QUARTA-FEIRA
DE CINZAS: quando caem as máscaras
“Ficai atentos para não praticar a
vossa justiça na frente dos homens, só para serdes vistos por eles”
Todos os anos, vivemos um curioso itinerário: “passamos”
do Carnaval à Quarta-feira de Cinzas. Trata-se de uma das expressões
coletivas onde a tradição, a cultura, a história e a fé se encontram para
deixar transparecer, com assombrosa claridade, um de nossos contrastes
profundos. Assim somos nós, às vezes escondidos detrás de máscaras, ou
envolvidos em plumagens brilhantes. E outras vezes, necessitados de nos desfazer
de capas e envoltórios para poder contemplar nossa autêntica identidade, profunda
e frágil ao mesmo tempo.
Algo disto acontece no Carnaval.
É uma espécie de apoteose do sonho, do espelhismo, da vaidade. No carnaval não
há nada mais que a fachada que alguém quer mostrar.
É uma curiosa metáfora de como,
às vezes, podemos viver. Disfarçamo-nos de forte quando sabemos que somos
vulneráveis; aparentamos ser resistentes quando, na realidade, estamos quebrados
por dentro; manifestamos coragem quando o medo bloqueia o fluir da nossa vida; escondemos
as inquietudes cotidi-anas, os desgostos ou as feridas, os fracassos e a falta
de sentido na vida...
Vivemos a cultura da “civilização do espetáculo”.
A humanidade passa por uma etapa de progressiva atrofia da interioridade, na
qual a vida deixou de ser vivida para ser representada. As pessoas, como os atores que representam em um cenário o nas
telas, vivem para mostrar-se para fora, carecem de sedimento interno. Através
das redes sociais não há nada mais oculto, e o que é mostrado ao exterior está
enfermo de superficialidade. As pessoas mais inventivas e criativas, que antes
perseguiam ideais e causas mobilizadoras, agora já não conseguem senão
representar uma farsa; nada escapa à banalização generalizada imposta por uma
cultura focada na imagem pública.
É cada vez mais difícil a criação
de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior. É cada
vez mais difícil o caminho para a autenticidade, a esforçada vida que aposta
pela profundidade pessoal e pelo compromisso.
Pode-se dizer que a civilização
na qual nos movemos converte em árdua a aspiração evangélica do “escondido” e
“oculto”, porque com a multiplicação de presenças superficiais – celular,
tablets, face-book, whatsApp – nossa civilização trivializou e banalizou a
intimidade.
“Vestir-se de saco e cobrir-se de cinzas” seria a outra face
dessa mesma moeda. É como quem tira a maquiagem frente a um espelho, para
encontrar-se com a pele desnuda, como quem vai se despojando de camadas de
roupas e vai ficando desprotegido.
Neste tempo de Cinzas a liturgia insiste para que possamos ver nossa verdade sem
adornos; contemplar-nos e saber quem somos; aceitar nossa fragilidade,
reconhecer os dons e os limites; descobrir as fendas por onde a vida se esvai,
para ver se há algo a fazer com elas; confiar no Deus que nos conhece melhor
que nós mesmos; e, ao “sair do
próprio amor, querer e interesse”, poder partilhar este nosso ser no compro-misso
com os outros.
Buscar a Deus onde Ele quer ser
buscado e como quer ser buscado significa confrontar nossa própria
interioridade, com toda sua complexidade de desejos contrapostos, e desmontar
fantasias enganosas sobre nós mesmos e nossos objetivos na vida.
A experiência quaresmal
significa: caminhar para a vivência de um Evangelho mais autêntico, lutar
contra uma cultura que premia a exibição, mergulhar no “oculto” de modo que se
dilate em nós um espa-ço interior, pois é no oculto e no escondido onde vai ser
possível um encontro com o Deus verdadeiro.
