Teológico Pastoral

Teológico Pastoral

segunda-feira, 28 de março de 2016

2o. Domingo da Páscoa

POR SUAS SANTAS CHAGAS…


“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)

O relato do Evangelho deste 2º. domingo é sugestivo e interpelador. Quando Jesus ressuscitado se faz presente, acontece uma profunda transformação no grupo dos seus discípulos: eles recuperam a paz, desaparecem os medos, enchem-se de uma alegria contagiante, sentem o “sopro” do Espírito em seus corações infundindo-lhes ânimo e coragem, abrem as portas porque se sentem enviados à mesma missão que Jesus tinha recebido do Pai.
A presença misericordiosa é a marca do Ressuscitado: ela é força criadora e reconstrutora de vidas des-pedaçadas. Jesus ressuscita cada um dos seus amigos e amigas, ativando neles o sentido da vida, reconstru-indo laços comunitários rompidos e oferecendo solo firme a quem estava sem chão, sem direção.
Jesus reconstrói pessoas feridas mostrando Suas chagas e des-velando as feridas de seus seguidores (fracasso, traição, dor, tristeza, medos...). Suas feridas revelam que, por debaixo das feridas dos seus amigos e amigas, há vida escondida querendo se expandir; debaixo da pedra da dor e do fracasso há um dinamismo vital querendo buscar um lugar ao sol.

 João, no relato de hoje, quis reforçar a corporalidade da Ressurreição e o fez desta forma, destacando o valor das chagas de Jesus. O Senhor Ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade.
Este Jesus pascal continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres das mãos esmagadas, na ferida do peito de homens e mulheres que sofrem rejeição e preconceito, nas feridas dos pés de homens e mulheres impedidos de dar direção às suas vidas.
Não há experiência pascal sem um retorno à corporalidade de Cristo, que continua sendo o mesmo Jesus histórico que morreu por fidelidade ao projeto do Reino.
Podemos dizer que Jesus apresenta a seus discípulos sua Carteira de Identidade: suas mãos chagadas e seu lado aberto. O Ressuscitado é o Crucificado e o Crucificado é o Ressuscitado.
Há uma continuidade entre a Cruz e a Páscoa; não há rupturas, é a mesma identidade pessoal.
Por que as chagas? São as credenciais que melhor revelam quem é Jesus. Elas são o sinal e a expressão do seu amor, o amor até o extremo, o amor até dar a vida.
Essas mesmas chagas são as melhores credenciais de todo seguidor de Jesus. Credenciais que definem o cristão como aquele que ama à maneira de Jesus; este não ama de verdade enquanto não possa mostrar suas chagas no serviço aos outros.

A cena do encontro do Jesus Ressuscitado com Tomé nos revela a exigência de conversão de um tipo de cristianismo puramente “espiritual”. Tomé se move fora do espaço da dor de pessoas concretas, sem cruz real, sem comunidade aberta às chagas da humanidade.
Por isso, ele não está presente no 1º. grupo que “viu” Jesus e acreditou n’Ele.
Tomé continua sendo o apóstolo de uma espiritualidade desencarnada, sem compromisso social, sem denúncia profética, sem solidariedade com os pobres e excluídos. Ele é um seguidor especial de Jesus, mas sem “carne e sangue”, ou seja, sem ressurreição histórica, sem transformação da “carne”.
Tomé é expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus histórico, do Jesus das chagas nas mãos, pés e lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado.
Provavelmente Tomé crê no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, sem chagas nas mãos, no peito e nos pés: das mãos que tocaram os pobres e doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade, dos pés que romperam distâncias na direção dos chagados do mundo.
Há sempre o perigo de crer no Ressuscitado “asséptico”, sem chagas em seus pés, mãos e lado. Crer em Jesus sem as chagas é esquecer-se das feridas dos pobres, a morte dos oprimidos; é não tocar as chagas da humanidade ferida, quebrada...
Esta cena vem colocar em questão muitos movimentos “aleluiados”, mas desencarnados e longe do com-promisso com os sofredores da história. Crer no Ressuscitado é comprometer-se a tirar da Cruz todos aqueles que nela estão dependurados.

Mas, Tomé vem no “domingo” seguinte, algo lhe atrai; não só “vê” a Jesus senão que é convidado a tocá-Lo. Esta experiência de “conversão” de Tomé, que volta à comunidade e que toca as chagas de Jesus, faz parte essencial do mistério da páscoa cristã.
Segundo o Evangelho de hoje, Tomé precisa converter-se, descobrindo e confessando em sua vida a chaga de Cristo que continua sofrendo nos pobres e sofredores. O cristianismo não é uma espiritualidade desen-carnada, mas uma religião da “carne comprometida” e solidária.
Por isso Jesus diz a Tomé e a cada um de nós: “Põe tua mão na chaga dos cravos, no meu peito atraves-sado pela lança, descobre minha presença pascal na ferida dos crucificados da história”.

