“SOMOS SERES TRANSFIGURADOS..., E NÃO
SABÍAMOS”
“Enquanto
rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)
O relato da Transfiguração
não é crônica de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos
discípulos que, com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os
impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o
significado do relato: “Jesus
é transparência do divino”. Por isso, podemos dizer também que
Ele é um homem transfigurado. Jesus viveu constantemente
transfigurado.
A transfiguração
não foi um fato isolado na vida do Mestre de Nazaré, mas o ‘estado habitual de
seu ser’. Mas foi durante sua oração no monte que Jesus deixou transparecer sua
identidade mais profunda e escondida; algo que os seus discípulos não podiam
captar no ritmo da vida cotidiana.
Quê fazia de Jesus um “homem
transfigurado?” Era sua bondade, sua compaixão, sua autenticidade, sua
integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida, sua relação com o
Pai...
Ou seja, o que há de divino
em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.
Jesus nos dá a medida do humano:
ser pessoa compassiva e comprometida com os demais. É precisa-mente na condição
humana de Jesus onde podemos conhecer quem é Deus e como é Deus.
Mais ainda, é na entranhável humanidade
de Jesus onde compreendemos a profunda e desconcertante humanidade
de Deus.
Sua humanidade e
sua divindade se expressavam cada vez que Ele se aproximava das pessoas, especi-almente
as mais excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade
ferida.
Sua humanidade
levada à plenitude é Palavra definitiva. Por isso, é preciso “escutá-Lo”.
Escutar o “Filho amado” é
transformar-se n’Ele e levar uma vida comprometida, semelhante à d’Ele, ou
seja, empapar-se do “modo” como Ele humanamente viveu.
A Transfiguração está nos
dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Ela nos
revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Por isso, uma pessoa transfigurada
é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é
transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.
Somos todos “pessoas
transfiguradas”..., mas desconhecemos essa realidade surpreendente.
Na Transfiguração,
Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele.
Jesus continua
se “transfigurando” na montanha interior de cada um de nós.
N’Ele,
encontramos “indicações” que nos conduzirão a essa descoberta: a vivência do
amor, da compai-xão, da confiança, do silêncio, da coragem, da experiência de
Deus...
A transfiguração
não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de
“sair
de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é
descentrar-se e expandir-se na direção do outro. Transfigurar é ativar todas as
possibilidades de vida para que ela se torne oblativa.
Tal experiência também nos
confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda
realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade
de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as
coisas criadas” para além do meramente superficial.
O olhar
habitual de nosso contexto pós-moderno não é precisamente esse, mas outro,
caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse e voracidade. Em tal
contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que a vivência da
profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos para nós.
A Transfiguração
possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em
cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque
somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe
deixar-se impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante
do Mistério.
Nesse sentido, “subir”
ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade.
A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser essencial. Todos
estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não haverá plenitude
de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de baixo não
renunciem subir passando por cima dos outros.
Não se trata de ter a antena
dirigida ao céu para esperar que dali venha algumas palavras para indicar o que
devemos fazer. Trata-se de descobrir a voz de Deus no grito desesperado
de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar.
“Humanizemo-nos!” Esta é a voz d’Aquele que viveu
permanentemente “transfigurado-humanizado”.
Aquele Monte (Tabor) é um espaço
instigante, lugar alto de experiência radical de Jesus, para ver os pro-blemas
da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... Jesus nos faz subir à
grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra
perspectiva...
É preciso, de vez em quando, tomar
distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa
visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de
Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a
Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos a serviço dos “desfigurados”
do mundo.
A espiritualidade cristã nos
possibilita fazer a síntese entre o novo e o antigo, entre a interioridade e exterioridade,
enfim, síntese entre a Transfiguração do Tabor e o cotidiano da
vida comprometida com os desafios do vale. Sínteses profundas que nos educam
para a “liberdade dos filhos de Deus”
(Rom. 8,21).
A
transfiguração de Jesus é como uma parábola que nos recorda: a vocação
cristã é transfigurar o tempo e o espaço. É preciso transfigurar
nossas relações humanas: passar de relacionamentos interesseiros a relações
afetuosas e amáveis.
É
urgente transfigurar a política, transformando o poder e a gestão
da coisa pública em serviço ao bem-comum. É preciso transfigurar
a natureza na comunhão do ser humano com o universo.
A
Transfiguração do ser humano acontece no coração de cada um que crê. É
Deus que nos transfigura, “mudando nosso coração de
pedra em cora-ção de carne” (Ez. 36,26).
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração: Na nossa vida de seguidores de Jesus não faltam momentos de
claridade e certeza, de
alegria de luz. Ignoramos o que aconteceu no alto do Tabor, mas sabemos que na
oração e no silêncio é possível vislumbrar algo de nossa identidade interior.
A oração nos
transfigura e nos faz descer em direção à nossa própria humanidade e à humanidade
dos outros.
Na vida de cada um de nós, como na vida
de todo ser humano, certamente encontramos tempos especiais ou momentos
privilegiados, cheios de sentido, embriagados de amor, de felicidade plena.
Reviver estes momentos ou tempos nos fará bem: quais foram? Como aconteceram?
Como os vivemos, que sentimos, porque acabaram? * Fazer um tempo de oração
revisitando em sua memória essas vivências de “transfiguração”.