A Quarta-feira
de Cinzas se abre com o conhecido texto de Mateus sobre a esmola, a oração e o jejum. Tais
“práticas quaresmais” são uma mediação para re-aprender o caminho de volta ao
coração, des-velando (tirando o véu ou as máscaras) nossa interioridade para
poder viver com mais verdade e coerência.
Mateus caricaturiza, exagera e amplifica o
comportamento errôneo daqueles que vivem o “complexo do pavão”. O texto não
critica que se dê esmola ou se faça oração e jejum, mas o “por quê” e o “para
quê” de tudo isso: “para chamar a
atenção”, “para serem elogiados pelos outros”, “para serem vistos”. Ou seja, faz-se da oração-esmola-jejum uma auto-celebração
ou exibição de si mesmo.
Somos convidados a viver a Quaresma como um tempo de libertação. Neste tempo litúrgico teremos
a oportunidade de experimentar um modo de viver, onde a verdadeira liberdade
terá a chance de se expres-sar. Quaresma pode ser escola de vida para o
restante do ano.
Não se trata de estar olhando nosso próprio
umbigo: se queremos mudar as estruturas injustas, se quere-mos enfrentar o mal
sistêmico, se cremos que outro mundo é possível, temos que começar por nós
mesmos. Jejuar, dar esmola e orar... três simples propostas para sermos
melhores e mais humanos.
A oração: um tempo para tomar consciência que minha vida passa diante dos olhos do
Senhor e saber o que Ele vê nela; somente diante do olhar compassivo do Senhor
posso ativar os melhores recursos presentes em meu interior. Orar para conhecer
mais o Senhor, para conectar com o que Ele deseja para mim e desejar, também
eu, com Ele. Oportunidade de sentir sua presença em meu dia-a-dia, no
cotidiano, e de reconhecer que, às vezes, Ele não passa: não o deixo passar.
Tempo também de agradecer o bem que Ele realiza em minha vida e na das pessoas
que me rodeiam. A oração é um encontro necessário, especial, insubstituível,
para prestar-lhe toda minha atenção. E como em toda aprendizagem, persistir.
Como é minha oração? Deixo espaço
suficiente à ação surpreendente de Deus?
O jejum: deixar de lado o que causa dano, para afirmar o que merece
um espaço em minha vida. O Senhor me chama a jejuar de pré-juizos, de
incompreensão, de intolerância, de egoísmo, de soberba, de mentiras... Jejuar
de desculpas que me impedem olhar a realidade de frente, e optar por assumi-la
com toda sua dureza e sua riqueza. Distanciar-me da vida superficial-consumista
e eleger a vida plena, profunda, comprometida. Aprender a jejuar, não como
sacrifício vazio, mas por amor; abraçar a renúncia que me abre a uma vida nova.
De que jejuar em minha realidade
de hoje? A quê renunciar para ativar a vida?
A esmola: chamado a partilhar o muito ou o pouco que tenho, a
des-centrar-me, a fazer da minha vida uma contínua saída em direção aos outros,
sobretudos os mais pobres e excluídos. Praticar a esmola libera os braços para
acolher, alarga o coração para ser mais compassivo, movimenta os pés para uma
maior prontidão no serviço, desperta uma presença inspiradora junto àqueles que
estão abatidos...
Esta generosidade, à qual sou
chamado, é a atitude central na escola da quaresma e da vida. Seus frutos: a
liberdade, a justiça, a Páscoa.
Dar esmola é fazer tudo aquilo
que me leva a sair ao encontro do outro em suas necessidades: ser mais
consciente da injustiça e da violência, servir os outros, visi-tar o enfermo,
estancar feridas afetivas, encontrar tempo para falar com a família, deter-me
naquilo que é mais posi-tivo nos outros, ser membro ou voluntário de uma ONG...
Qual é a “esmola” que o Senhor me
chama a entregar?
Texto bíblico: Mt
6,1-6.16-18
Na
oração:
Qual é minha
verdade, diante de Deus, de mim
mesmo, diante dos outros?
Quê máscaras costumo usar, e
em quê circunstâncias?