A Páscoa, portanto, implica aprender a tocar com mais força e de um modo mais profundo as nossas próprias feridas e as feridas da humanidade. Tocar em Jesus, colocar o dedo em sua chaga, é descobrir a ferida sangrenta da história humana, vinculando assim a ressurreição com a dor dos homens e mulheres oprimidos, excluídos, enfermos...
Nas chagas de Jesus, nossas chagas são iluminadas e integradas.
A descoberta da vida dos sofredores e a implicação compassiva para com eles desperta em nós um sentimento de compaixão para conosco mesmo: ela nos faz tocar nossas próprias feridas, herdadas ou surgidas na busca do crescimento enquanto pessoas.
Mostrar aos outros as próprias feridas é um desafio, supõe abertura e humildade. Tocar, com profunda sensibilidade, as feridas dos outros é um ato de comunhão que nos ressuscita e nos inclui, como Tomé, na Ressurreição de Jesus.

Texto bíblicoJo 20,11-19

Na oração: Tocar o Ressuscitado, tocando as chagas dos crucificados: isso é o que devemos fazer todos, de
                       maneira que o contato com o sofrimento do mundo nos transforme e nos faça capazes de expandir a Vida de Deus.
- Crer no Ressuscitado é viver de Sua presença misericordiosa: recordar experiências pessoais de presença junto aos sofredores;

- “Nas Suas chagas nossas feridas são curadas”: quais são suas feridas que travam o fluir da vida?

quinta-feira, 24 de março de 2016

Domingo de Páscoa

JESUS RESSUSCITOU DE TANTO VIVER

“…e viu que a pedra tinha sido tirada do túmulo” (Jo 20,1)

O sentido do Evangelho do domingo de Páscoa é de uma riqueza extraordinária; ele começa realçando um amanhecer cheio de contrastes: escuridão, ida ao sepulcro, a pedra rolada, pôr-se a correr. Desconcerto. Ele não está. Quem O levou? Onde o colocaram?
Quando começa o amanhecer, a escuridão vai se dissipando. Mas ainda não se veem as coisas claramente. O coração anseia ver e encontrar. As sombras impedem ver; o sepulcro impede ver; as faixas impedem ver; as pressas impedem ver. Correm as mulheres; corre Simão Pedro; corre João.
No final, encontrar-se-ão com Ele quando estiverem quietos, a sós consigo mesmos.
Não é correndo que se experimenta a Páscoa; é na espera silenciosa que se encontra com o Ressuscitado. Pois é Ele quem toma a iniciativa, se apresenta e se dá a conhecer. Luminosa, amorosa, pacificadora, vi-brante, feliz, generosa, reconciliadora..., assim é a presença do Ressuscitado entre seus amigos e amigas.
Não encontraremos o Ressuscitado no sepulcro, mas na vida. Não encontraremos o Ressuscitado en-faixado e paralisado pela morte. Só poderemos encontrar o Ressuscitado livre como a brisa da vida.
Não “vemos” a Ressurreição contemplando os restos da morte; só podemos contemplar o Ressuscitado no mistério da vida. Pois só existe a Vida. E “Jesus ressuscitou de tanto viver”. Aquele que viveu tão in-tensamente não podia permanecer na morte. Por isso, só no compromisso com a vida é que podemos encontrá-Lo. A Ressurreição nos revela: só existe a Vida; só nos resta viver intensamente.

O relato do Evangelho do domingo de Páscoa é uma verdadeira catequese: para quem viveu a experiência, trata-se do “primeiro dia da semana”; para Maria Madalena, no entanto, ainda é de noite: “está escuro”. Sabemos que para o autor do 4º. Evangelho, a noite é sinônimo de obscuridade, confusão, ignorância; o “primeiro dia”, pelo contrário, faz alusão à “nova criação”.
Madalena levanta-se de madrugada, quando ainda está escuro; a dor por aquele que ama faz vencer o medo, coloca-a em movimento e põe-se a buscar . Não se resigna diante da ausência do seu amado, nem diante da idéia do fracasso e da morte.
Marida Madalena é boa companheira quando atravessamos circunstâncias de “vida sepultada”, quando não sabemos o que fazer diante da dor dos outros, quando estamos próximos de pessoas que vivem reali-dades de desesperança, de não ver saída, de “pedras” que vão sendo colocadas encima e deixam a vida paralisada; quando já estamos tentados a dizer: "não há nada que fazer”, “as coisas não vão mudar”.

Ao caminhar em direção ao sepulcro, lugar da morte e da desesperança, Maria Madalena é surpreendida ao observar que “a pedra tinha sido removida”, ou seja, que a morte tinha sido vencida. Ela busca deses-peradamente um corpo sem vida; enquanto assim busca não poderá reconhecer Jesus. Ele já não está onde não há vida, porque onde Ele aparece toda vida se levanta. Se Ele está no centro, há vida até no fundo dos sepulcros.
“A pedra tinha sido removida”: imagem instigante e que nos sugere algo profundamente sábio: debaixo de cada “pedra” que parece amassar-nos, há vida que quer ressuscitar.
Mais profundamente ainda, não há nenhuma “pedra”, nada que seja capaz de sufocar a vida. Qualquer “pedra” que nossa mente possa imaginar já foi “afastada”: o que somos, encontra-se sempre a salvo; a vida não pode ser derrotada.

