O MANANCIAL QUE NOS INSPIRA
“A água que eu lhe der se tornará nele um manancial que
jorra para a vida eterna” (Jo 4,14)
O tempo quaresmal
possibilita redescobrir as profundezas da pessoa humana, as coisas ocultas no
seu interior, para assim poder ajudá-la a conhecer-se, crescer e gerar novos
modos de se relacionar consigomesma, com os outros, com o meio ambiente e com
Deus.
Em
outras palavras, diríamos que este tempo des-vela, por um lado, uma
realidade interna machucada, ferida, vulnerada, mas também, por outro lado, um
potencial, um dinamismo, um “poço” de possibilida-des, um conjunto de forças
positivas... São os
dois rostos do coração da pessoa humana.
Isso quer dizer que a pessoa
toda é movida, no seu viver, por uma mistura dessas duas faces do seu coração:
a ferida e o poço, o medo e os desejos...
É a mistura dessas duas realidades que faz que cada
pessoa seja ela mesma. É o interagir da parte vulne-rada com o potencial de
possibilidades que vai dando identidade à pessoa e onde ela pode ir descobrindo
qual é o sentido da sua vida e qual é a sua missão na história.
Por isso, quandoa pessoa se
faz mais consciente dessas realidades do seu interior, quando se dá conta
daquilo que brota da sua parte vulnerada e a integra, quando se dá conta da
riqueza que existe no seu poço e a potencializa..., passará a se conhecer, a
crescer e a descobrir a sua verdade mais profunda e, ao mesmo tempo – ao se
tornar uma pessoa modificada por dentro – a modificar as estruturas da
história.
O
evangelho de hoje é um relato eminentemente teológico. É uma catequese que
convida a um seguimen-to de Jesus que traz a ‘água viva”, o dom capaz de saciar o desejo humano. Essa água a encontramos em nosso próprio
interior, como um manancial que brota incessantemente.
No
texto aparece um significativo jogo de palavras: sempre que a mulher fala, ela
fala de “poço”;no entanto, Jesus e o
próprio narrador se referem ao poço como “manancial”.
Jesus
faz a mulher cair na conta que é preciso abrir-se a esse “manancial” novo, que
lhe vem através d’Ele e que “jorra em seu
interior” de um modo
permanente.
O encontro com Jesus fez a samaritana viver uma verdadeira“páscoa”,
passando de sua vida trivial e dispersa à responsabilidade de anunciar a outros
Aquele com quem havia se encontrado. Como uma água que jorra, uma torrente de gratuidade percorre a cena e
transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até sua própria interioridade
através de um paciente processo que a fez passar da dispersão à unificação, da
exterioridade à interioridade, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como
conhecedora do manancial de “águaviva”
e consciente de ser buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua
identidade transformada a converte em uma evangelizadora.
Como bom
pastor que conhece suas ovelhas, Jesus faz a mulher sair do deserto da
superficialidade e vai guiando-a para a profundidade e autenticidade, para a
terra do dom da água viva.
Como “expert” em humanidade, Jesus mostra-se profundamente
atento e interessado pela interioridade de sua interlocutora, lhe faz descobrir
o manancial que pode brotar do mais
profundo dela mesma e lhe revela também a interioridade de Deus como Pai que
busca adoradores em espírito e em verdade.
Vamos agora, a partir do encontro de Jesus com a samaritana, percorrer a nossa parte
brilhante, essa rica interioridadeque pouco conhecemos,
pois, lamentavelmente, poucas vezes nos permitimos entrar nela e, inclusive,
poucas vezes temos alguma consciência de que existe, de que é a mais profunda,
valiosa e autêntica de nós mesmos.
Abre-se,
então, a possibilidade de reconhecer e fazer um caminho de redenção, acolhendo
e potencializan-do o poço da
positividade e das energias vitais. Este é o caminho que leva a desenvolver
plenamente a dimensão humana: limpar a ferida a partir do próprio manancial.
Isso significa que o
crescimento pessoal é um compromisso que só é possível quando se nutre com a
água do próprio poço, a água que nasce do manancial
interior.
O nosso manancial
interior alimenta o poço das nossas qualidades, das nossas potencialidades e
faz que se revele, no exterior, o rosto positivo do nosso coração.
E o
que é o manancial?
O seu manancial é aquilo que existe em você que é
inalterável, inesgotável, o que o(a) salva nos momentos mais difíceis, o que
lhe dá mais intimidade. Se você entrar no seu manancial encontrará, além do seu
potencial máximo, outras duas realidades que seguramente passam despercebidas
no cotidiano de sua vida: a consciência e a água viva.
Em primeiro lugar, no manancial
que o(a) identifica se encontra uma voz que é a voz do seu ser
que está crescendo, uma voz que lhe indica o que lhe faz bem, o que lhe ajuda a
ser verdadeiro, o que o(a) empurra para a integração e, ao mesmo tempo, o(a)
leva a gerar o bem, a veracidade, a integridade...
Isso é a sua consciência.
Por outro lado, nesse
manancial se encontra também uma água viva, que é a presença
atuante e transfor-mante do próprio Deus, lá no âmago da sua intimidade mais
profunda.
Essa dupla descoberta faz
você ser capaz de levar a sério a sua vida e dar-se conta de como, na vida
mesma, na sua própria vida, está inscrito, no mais fundo do manancial, algo que
tem a ver com a solidariedade, algo que se refere à metáfora da “água” e
do “poço”: a água não serve para si mesma;
é para as outras realidades, para as outras pessoas.
É isso que significa “ser
pessoas para os demais”.
Há
qualidades que nos identificam: a cor da pele, a altura, a cor dos olhos... o
nosso gênero, inclusive a nossa profissão. Mas o manancial nos oferece
aquilo que nos faz únicos em meio à caravana humana com a qual caminhamos pela
vida.
O
que nos faz pessoas únicas são essas forçasno nosso interior que
nos tornam capazes de superar os piores momentos das nossas vidas; essas forças
que nos tiram das piores trevas e nos devolvem à existên-cia. Essas forças não
são as mesmas para todos.
Para algumas pessoas será o desejo de viver e ser
livre. Para outras, será o desejo de servir, o amor a alguém, a atenção aos
necessitados... Essa combinação de um punhado de qualidades, de
potencialidades, de “desejos” é o que fundamentalmente nos faz ser nós mesmos.
Essa experiência do
manancial se faz não com idéias, mas vivenciando-a; não porque nosdisseram, mas
porque verificamos que, na realidade, essas forças e potencialidades
constituem, de fato, o nossomanan-cial. De tal modo que se faltasse
alguma dessas forças, ou dinamismo, nós não nos reconheceríamos.
Nossos desejos nos constituem, ou melhor, fazem-nos seres
inusitados, distintos, únicos.
Devemos prestar muita
atenção à força que os desejos profundos têm na descoberta do nosso
manancial.
Texto bíblico:Jo 4,5-42
Na oração: como a samaritana, também diante de nós se
apresenta uma
alternativa: continuar buscando água e justificação em poços secos e esgotados
ou eleger “vida eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de trans-formação proposta pelo Jesus que nos busca. Eledeseja
ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e plenitude. De quê tenho
sede? Onde busco saciar minha sede?