“O Espírito conduziu Jesus ao
deserto para ser tentado pelo diabo”(Mt 4,1)
Para entender melhor o contexto
das tentações
e o que há nelas de revelador, é preciso ter presente o texto que o precede e o
texto que o segue. A cena imediatamente anterior é a do batismo de Jesus no Jordão.E o texto que segue fala do início da
missão de Jesus nas periferias da Galiléia.
O batismofaz referência a uma experiência
fundante de Jesus; nele proclama-se Sua identidade que consiste na revelação
pública de ser o Filho amado do Pai. Jesus não é Filho para encerrar-se e viver
em isolamento, mas para expandir a filiação.
E podemos
entender sua marcha ao deserto,
movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar” essa
revelação no silêncio e na solidão, de abrir espaço em sua interioridade para a
solidificação do sentido de sua vida e a missão que devia realizar. O
significado do deserto, portanto, não é prioritariamente o penitencial.
É o lugar privilegiado
de encontro pessoal e de escuta da Palavra.
Jesus é conduzido a ele para acolher a Palavra escutada em seu coração
no momento de seu batismo. Poderíamos dizer que Jesus precisa tempo para
assentar, nas profundezas de seu coração, uma Palavra que O descentrava para
sempre de si mesmo e O situava à sombra da ternura incondicional de Alguém
maior.
O que parece certo, teológica e historicamente,
é afirmar que Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo
de discernimento, em oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu
Filho, sob o impulso do Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir
sobre qual seria seu estilo messiânico, qual caminho
assumiria para realizar a missão em sua vida pública. É um tempo de busca,
de conflito interior, de crise. A partir deste discernimento e opção, o messianismo
de Jesus se manifesta como “dife-rente” daquilo que muitos esperavam em Israel.
Sob esta ótica,
as tentações não são simplesmente uma prova na qual Jesus vence o
maligno, não são tentações de ordem moral; as tentações não são uma
prova a superar quanto um projeto que deve ser discernido e assumido.
A
“crise”
põe à prova sua atitude frente a Deus: como viver sua missão e a partir de quê
lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra? Como
deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria
glória ou a vontade de Pai?...
Esta estadia no deserto como um
tempo de discernimento e lucidez, fez com que Jesus tomasse plena consciência
da sua relação filial e iluminou de tal maneira sua vida a ponto de se tornar
impossível confun-dir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta:
um “deus” contaminado pelas vazias preten-sões do pior da condição humana:
possuir, brilhar, ostentar, poder, exercer domínio...
Estas tentações não são fatos isolados, no começo das atividades de
Jesus, mas expressão do conflito permanente de sua vida e na realização de sua
missão.
As tentações
são, pois, expressão da oferta de dois tipos de messianismos, dois projetos,
dois caminhos, dois estilos de missão que se opõem. A Jesus lhe é oferecida a
possibilidade de um messianismo a partir do centro, a partir de cima, a partir
do poder e do prestigio religioso e social, um messianismo triunfalista e
glorioso, como aquele que muitos de seus contemporâneos esperavam.
De um lado, está o caminho da auto-suficiência, da
segurança, a partir do centro, um messianismo triunfalista, evitando
conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo; uma
lógica que supõe adaptação ao “sistema”, ser servido antes que servir.
De outro lado
está o caminho da solidariedade, a partir da margem e da
periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo, a partir de
baixo, vivendo a filiação e a confiança no Pai, em gratuidade, num estilo de
simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser
servido; uma lógica de inclusãofrente o sofrimento do povo, na linha do Servo
de Javé e dos profetas de Israel.
O fato é que Jesus, para realizar
sua missão como Messias, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante
província da Judéia. Logo após sua experiência de deserto, Jesus foi viver e
desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem, numa região distante, habitada
por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram
consideradas uma população sem influência e de má fama.
Se
efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à
sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes
influentes da sociedade de seu tempo, nem procurou os postos de privilégios,
nem o favor dos mais influentes, e nem, muito menos, os que detinham o poder e
o dinheiro.
Para Jesus, opoder
nunca é mediação para a libertação do ser humano; pelo contrário, toda
manifestação de poder destrói o ser humano: deteriora relacionamentos,
resvala-se para o terreno da competição, da violência, da morte...
Todos sabemos que as “mudanças
profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a
partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo.
Há uma esperança alentadora, que vem das periferias e das margens, que se
empenham por imprimir um movimento novo à história; nele está a semente na qual
Jesus viu o germe de uma vida diferente, nova e mais promissora.
E Jesus foi o ponto de partida de
uma profunda mudança na história da humanidade.Ele escolheu a
lógica da solidariedade, a partir de baixo. Opôs-se às tentações de poder, de
riqueza e prestígio através da obediência à Palavra de Deus que apresenta outra
ótica, na linha profética de pobreza e humildade.
Na cena das tentações vemos Jesus reagindo da mesma forma que ao longo de toda
sua vida, ou seja, centrado e aderido afetivamente ao que vai descobrindo como
o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles aos quais
veio buscar e salvar.
Não veio para
preocupar-se com seu próprio pão,
senão preparar uma mesa na qual todos possam sentar-se e comer. Jesus não quer
“converter as pedras em pão”, mas mudar os homens, para que compartilhem o pão.
Jesus sabe que o problema do pão é primordial e por isso o colocou no centro de
seu projeto de reino, mas não na forma de meio para a imposição e divisão de
classes, senão como expressão de comunhão. Não veio para ser carregado pelas
asas dos anjos, monopolizar fama e “fazer nome”, senão
dar a conhecer o nome do Pai e levar sobre seus ombros os perdidos, como um
pastor leva a ovelha perdida.
Não veio para
possuir, dominar ou ser o centro, mas servir e dar a vida. Sua autoridade é só
para criar vida e para amar, para ensinar e curar, para abrir caminhos de
esperança.
Conduzido ainda pelo Espírito,
abandona o deserto; a partir desse momento, o veremos caminhando pela Galiléia,
entrando em relação com as pessoas, anunciando o Reino, criando comunidade,
buscando cola-boradores, aproximando-se dos excluídos, entrando nas casas,
acolhendo, curando, ensinando...
Texto
bíblico:Mt 4,1-11
Na
oração: deixar
que o mesmo Espíritonos conduza para
o Deus a quem Jesus experimentou no
deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espeta-culares, mas
somente nossa confiança e nosso agradeci-mento; um Deus que nos dirige sua
palavra não para impor-nos obrigações ou para nos julgar, mas para
alimentar-nos e fazer-nos crescer.; um Deus que não encontraremos nos lugares
da prepotência ou da riqueza, mas nos lugares da pobreza e da exclusão.
Deixemo-nos batizar pelo nome novo
que Ele sonhou para nós desde toda a eternidade. Nossa vida não está programada
a partir do mercado, nem somos uma fotocópia do consumidor exemplar, nem um
mero especta-dor , nem um súdito do deus “dinheiro”. Somos abençoados, somos
seus filhos amados; não somos clones de ninguém, somos únicos e originais, e o Pastor
nos conhece pelo nosso nome.
Que nesta Quaresma, aprendamos do Mestre
a nos colocar no caminho em direção aos outros: como Ele, encurtemos distâncias,
estendamos mãos, invistamos nas relações, façamos amigos, libertemo-nos de
coisas e afeiçoemo-nos às pessoas, conjuguemos verbos como incluir, incorporar,
tecer redes, acolher... e sentemo-nos com outros no banquete da vida.