Depois de ficar impactada diante do túmulo aberto, ela volta correndo à cidade para contar isso aos outros; é a primeira corrida de Maria Madalena.
Dois homens correm também para o sepulcro: um vê mas não entra, o outro entra e a princípio ainda não vê. Estão embaçados os seus olhos, é lenta a visão que busca um corpo conhecido, que pensa encontrar o já sabido, o já visto, o já esperado.
No final da corrida, uma tumba vazia, algumas faixas, um sudário e um vazio no coração. Pedro e João regressam pensativos ao refúgio, onde se encontram os outros discípulos.
O sepulcro vazio é um convite a saber olhar com o coração para poder descobrir, nas “faixas” e no “sudário” de nossa vida, o Ressuscitado, a Presença d’Aquele que é.
Ao chegarem ao sepulcro, Pedro e João não viram o Ressuscitado, mas “faixas” e “sudário”. Mas, tanto as faixas como o sudário não são elementos que por si mesmos fundamentam a fé na ressurreição.
Requer-se uma maneira de “olhar” que vai mais além da materialidade, ou melhor, que saiba descobrir nos sinais a Presença d´Aquele que está presente em tudo e tudo anima. Quem sabe “olhar” desse modo é “o outro discípulo, a quem Jesus amava”, a imagem do verdadeiro discípulo.

Sem dúvida só o amor nos capacita para um olhar contemplativo; por isso, o amor “corre” mais depressa que a autoridade. Vem à memória palavras como as de Pascal: “O coração tem razões que a razão desco-nhece”; ou as do Pequeno Príncipe: “O essencial é invisível aos olhos; só se vê bem com o coração”.
É que o amor, por seu próprio dinamismo integrador e unificador, nos faz descobrir a dimensão mais profunda da realidade que, de outro modo, nos escapa. Para quem tem olhar contemplativo, as “faixas” já representam um grande sinal: apontam para uma Vida destravada e plena.
 “Faixas” são todo desejo de superação, a vontade que sentimos de ser melhores, a aspiração por viver, o amor aos outros e a capacidade de perdão; o desejo de plenitude; a beleza daquilo que nos cerca; a vivência prazerosa, a esperança sustentada em meio ao sofrimento; o silêncio; a vivência do Presente; a oração; o encontro pessoal; a experiência de ser transformados; a mesa compartilhada...
À luz da Ressurreição, tudo isso ganha dinamismo e um novo impulso para viver em plenitude.

Diante da obscuridade daqueles que ainda não experimentaram o encontro com o Ressuscitado, as testemunhas proclamam: “Jesus ressuscitou” e “viver como ressuscitados” é a marca que identifica os(as) seguidores(as) d’Aquele que “ressuscitou de tanto viver”.
E essa é a Boa notícia que nada nem ninguém poderá arrebatar-nos. A Ressurreição não é simplesmente para ser contada, é para ser vivida; ou dito de outra maneira, não podemos contá-la sem ter ficado trans-formados, sem ter sido transpassados por essa experiência que rompe as fronteiras de nossa vida.

Texto bíblicoJo 20,1-9

Na oração: São nossas pequenas ressurreições cotidianas que falam da Ressurreição de Jesus; nas nossas res-
                     surreições descobrimos a presença do Ressuscitado. É em nossa vida onde O reconhecemos vivo. Somos testemunhas de sua ressurreição; somos testemunhas da nova vida; somos testemunhas do novo que está começando. Páscoa, luz expansiva que nos faz perceber em profundidade os sinais de Vida.
- Rezar as “faixas” e o “sudário” do seu cotidiano que apontam para a Vida plena.

             A todos aqueles(as) que hoje amanhecem “novos”, “criaturas novas”, uma Santa Páscoa.

                                                                       Pe. Adroaldo Palaoro sj






quarta-feira, 23 de março de 2016

6a.feira Santa

CRUZ: Misericórdia vulnerável

“No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Jesus a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz” (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)

A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de Deus.
No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia do Pai. Na Paixão encontra-mos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da fragilidade para manifestar a força reconstrutora de seu Amor.
A Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do Amor levado até às últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós.
                 “Deus é capaz de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA(Moltmann).
O Amor torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre, ativo, fecundo.
Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também incapaz de amar.

De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente, chama-se misericórdia compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor puro, Deus usa de paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma com-passiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o sofrimento e a fragili-dade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas também de sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração, fragilidade e silêncio do Pai, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da compaixão e da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre em dores de parto por sua criação, nosso sofrimento está em suas mãos, em seu seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.

Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda de seu apaixonado interesse por nos salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da história; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora.
A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração.

A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos.
 “Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus, olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor misericordioso.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história.

O que nos assusta diante da Paixão de Cristo é o profundo e estridente “silêncio de Deus”.
No entanto, o silêncio de Deus não se deve a que Ele queira calar, mas a que nós não podemos escutar.
Se existe silêncio, este enraiza-se não no calar de Deus, mas na surdez radical do ser humano.
A Cruz de Cristo revela que Deus continua do lado do inocente sofredor. No silêncio, Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles que sobram...
 “Deus sofre” com seu Filho; seu coração sangra juntamente com ele na cruz. Se Deus “sofre”, é por seu excesso de Amor, desde o princípio.
O silêncio de Deus  na paixão do Filho é a fronteira da esperança: atrás do silêncio da Cruz, espera, viva e impaciente, a palavra definitiva da Ressurreição.
Ele acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor, sem utilizar o revide de vingança e de poder. Na sua própria vulnerabilidade, renunciando aos atributos divinos, sobretudo de potência, Deus brilha em atributos que surgem do amor puro e humilde.

