O
Ano Litúrgico é um “tempo terapêutico” que toca, desvela e transforma todas as
dimensões da vida. A partir desta perspectiva, a Quaresma e a Páscoa são
consideradas tempos de intensa mobilização para a mudança interior e
comunitária. A expressão bíblica para indicar essa transformação é “metánoia”,
que indica mudança, conversão, fazer o retorno, ter diante dos olhos outro
caminho a percorrer, tomar outro atalho com uma mudança de direção.
De
acordo com este tempo litúrgico, o caminho para a transformação começa
simbolicamente com a “Quarta-feira de
Cinzas”. Com a imposição das cinzas, reconhecemos a necessidade de dar
outro rumo à vida, com todo o nosso ser. Mudar nosso coração de pedra por um
coração de carne, misericordioso, com entranhas, humano. A liturgia na Igreja
expressa isso mediante uma fórmula ritual: ao traçar a cruz com cinzas a fronte
de cada um, proclama:
“Convertei-vos e crede no Evangelho”. Ou seja, mude de caminho, com renovada decisão, e
assuma a causa de Jesus de Nazaré: seu Reinado de justiça e de paz.
As
“cinzas” são o símbolo daquilo que
morreu e foi reduzido à sua expressão mínima. Cinzas obtidas dos ramos que na
celebração do ano anterior nos ajudou a fazer memória da entrada triunfante de
Jesus em Jerusalém. O modo de louvar, de rezar, de celebrar do ano passado, já
não serve mais; não podemos usar os mesmos ramos, os mesmos argumentos, a mesma
intensidade. Daqui brota a necessidade de não nos apegarmos àquilo que serviu
alguma vez para nosso crescimento espiritual e comunitário, para fazer apare-cer
a novidade de uma notícia que sempre desperta mais assombro.
Os
ramos transformados em cinzas, passaram pelo fogo. Essa é a nossa
garantia: que aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado.
Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza
o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas,
sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa
prepotência e auto-centramento.
Das
cinzas surgirá a maturação; as folhas
caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com mais
intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo que nos
humaniza.
As
cinzas, também, apresentam a textura
e a leveza para deixar-se espalhar pelo vento, para que o “sopro do Espírito”
as leve para onde quer que seja, as lance em terras novas, conferindo-lhes
novas fertilidades.
Marcados
pelas cinzas, deixamo-nos conduzir pelo Vento do Espírito para lugares onde
seja necessário nossa presença, nosso testemunho, nossa profecia. Quaresma é
tempo para confiar nas cinzas e no vento, para sair e criar o novo, preparar o
novo mundo e fecundar a nova terra.
Para ajudar a fazer a “travessia” de
uma vida estreita e limitada a uma vida expansiva, aberta e compro-metida, a
liturgia quaresmal nos convida a viver as chamadas “práticas quaresmais” ou
seja, o jejum, a esmola, a oração como atitudes que nos permitem abrir e ampliar espaços em
nosso coração, para Deus e para os outros. São também práticas que nos fazem
crescer na identificação e no seguimento de Jesus Cristo, pois a Quaresma
implica “ter os olhos fixos n´Ele”, para deixar-nos impregnar pelo seu “modo de
ser e viver”, alargando cada vez mais as quatro dimensões básicas da vida: relação
consigo, com os outros, com a criação e com Deus.
Fazer
jejum não se limita a renunciar algo
(alimento, bebida, vícios…); tal atitude pode nos levar a fari-saísmos ou
voluntarismos, quando o centro somos nós mesmos. Fazer jejum significa ativar e
reforçar os dinamismos humanos oblativos, ou seja, aqueles que nos des-centram
e nos expandem na direção do serviço e do compromisso com o outro, sobretudo os
mais pobres e excluídos. Se o jejum não nos faz mais compassivos, solidários,
com espírito de partilha... ele se reduz a uma simples penitência, vazia de
sentido. No seu horizonte, o outro não está presente.
