A
TRANSFIGURAÇÃO NOS HUMANIZA
“E foi transfigurado diante deles; o seu rosto
brilhou como o sol e suas roupas ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
O ritmo frenético e estressante da sociedade
atual, e sobretudo o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, impedem
recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida diária. Vivemos
mergulhados num contexto caracterizado pelo imediatismo, pragmatismo, interesse
e voracidade. Em tal contexto há tanta superficialidade e tanto narcisismo que
a vivência da profundidade, do silêncio, da admiração... se tornam estranhos
para nós. Tal situação nos des-figura e nos desumaniza.
A festa daTransfiguração
vem nos dizer quem somos realmente no nível mais profundo. Ela nos revela nosso
verdadeiro ser essenciale nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.
Ao mesmo tempo, transfigurar é descentrar-nos e expandir-nos na direção do outro.
A Transfiguração possibilita cultivar um
“olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além
de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua
beleza e bondade originais; um olhar que sabe deixar-se impactar por tudo
aquilo que nos cerca e é capaz de render-se diante do Mistério.
Tal experiência também nos
confere um “olhar contemplativo” que nos faz descobrir que toda
realidade já está “transfigurada”. Seguramente reacenderá em nós a capacidade
de admiração, de assombro e de contemplação, para ver as pessoas e “todas as
coisas criadas” para além do meramente superficial.
O relato da Transfiguração não é crônica
de um fato histórico; é, muito mais, a experiência de fé dos discípulos que,
com toda certeza, perceberam em Jesus uma “transparência” ou “profundidade” que os
impactou profundamente.
Podemos expressar numa frase o
significado do relato: “Jesus é transparência do divino”. Por
isso, podemos dizer também que Ele é um homem transfigurado.
Jesus viveu constantemente transfigurado.
A transfiguração não foi um fato isolado na vida do Mestre de
Nazaré, mas o ‘estado habitual de seu ser’. Não tem sentido pensar que essa
plenitude de ser tinha que manifestar-se externamente (até nas vestes) com
sinais mirabolantes; não quer dizer que Jesus precisou fazer espetáculo de luz
e som pelos montes para provar quem Ele era.
Quê fazia de Jesus um “homem
transfigurado?” E em quê se notava? Era sua bondade, sua compaixão, sua
autenticidade, sua integridade e coerência, sua liberdade, seu projeto de vida,
sua relação com o Pai...Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua
humanidade. Sua humanidade e sua divindade
se expressavam toda vez que se aproximava das pessoas, especialmente as mais
excluídas e sofredoras, ajudando-as a reconstruir a própria humanidade ferida.
A única luz que transforma Jesus é a do amor,
e só quando manifesta esse amor ilumina. É no humano que Deus se deixa
transparecer.
A raiz da mensagem do evangelho de hoje está em
apresentar a Jesus como a presença de Deus entre os homens; por isso é preciso
escutá-Lo. Sua humanidade levada à plenitude é Palavra definitiva.
Escutar o Filho é transfigurar-sen’Ele e levar
uma vida como a sua, ou seja, empapar-nos do “modo” como Ele
humanamente viveu e sermos capazes de descobrir a voz de Deus no grito
desesperado de cada um dos seres humanos que encontramos em nosso caminhar.
Jesus continua se “transfigurando” na
montanha interior de cada um.
Nesse sentido, “subir”
ao Tabor implica “descer” em direção à nossa própria humanidade.
A Montanha nos “transfigura” , revelando nosso ser
essencial.Todos estamos dispostos a “subir”, mas nos custa muito “descer”. Não
haverá plenitude de humanidade enquanto os de cima não decidam descer, e os de
baixo não renunciem subir passando por cima dos outros.
Este é o desafio: “subir” para “descer”,
descer aos duros vales da vida com a luz do evangelho eencon-trar-se com a vida
real, com os pobres e sofredores de turno; descer e sentar-se na planície,
dialogar, com-partilhar... parapoder acompanhar e curar os que mais sofrem
neste mundo, ajudando àqueles que perde-ram o horizonte
de sentido em suas vida.
Uma “Igreja do monte” não tem sentido se permanece fechada em si mesma,
em seu legalismo, ritualismo, encerrada em seus sonhos de poder e de glória. Os
três de cima (Pedro, João e Tiago) precisam descer ao vale obscuro da realidade
para conhecer, por experiência real, direta, imediata, a dor real daqueles que
vivem nas “periferias existenciais”.
Na “descida comprometida”
ouvimos o diálogo de Jesus com seus discípulos. Não permaneceram “acima”, como
queria Pedro. O voz do Pai os despertou do sonhoe os colocou a caminho; a
exigência da entrega de Jesus os faz descer da montanha e, à medida que se
aproximam do vale do drama humano, eles vão crescendo na consciência de sua
profunda missão: participação da missão e do caminho de Jesus.
Os visionários do monte pensam que encontraram
a Deus, que viram seu mistério; por isso querem per-manecer ali, fazendo três
tabernáculos sagrados onde possam descansar para sempre com o Cristo transfi-gurado,
sem mergulhar na paixão do mundo, sem passar pela complexidade da história,
distanciando-se de todos os problemas deste velho mundo.
Quão fácil é cair na tentação de
Pedro! Construir cabanas em um mundo sonhado, fora da realidade, para desfrutar
de privilégios egoístas. É fácil seguir o Jesus glorioso, distanciando-se do
fazer caminho com Ele junto aos mais sofridos.
No Jesus
transfigurado encontramos, portanto, indicações que nos conduzirão a essa
descoberta: a vivência do amor, a compaixão, a liberdade, a confiança, a
experiência de Deus, a consciência unitária... Uma pessoa transfigurada é uma
pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência
de Deus. Somos todos “pessoas transfiguradas”, mas
desconhecemos essa realidade surpreendente.
A transfiguração não é a condição de um “ilumina-do”, mas a realidade
de toda pessoa que se desapegou de seu ego, até o ponto de descentrar-se e
abrir-se à realidade do outro. Aqui ficam superados os velhos dualismos e as
enganosas dicotomias que o divino e
o humano se enfrentavam como
realidades antagônicas.
Texto bíblico:Mt 17,1-9
Na
oração: Há
gestos cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem realmente
somos: um
abraço,
uma mão que se estende, uma escuta atenta, um olhar sereno... São gestos humanizadores
que nos recordam que somos seres transfigurados. Essa
sensibilidade gestual deixa transparecer a luz
que nos habita.Sem dúvida, esta é a linguagem de Deus, não a das palavras,
mas a dos gestos, que dão conteúdo a tantas palavras já desgastadas. Ser transfigurado é prolongar e fazer
chegar a todos os mil gestos do amor de Deus que nos fazem descobrir irmãos.