Para Jon Sobrino, a vivência da Misericórdia é a que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio Misericórdia” tem força e coragem para denunciar aqueles que produzem vítimas, para desmascarar a mentira daqueles que oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se deixou conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significa, por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel a esta misericórdia reconstrutora que se fez visível na Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa transparecer no seu modo de se fazer presente no mundo, então ela se torna conflitiva.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja uma inesgotável exemplaridade e uma referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.

Textos bíblicosMc 14,43-72   Mc 15









segunda-feira, 21 de março de 2016

5a. feira Santa -

EUCARISTIA: uma grande comunhão cósmica

“Tomai e comei, isto é meu Corpo; tomai e bebei, isto é meu Sangue”

Os integrantes do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) estabeleceram para este ano de 2016 mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica com o tema: “Casa comum, nossa responsabilidade”. Todos os cristãos, em suas diferentes denominações, devem assumir o desafio de construir uma Casa Comum justa, sustentável e habitável para todos os seres vivos.
Este compromisso é profético, pois questiona e denuncia as estruturas que provocam diferentes tipos de exclusão: econômica, ambiental, social, racial e étnica. Tudo isso rompe a comunhão com o cosmos, fere e fragiliza a dignidade de homens e mulheres.
Nesta 5ª. feira Santa, dia da instituição da Eucaristia, podemos buscar, nesta última refeição de Jesus, a inspiração e o sentido para uma consciência ecológica integral, restabelecendo a comunhão universal com todas as expressões de vida.

Conhecemos o quadro da Última Ceia de Salvador Dali: o Cenáculo alto, Jesus e os discípulos, o pão partido, o vinho vermelho translúcido... O autor fez as paredes do Cenáculo, enormes, de vidro, como nunca foram na realidade. E, da singeleza da Eucaristia, o olhar vai mergulhando para fora, vendo o mar, as praias, as montanhas, o mundo, o universo... tudo isto transfigurado por um abraço de um corpo humano/divino enorme, braços abertos, acolhendo a cena toda...  É como se Ele ficasse transparente e a gente passasse a ver o mundo inteiro através d’Ele. 
Um sintoma típico da pós-modernidade é o sentimento de orfandade: o universo já não é mais entranha que gera vida, mas um deserto. Percebemos que temos perdido o contato e a comunhão com o cosmos, com o chão, com os animais, com as aves, com os rios e oceanos... e isto tem provocado em nós toda espécie de mal-estar, de doenças, de insegurança, de ansiedade. Somos “seres urbanóides”, cercados de cimento e asfalto por todos os lados. Quando perdemos o contato com a natureza e nos distanciamos da terra, nos tornamos insensíveis, frios e incapazes de compaixão e cuidado.

A Última Ceia de Jesus com os apóstolos revela que a Criação é obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a comunhão com todos os seres. A Terra nos encanta e nos convida, continuamente, à admiração, ao cuidado e à veneração.
Estamos mergulhados no “grande Templo” formado por uma multiplicidade de notas, sons, sinais e mensagens diferentes. Formamos uma realidade complexa, diversa e única. Uma pedra, uma cascata, uma nuvem caprichosa, um pássaro, convertem-se em veículos de sabedoria. É necessário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a viver a comunhão com tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.

Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a Criação, vive numa casa-prisão cujas paredes lhe impedem uma comunhão cósmica. Ao contrário, quando sente a presença de Deus em todas as coisas e entra em comunhão com toda a natureza, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se abre, seus horizontes se ampliam... O Universo passa a ser o seu grande lar, onde ele encontra o coração de Deus. Em tudo se pode vislumbrar um lampejo da divindade. Com isso, a eucaristia revela seu caráter universal que nos permite viver uma espiritualidade ecológica e nos ensina a abraçar a Criação e a nos encontrar com o Deus do Universo. A comunhão com o Universo é ponto de partida e de chegada da Eucaristia.

O dom eucarístico, portanto, não pode ser reduzido a um simples rito desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação).
Pela Eucaristia Deus abraça todas as suas criaturas e as envolve no mistério pascal de seu Filho Jesus, de modo que, de Eucaristia em Eucaristia, todo o Cosmos vai sendo “cristificado”.
A partir da Eucaristia tudo é sagrado, tudo é uma grande liturgia cósmica. O universo é um grande sacramento e se transforma no espaço e no lugar de manifestação da divindade. Tudo é sagrado; a Natureza é sagrada, porque é Templo de Deus. Todos os lugares da mãe-Terra pelos quais caminhamos são “territórios sagrados”. Segundo a Bíblia, a Terra é um jardim onde Deus tem prazer em passear. 
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.
Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).

