o nosso sinal distintivo, é o nosso único título de honra!
Nesta Eucaristia, que nos vê reunidos ao redor do altar do Senhor, invoquemos a intercessão de Maria, Mãe da Igreja, que sofreu em primeira mão a marginalização por causa das calúnias (cf. Jo 8, 41) e do exílio (cf. Mt 2, 13-23), para que nos alcance a graça de sermos servos fiéis a Deus. Ensine-nos Ela – que é a Mãe – a não termos medo de acolher com ternura os marginalizados; a não temermos a ternura e a compaixão; que Ela nos revista de paciência acompanhando-os no seu caminho, sem buscar os triunfos dum sucesso mundano; que Ela nos mostre Jesus e faça caminhar como Ele.
Amados irmãos, com os olhos fixos em Jesus e em Maria nossa Mãe, exorto-vos a servir a Igreja de tal maneira que os cristãos – edificados pelo nosso testemunho – não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial. Exorto-vos a servir Jesus crucificado em toda a pessoa marginalizada, seja pelo motivo que for; a ver o Senhor em cada pessoa excluída que tem fome, que tem sede, que não tem com que se cobrir; a ver o Senhor que está presente também naqueles que perderam a fé ou se afastaram da prática da sua fé; o Senhor, que está na cadeia, que está doente, que não tem trabalho, que é perseguido; o Senhor que está no leproso, no corpo ou na alma, que é discriminado. Não descobrimos o Senhor, se não acolhemos de maneira autêntica o marginalizado. Recordemos sempre a imagem de São Francisco, que não teve medo de abraçar o leproso e acolher aqueles que sofrem qualquer género de marginalização. Verdadeiramente é no evangelho dos marginalizados que se descobre e revela a nossa credibilidade!

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