A
quaresma deverá, então, ser um tempo para “jejuar alegremente”; e isto implica
duas coisas:
-
jejuar de julgar os outros e festejar a nobreza escondida em cada um; jejuar de
preconceitos que nos afastam e fazer festa por aquilo que nos une na vida;
jejuar das tristezas e celebrar a alegria; jejuar de pensamentos e palavras
doentias e alegrar-nos com palavras carinhosas e edificantes; jejuar de lamentar
fracassos e festejar a gratidão; jejuar de ódio e festejar a paciência
santificadora; jejuar de pessimismos e viver a vida com otimismo como uma festa
contínua; jejuar de preocupações, queixas e lamentações, e festejar a esperança
e o cuidado providente de Deus; jejuar de pressas e ativismos e saber festejar
o repouso reparador;...
Algo
disto também é vivido através da prática da “esmola”, que não se reduz a renunciar algo próprio, o que sobra.
Implica fazer da vida uma contínua “oferta”, ou seja, uma atitude de
vida atenta à realidade do
outro,
deixando-se afetar pela sua pobreza, sofrimento e exclusão. Trata-se de viver o
espírito de partilha, colocando “pitadas” de misericórdia nos gestos de
proximidade; ter um olhar contemplativo que sabe ler entre linhas, que está
atento à sede de compaixão daqueles que o cercam; revelar uma forma de se rela-cionar
com os outros de outra maneira, mais gratuita e desinteressada; não é tirar da
bolsa, mas do cora-ção; compartilhar o que se é e o que se tem, em suma, que
seja expressão de amor.
Enfim,
outra prática quaresmal que nos faz crescer na identificação com Jesus e a
viver na perspectiva do outro é a oração.
A oração, é vista, muitas vezes, como um modo de “terceirizar” soluções: pedir
a Deus que faça o que nós não fazemos; e se Ele não faz será sua suprema
vontade que tudo se mantenha igual, fechando a pessoa em sua cápsula tão
distante da vida das pessoas.
Quaresma
é tempo propício para ter Jesus orante diante dos olhos, como
referente e inspirador.
A
oração de Jesus o fazia mergulhar de cheio nas dores, nas exclusões e nas
injustiças cotidianas, e o provocava a revisar suas práticas concretas, para
cultivar vínculos mais semelhantes aos que Ele descobria como o sonho do Pai.
Na oração, Jesus exalta os pequenos e excluídos; nas experiências compartilhadas
de oração vai delineando sua missão e ampliando seus próprios limites, abre-se
aos “pagãos”, reconhece e aceita o novo que brota das margens.
Em
atitude orante, Jesus abre os olhos e ouvidos dos cegos e surdos, põe de pé os
paralíticos, anima os desfalecidos a recomeçar, cura os doentes... A solidão no
monte o impulsiona a compreender com mais profundidade o sentido daquilo que
vive e a comprometer suas mãos com maior decisão nas vidas daqueles com quem se
encontra...
Texto bíblico: Mt
6,1-6.16-18
Na oração: Em nosso interior há todo um
mundo de vozes, ruídos e imagens que surgem de nós mesmos,
daqueles que nos rodeiam, de nossa comunidade
e também de Deus. É preciso tomar consciência dos “movimentos internos” que
acontecem na oração, acolhê-los, interpretá-los e verificar a direção que eles
estão indicando.
Daí a importância do silêncio na oração; ele é a chave a
raiz da palavra carregada de vida; o silêncio é o território da palavra ousada
e criativa; a palavra mais significativa brota de uma longa espera, de um
prolongado silêncio; do silêncio brota a palavra que torna nossa vida mais
intensa, abrindo-nos a Deus e aos outros; na oração aprendemos a distinguir e
dar nome àquilo que vem de Deus; vamos aprendendo a escolher as cores que nos
ajudam a preencher nossa vida, por dentro e por fora, com as tonalidades que
melhor nos harmonizem com a paisagem que Deus quer pintar no mundo.