A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e fez do Universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
No partir do Pão e no beber do Vinho da Eucaristia, palpita a vida que transcende as fronteiras da morte.
Quem come deste Pão e bebe deste Vinho, compromete-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, recebe as energias que vem das profundezas da terra e das alturas do céu.
Num pedaço de pão há o vento que balança as espigas, a noite calma que caiu sobre o campo, o sol arden-te que faz germinar e crescer o trigo, a água generosa que possibilitou a vida, a terra que teve de ser arada, o ser humano trabalhando sem parar, a semente que teve de morrer para que viesse a planta, o adubo que foi posto com mãos calosas, o gesto da mão que preparou a massa... A natureza inteira se mobilizou para gerar o pão, que deve ser partido e oferecido com generosidade.
Da mesma forma, toda a Criação foi mobilizada para proporcionar o vinho da alegria e da festa. Diante de nós, sobre o altar, está contido todo o Universo, pronto a se fazer dom e alimento.
Jesus, na Última Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, acolhe os dons da Natureza para transmitir sua Vida a toda humanidade; Vida em abundância; Vida que não tem fim...; a Vida num pedaço de pão e num cálice de vinho.

Texto bíblico: lCor 11,23-35    Jo 13,1-15
Na oraçãoRezar a importância e o sentido da Eucaristia em
                       sua vida: obrigação? Lei? Tradição familiar?...
- Quê ressonâncias tem a Eucaristia em sua vida cotidiana?




quarta-feira, 16 de março de 2016

Homilia Dominical - Domingo de Ramos

RAMOS: A CAMINHO DA JERUSALÉM INTERIOR


“... Jesus caminhava à frente, subindo para Jerusalém” (Lc. 19,28)

A vida de Jesus é uma grande subida a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangélicos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais piedosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos... Não só Jesus foi a pessoa mais desconcertante de toda a história, mas nele aconteceu algo também desconcertante. Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movi-mento” ousado que colocava o ser humano no centro.
Um movimento alternativo às instituições romanas e à organização sacerdotal do judaísmo; um movi-mento “marginal” que dava prioridade aos pobres, aos deslocados, aos doentes e excluídos, aos perde-dores... e que não tem nada a ver com uma organização fundada no poder, no prestígio, na riqueza...
Este movimento, desencadeado na Galiléia, chega agora às portas da “cidade santa” , Jerusalém.
Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucioná-rio violento. E, no entanto, nem por isso deixa de ser inquietante, transgressor e perigoso.
Jesus foi assim e assim Ele viveu; todo o resto lhe sobrava (leis, culto, templo, estrutura religiosa...).

Jesus queria entrar na cidade das contradições humanas oferecendo uma mensagem de pacificação e um programa de libertação, correndo o risco de encontrar a morte imposta por aqueles que resistiam a qual-quer mudança na estrutura social-política-religiosa de seu tempo. De fato, Jerusalém é a cidade controlada por aqueles que detinham o poder religioso que, aliado aos romanos, não reconheciam n’Ele o profeta do Reino e não acolheram a salvação que Ele trazia.
Jesus queria levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele queria por o coração de Deus no coração da grande cidade; desejava reativar a tão sonhada nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade, espaço de acolhida e comunhão, luz dos povos, onde todas as nações se encontra-riam. Mas Ele encontra uma cidade petrificada, fechada em seus ritualismos, intolerante e resistente à proposta de vida que trazia.

Durante o tempo Quaresmal e Semana Santa as agências de turismo costumam fazer muita propaganda de Peregrinações à Terra Santa. Mesmo que não sejamos turistas e nem peregrinos, teremos, sim, que transi-tar por Jerusalém durante estes dias. Não podemos ir ali simplesmente como quem vai assistir algumas procissões famosas de Semana Santa; não podemos ir a Jerusalém de uma maneira indiferente, porque em Jerusalém é preciso “tomar partido”. Ou somos um personagem da Paixão ou não somos nada; ou nos identificamos ou seremos meramente estranhos; ou estamos com Ele ou com aqueles que tramam a sua morte.
Fazer memória da Paixão de Jesus pode ser uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa Jerusa-lém interior, um bom espaço onde encontrar a nós mesmos, identificar-nos com os diferentes persona-gens e sentir-nos parte daquela história. O relato da Paixão de Jesus revela ser também a história de cada um de nós. Porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo também hoje em nossa interioridade. E é a partir do hoje que nós temos de vivê-la, numa atitude con-templativa. E é a partir de nós, e não a partir daqueles personagens de então, que teremos de assumi-la.
Vamos, então, com Jesus montado num jumentinho, transitar pelas ruas de nossa Jerusalém interna, reco-nhecendo os diferentes personagens que ali atuam e que significam diferentes atitudes vividas por cada um de nós. Cada personagem é um espelho onde nos vemos.
Começamos com o relato do Domingo de Ramos.

Jerusalém não é só uma cidade geográfica, situada na Palestina. Domingo de Ramos nos motiva a fazer o percurso em direção à nossa Jerusalém interior. Mas, para descer em direção a esta cidade é preciso des-pojar-nos da vaidade, do prestígio e do poder, montado no jumentinho da simplicidade.
Nossa Jerusalém interior é também lugar das contradições e ambiguidades; ali dentro experimentamos a trama de relações conflitivas, ali nos deparamos com as angústias, carências e dúvidas...
É preciso cuidar o coração da nossa “Jerusalém interior”, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde e acolhedor espaço, para que o Espírito do Senhor possa aí descer e habitar, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
É preciso voltar a pôr o “coração de Deus no coração de nossa Jerusalém”. Faz-se necessária uma opção corajosa, como Jesus, para entrar e estar no interior de nossa Jerusalém, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus, que pulsa no ritmo dos excluídos, dos sofredores, dos sedentos.


