QUARESMA: tempo de nutrir-se
interiormente
“Vou cavar em volta dela e colocar adubo; pode
ser que venha a dar fruto” (Lc 13,8-9)
Comprovamos hoje um “déficit de
interioridade”. Vivemos num contexto social e cultural no qual o ritmo
frenético que nos é imposto para conseguir mais bem-estar material não favorece
o acesso à nossa própria interioridade. Seduzidos por estímulos ambientais,
envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações
rápidas… vamos nos esvaziando, nos diluindo, perdendo a interioridade e… nos
deshumanizando. Vítimas da chamada “síndrome
da exteriorização existencial”, temos dificuldades de introspecção,
silêncio, reflexão, contemplação…; já não somos capazes de velejar nas águas da
interioridade, vivendo uma vida superficial e sem sentido. A perda da
direção de nossa interioridade, que nos constitui como seres humanos, gera um
vazio existencial e espiritual.
Tal como a figueira da parábola do evangelho deste domingo, a vida vai se
atrofiando e se ressecando, porque não recebe seiva do seu interior. É pura
folhagem, pura aparência e sem frutos.
A originalidade do Tempo Quaresmal encontra-se na aventura da
re-descoberta do “mundo interior”, esse
mundo desconhecido e surpreendente, onde acontece o mais importante e decisivo
de cada um.
Conduzindo-nos a viver a experiência no deserto com Jesus, a liturgia
quaresmal revela que toda pessoa possui dentro de si uma profundidade
que é seu mistério íntimo e pessoal. Por isso, “viver em profundi-dade” significa “entrar” no âmago da própria
vida, “descer” até às raízes da própria existência e chegar à fonte de água viva
que ativa uma nova seiva, fazendo surgir novos brotos e novos frutos.
É no “eu mais profundo”
que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer
dia-a-dia; é aqui que ela experimenta a unidade de seu ser; aqui é o lugar da transcendência, onde realmente
acontece uma profunda transformação.
Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde a pessoa
vive o melhor de si mesma,
onde se encontram os dinamismos do
seu crescimento, onde brotam as aspirações
e desejos fundamentais…
Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada um do
autor da vida: Deus.
A vida está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde
com a aparência de sua folhagem, mas não dá frutos. A pessoa de interioridade, por sua vez, é aquela
que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as
suas riquezas, dons, capacidades… É no chão da vida que está escondido nosso
verdadeiro tesouro; é do chão da vida que existem, em abundancia, os aspectos positivos
de nossa personalidade, os talentos naturais e as boas tendências. Ali se
aninham imensas riquezas que se exprimem de maneira diferente, dando a cada um
uma fisionomia própria, um caráter único. Esta região profunda coincide com o
mundo das certezas, dos valores, das idéias-força… que formam o eixo de nossa
existência, o melhor de nós, o lugar de nossa recuperação e de nossa
realização.
Quem “desce” até sua
própria interioridade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas
sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua
condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência
do encontro com o Deus “rico em misericórdia”.
Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores
possibilidades, capacidades, intuições… e nos faz descobrir em nós nossa verdade
mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis… É Ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos
comunicar a sua própria interioridade. A força criativa de sua
misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida;
debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida
nova nunca ativada.
Por isso, é decisivo alimentar as raízes com os valores do Evangelho
(justiça, compaixão, bondade..) para que uma seiva cristificada se espalhe pela
árvore, gerando novos rebentos e novos frutos.
“Descer” às raízes é
uma oportunidade privilegiada para descobrir-nos e conhecer nosso reino
interior, para encontrar nossa riqueza interior e assim experimentar a
transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as
próprias raízes. Mas essa desci-da nos possibilita descobrir um mundo
diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.
Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o
fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os recursos
que darão significado e sentido às nossas vidas.
É preciso “des-velar” nosso “eu profundo”, o lugar onde se
encontra os dinamismos da nossa personali-dade, as boas tendências, os dons
naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as grandes aspirações
Dentro de nós encontramos forças construtivas que podem mudar-nos
eficazmente. É preciso escavar, alimentá-las e deixá-las aflorar espontâneamente.
Esse é o nível da graça, da gratuidade, da abundancia, onde a pessoa mergulha
no silêncio do deserto interior, à escuta de todo o seu ser.
E das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a
interioridade des-velada ativa uma relação sadia com todos; com a nova
seiva a figueira se expande em direção aos outros, fazendo-a viver numa conexão
livre com toda a realidade.
A imagem da figueira destaca
também a paciência do agricultor. Lucas
é o evangelista da misericórdia; e essa misericórdia
se faz visível na esperança e no cuidado esmerado do agricultor para com a
figueira; ele não desiste, quer dar tempo para cuidá-la de novo, tempo para a
mudança. A pesar de levar “três anos” sem dar fruto, o lavrador continua confiando
nela: “vou cavar em volta dela e colocar
adubo”.
Jesus realça a paciência divina,
porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do
coração humano, Ele sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele.
Na
vivência cristã, a terra interior também pode ser cavada, adubada para que seja
despertada a verdade pessoal. Os mecanismos, que ainda impedem a transformação
interior, algum dia deixarão de funcionar, e o seguidor de Jesus quebrará suas
resistências e se abrirá para dar início à a uma nova
caminhada.
Portanto,
revolver
a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore dê
fruto; o segundo é o adubo que alimenta e desperta um
novo reflorescimento da nossa árvore.
Provavelmente,
o místico Johann Tauler estava pensando nessa parábola quando disse: “Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e,
após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora que, justamente,
aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as coisas pouco
vistosas e pouco louváveis – prepara o campo para a nossa árvore da vida e a
faz florescer”.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para o mais
profundo de nós mesmos,
onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde
encontraremos o nosso “eu original” e a verdadeira paz.
É preciso
“descer” até às raízes de nossa existência para descobrir uma nova “seiva” para
nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara
vazia e ressequida.
Trata-se de
despertar, de escavar nosso chão interior, alargar nosso coração e garimpar em
direção às energias que estão disponíveis no eu mais profundo.
- O quê
alimenta as raízes de sua existência? Onde você busca o adubo que se
transformará em seiva vital?