É preciso aprender a integrar nossos conflitos da cidade interior para convertê-los em vida nova a partir do silêncio, e é preciso percorrer as ruas descoloridas e violentas do espaço interno. Nosso zêlo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, há de favorecer o advento de um “nova Jerusalém”, cheia de humanidade e comunhão, de justiça e de fraternidade.

É preciso aprender a ler a nossa Jerusalém com os olhos pacientes, misericordiosos, fecundos, cordiais...
Ali reconheceremos também a presença das beatitudes originais que habitam o nosso coração; ali sentire-mos a força da ação do Espírito em cada canto desta cidade e em cada rosto que encontramos; ali teremos acesso a outros recursos e possibilidade de vida que ainda não foram ativados.
Nesta nova cidade interior, cristificada pela entrada do Mestre de Nazaré, seremos mobilizados a abrir as portas de nossas casas para estarmos sempre prontos a acolher os desafios que vem de fora.
Ao mesmo tempo, entrar na nossa Jerusalém nos faz conscientes de que somos seres em movimento, protagonistas de mudanças, capazes de criar novos modos de existir, de romper com o instituído e buscar o diferente, o novo, o desconhecido... É o espaço das inovações, dos riscos, dos experimentos e da busca do novo. Nele se encontra o lugar dos sonhos, dos desejos, da liberdade e autonomia.

A nossa Jerusalém interior é um espaço sempre em expansão. O Evangelho ilumina a vida de nossa cida-de e pede atitudes novas, propostas ousadas... Em nosso coração urbano há um oásis que regenera: conti-nuamente devemos retornar a este oásis se não quisermos que nossa vida se transforme em permanente deserto; é neste oásis que buscamos o sentido, o descanso, o gosto por viver.
É muito mais cômodo continuar viajando até a Jerusalém (imaginativamente) e não sentir-nos implicados com aquilo que está acontecendo em nosso interior e ao nosso redor.
Por isso, Jerusalém é missão: é preciso “descer” em direção às periferias da nossa Galiléia e ali prolongar a atividade criativa e libertadora de Jesus. Podemos, então, atribuir à nossa cidade interior esta afirmação de G. Dimenstein: “A bela cidade não é aquela que tem necessariamente as melhores paisagens, mas aquela em que a criatividade é a melhor paisagem”.
Hosana a Jesus! Que chegue a Páscoa! Que venha a vida!

Texto bíblicoLc 19,28-40

Na oração: procure descobrir os sinais do Reino de Deus no meio da aparente confusão de sua Jerusalém inte-
                     rior: lugar da harmonia? espaço aberto e acolhedor?...
- Como re-criar, no coração da cidade interior, o ícone da Nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade?
- “Diga-me como você habita sua cidade interior e eu lhe direi como é sua presença no seu espaço urbano”.





sexta-feira, 11 de março de 2016

5o. Domingo da Quaresma - 2016

ONDE HÁ MISERICÓRDIA NÃO HÁ JULGAMENTOS


“Mestre, esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, que dizes?”  (Jo 8,4-5)

Segundo o Papa Francisco, “onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus; onde há rigidez, aí estão seus ministros”.
Jesus percebeu algo muito sério nesta inclinação que temos de julgar as outras pessoas.
É escandalosa a capacidade do ser humano causar dano aos outros; e dentro desse dano infligido às pessoas, ocupa um lugar de destaque o juízo gratuito, a desqualificação e a condenação.
Não podemos negar: todos temos vocação de juízes; todos somos peritos em alimentar um tribunal inte-rior. Onde a lei ocupa o centro, ali não há possibilidade de nova oportunidade de vida.
As boas relações entre pessoas só são possíveis quando os que se relacionam entre si não se julgam uns aos outros. Quando alguém sabe ou suspeita que os outros lhe estão julgando, e lhe estão julgando mal, a relação humana se complica, possivelmente se envenena, e termina por fazer-se insuportável. É muito duro ir pela vida sabendo que há alguém que pensa mal do outro, que o julga e o condena.

Todos sabemos que, por detrás de tanto juízo e condenação – como no Evangelho que lemos hoje -, pare-ce indicar uma insegurança radical, que se disfarça justamente de segurança absoluta, fundada na lei, onde a pessoa chega a pensar que possui a verdade e que os outros estão no erro.
A necessidade mesma de ter razão e de acreditar ser portador da verdade é indício de uma insegurança de base que se torna insuportável. Por isso, o fanatismo religioso revela insegurança camuflada, do mesmo modo que o afã de superioridade esconde um doloroso complexo de inferioridade, às vezes revestido de “nobres” justificações.

Quando alguém se eleva em juiz da vida dos outros e, além disso, se considera com conhecimentos e o suficiente critério para condená-los, o que realmente faz é usurpar o lugar que corresponde a Deus. Por isso é tão frequente que as pessoas que se consideram mais próximas a Deus e aos princípios da estrita observância moral são os juízes mais implacáveis. Sem dar-se conta, ocupam o lugar de Deus.
No evangelho de hoje, o pressuposto de Jesus é que ninguém pode ser identificado com seus atos exteriores, ou com suas aparências. Dentro de cada um, existe um mistério profundo e impenetrável, cujo conhecimento é reservado unicamente a Deus. É preciso respeitá-lo, sabendo que, por detrás de cada ato humano, existe uma história que nos escapa. Deixemos que Deus seja Deus e que Ele tenha a última palavra. Ele conhece cada pessoa, na sua intimidade. Por isso, não corre o risco de se enganar. É com misericórdia que ele pesa as ações humanas; por isso Ele salva sempre.

O relato de João, indicado para a liturgia deste domingo, põe em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma, de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância.
De um lado, os olhares julgadores dos escribas e fariseus se voltam para a mulher, ao mesmo tempo que a atenção repreensiva concentra-se sobre Jesus, buscando motivos para também julgá-lo.
Por outro lado, entre o Mestre e a mulher se instaura uma surpreendente compreensão e acolhida: nada de julgamento e condenação.
Mesmo sentindo-se julgada e condenada por aqueles que se apresentavam como os legítimos intérpretes da Lei de Moisés, a mulher encontrou e descobriu, nas palavras e na pessoa de Jesus, de modo novo e fascinante, o rosto misericordioso de Deus, a ponto de sentir seu abraço paterno.
Ela sentiu-se seduzida por Jesus, o “justo”, o amigo dos publicanos e dos pecadores.

 A maneira misericordiosa de Jesus se fazer presente junto à pecadora, mobiliza esta mulher a fazer da sua vida de erros um trampolim para a sua humanização. Jesus não contabiliza os pecados, não classifica as pessoas em puras e impuras. Ele abraça a realidade em sua totalidade, integrando-a.
Ele acolhe e celebra a vida em sua totalidade. Não foi o passado de erros da mulher que determinou a atitude de Jesus para com ela, pois Ele não se deixa determinar pelo passado.
Jesus tem um coração expansivo, voltado para todas as direções, onde quer que se encontre a realidade limitada e frágil. O encontro com Ele não desperta sentimentos de culpa; as pessoas podem retirar-se em paz. Jesus faz da misericórdia o verdadeiro evento divino. Nele, a misericórdia torna-se o dom consti-tutivo não só do divino, mas também do humano.
Enquanto os escribas e fariseus não entendem a ternura e a acolhida de Jesus para com a mulher, esta, ao contrário, conhece o mistério inefável da Misericórdia e abandona-se a Ele.
Libertada de seu passado e amada, a mulher sente-se devolvida à vida, levando consigo no coração um dom inesperado: o perdão, que a inunda de paz e alegria. A pecadora, atraída pelo amor terno e miseri-cordioso de Jesus, finalmente experimenta a gratuidade e a doçura da misericórdia para consigo mesma.
Ela muda a sua vida quando percebe ser amada por um amor envolvente, gratuito, antecipado.
Assim, ela se torna uma nova parábola da ternura e da misericórdia de Deus.

A mulher estava preparada para a morte, mas Jesus a despede viva, abrindo uma nova possibilidade de futuro. É notável como Jesus encarna a atitude de rejeição ao pecado e amor ao pecador.
Isto foi magistralmente expresso por S. Agostinho, quando ficaram sozinhos Jesus e a mulher: “Só ficaram dois, a miserável e a misericórdia”.
Onde impera a Lei, não há futuro, só julgamento; onde a Misericórdia encontra espaço ali a vida tem nova chance. Os acusadores acreditavam estar seguros, fundamentados na lei e na sua consciência. Mas Jesus, sem julgá-los, os conduz também a um nível mais profundo, apelando a que se olhassem a si mesmos, para que vissem que eles estavam condenando a mulher porque tinham medo, se sentiam inseguros e necessitavam descarregar sua agressividade.
Por isso, Jesus não se comportou como juiz, nem com relação à mulher, nem com relação aos cúmplices, nem com relação aos acusadores e aos curiosos, mas se situou em um plano mais alto: no nível da miseri-córdia de Deus, que envolve esta mulher e, por meio dela, a todos os que a acusavam.
Uns e outros devem reconciliar-se e iniciar uma vida em gratuidade, criando condições distintas de convivência, uma história de gratuidade não impositiva.

Texto bíblico:  Jo 8,1-11

Na oração: Ser misericordioso é não aprisionar o outro nas consequên-
                     cias negativas de seus atos.
A misericórdia é a própria condição para que nossa vida seja vivida de uma maneira nova. Fora do fluxo da misericórdia a vida se torna impossível de ser vivida.
 - “O que é que eu não perdôo no outro? O que é que eu não consigo perdoar em mim mesmo?
- O que é que em mim pode perdoar?
- Que força é esta que me atravessa e que, passando pela justiça, me conduz à misericórdia?
- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai; que cada um possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Pai... e participar em sua festa de reconciliação.
Ao mesmo tempo, pedir um coração desarmado, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).


4o. Domingo da Quaresma 2016

PRINCÍPIO MISERICÓRDIA: Amor em excesso

“Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. Colocai-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o, para comermos e festejarmos” (Lc 15,22-23 )


Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente revelação da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus, presença visível da misericórdia, revela um Deus Pai-Mãe, cheio de ternura e de misericórdia que vai ao encontro dos perdidos, libertando-os da exclusão e do isolamento; um Deus que exulta de alegria quan-do os reencontra e que convida a todos para a festa da comunhão e do perdão.
Essa é a descrição de Deus cuja bondade, generosidade, amor, alegria e compaixão não tem limites.
Um Deus novo,  “desconcertante”, “escandaloso”, totalmente incompatível com o “deus legalista” dos escribas e fariseus. A Misericórdia de Deus por nós faz-lhe perder sua soberania e compostura e sair correndo ao nosso encontro,  para abraçar-nos na nossa humanidade ferida e profanada, para devolver-nos a filiação e a dignidade.
“Onde há misericórdia, aí está presente o Espírito de Deus. Onde há rigidez, aí estão seus minis-tros” (Papa Francisco).

O que escandalizava os destinatários das parábolas da Misericórdia (Lc 15) contadas por Jesus, que se consideravam justos e cumpridores exemplares da Lei, não era propriamente a conduta dos pecadores, mas a conduta do próprio Jesus com relação a eles; Ele, rosto visível da misericórdia, permite que os pecadores se aproximem dele, recebe-os de coração aberto, toma a iniciativa de ir ao encontro deles e senta-se com eles à mesma mesa.
O comportamento de Jesus é uma “parábola viva” do comportamento de Deus com os pecadores.
Na parábola de hoje, o pai aparece sempre como alguém que contraria as expectativas dos ouvintes, que vai contra a visão de Deus daquele que está habituado à lei do “olho por olho, dente por dente”.
Os escribas e fariseus não podiam suportar que Jesus proclamasse que Deus acolhe e perdoa incondicio-nalmente a todos, que tem um carinho especial, um amor de predileção pelos perdidos; um Deus que vai ao encontro dos perdidos e que transborda de alegria quando os encontra.

A parábola do Pai Misericordioso condensa toda a história de nossa salvação. Ela contém a quinta-essên-cia do Evangelho do Reino do Pai proclamado por Jesus, a história do amor de Deus para com a humani-dade. O que Jesus quis proclamar ao contá-la foi que o amor, a misericórdia, o perdão e a comunhão são oferecidas por Deus aos “perdidos”.
Justamente por ser o Evangelho condensado, esta parábola deve ser incessantemente ouvida e contem-plada por todos nós. E depois de contemplada e experimentada, devemos contá-la, proclamá-la e testemu-nhá-la, sempre de novo, a todos os homens e mulheres que Deus ama.
Ela é a parábola da nossa vida, da nossa história, de cada um dos nossos caminhos.
Ela é, enfim, a parábola da nossa origem e do nosso destino.

Longe de uma imagem de um Deus severo, com a lei na mão pronto para nos acusar, Jesus nos revela o rosto de Deus Pai-Mãe de infinita ternura, que se alegra com o retorno de seus filhos à convivência em sua casa. De fato, no Evangelho de hoje, a volta do filho perdido provoca uma “explosão de alegria” no Pai. Sua alegria era tão intensa que ele não poderia esperar para dar início à comemoração.
A expressão “depressa” com a qual o pai exorta seus criados denota que o serviço deve ser executado sem demora, pois o filho não pode ficar por mais tempo privado de sua dignidade.
As ordens aos empregados são dadas em voz alta para que todos fiquem sabendo da festa, para que a sua alegria seja conhecida e partilhada por todos.
Ele convida todos a comer, beber e dançar. Uma grande festa tem início, mas não tem fim.

Tão fortemente o pai deseja dar vida a seu filho mais novo que parece quase impaciente. Nada é suficien-temente bom. O melhor precisa lhe ser dado.
Ele ordena que o filho seja imediatamente vestido com a túnica luxuosa, como a que é usada nos dias de festa pelos hóspedes ilustres. O filho recupera sua identidade e sua dignidade de filho. O pai lhe dá o anel para honrá-lo como seu filho amado e novamente devolver-lhe a condição de herdeiro e a plenitude de seus direitos. Com as sandálias, é devolvida ao filho a condição do homem livre e de senhor da casa.
Mas o Pai não ama só o filho perdido e reencontrado. Ele ama também aquele que ficou em casa, a seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria

do reencontro e da festa. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai procurar também aqueles que tem um coração de pedra, invejosos e legalistas. O fato miraculoso não está só em que o pai não renegou o filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.

O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”. Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destravando-nos, colocando-nos em movimento e abrindo-nos em direção a um horizonte de sentido, de responsabilidade e compromisso.
Deus não só tem um coração que ama. Isso já é extraordinário.
Mas também tem entranhas, uma ternura que se comove. Isso é avassalador.
A misericórdia constitui a resposta de Deus à indigência do ser humano: ela re-cria a vida, pois, a força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora,  libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais profunda de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...
A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e desata ricas possibilidades latentes em cada um. Ela não se limita ao êrro, mas impulsiona cada um a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.

Podemos concluir afirmando que a misericórdia não é só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana; nesse sentido, a misericórdia é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
Por isso, Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai: “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.

Texto bíblicoLc 15,1-3.11-32

Na oração: A experiência de misericórdia ativa em nós um modo de viver
                     misericordioso. O Deus de misericórdia cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia.
Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso de Deus em favor dos outros.



















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