“Queres que vamos arrancar o joio”? (Mt 13,28)
O ser humano vive tencionado e marcado por polos
opostos: luz e escuridão, céu e terra, fragmentação e unidade, espírito e
instinto, amor e agressividade, solidão e vida comum, medo e desejo, proximidade
e distanciamento, razão e sentimento, sagrado e profano, animus e anima...,
trigo e joio.
Muitas vezes vivemos apenas um polo e
reprimimos o outro; enquanto este permanecer recalcado nas sombras ele terá um
efeito destrutivo. Só quando dizemos “sim” a esta tensão básica de nossa
vida é que conseguiremos superar a divisão interna.
Aquele que acredita que os dois
polos constituem sua interioridade poderá sentir que a tensão entre eles é que
o mantém vivo e dão calor e criatividade à sua vida. A vitalidade é sempre
marcada pelas contra-dições. Da tensão entre os opostos produz-se
no ser humano uma energia que desperta a criatividade e o espírito de
iniciativa. Ele precisa assumir os opostos dentro de si para se tornar inteiro,
completo...
A arte da humanização consiste na
reconciliação dos dinamismos contrários em seu interior.
Este é o espanto que os
empregados experimentaram quando perceberam que, no campo onde foram semeadas boas sementes,
apareceu também o joio. Seu primeiro impulso foi o de arrancá-lo.
Muitos ficam chocados quando, apesar de todo
empenho para serem pessoas boas e amáveis, sentem o impulso para o mal; querem
ser dóceis, mas descobrem em seu interior a presença do ódio, o sentimento de
vingança...; assustam-se diante da presença do joio e querem arrancá-lo
imediatamente. Mas, se o fizerem, arrancarão com ele também o trigo. O trigo e
o joio não nascem em campos diferentes, nem dividem as pessoas em dois grupos:
bons e maus. Trigo e joio habitam juntos em cada coração humano.
O joio, do qual Jesus fala aqui,
é o “lolium”, que se parece muito com o trigo e cujas raízes se entrelaçam com
as do trigo. Quem, em sua vã tentativa de ser perfeito, tenta arrancar todo
joio do seu interior, no fim acaba sem trigo para colher e sua vida se torna
infrutífera.
Nossa liberdade
sente-se movida e atraída em duas direções. A parábola do “joio e do trigo”
des-vela (distingue, põe às claras...) os dois dinamismos, duas tendências,
dois impulsos... que se fazem presentes em nosso interior. A vida espiritual
não consiste em um combate interno que nos desgasta, tentando nos transformar
em pessoas perfeitas e impecáveis. Somos “húmus”, carregados de fragilidades,
limitações... Os dois dinamismos (trigo e joio) fazem parte de nossa
constituição humana; não tem como arrancar um em benefício de outro. Não se
trata de alimentar uma luta entre eles, como um combate entre o bem e o mal, levando-nos
ao sentimento de impotência e desânimo.; tampouco se trata de uma leitura
moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos,
inclinações... presentes em todos nós, simbolizadas pela presença do “joio”).
O combate dualístico (entre o bem
e o mal) acaba desembocando no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no
perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro sou “eu”.
A fertilidade da nossa vida nunca
é expressão de uma impecabilidade absoluta, mas resulta da confiança no fato de
que o trigo é mais forte do que o joio e de que o joio poderá ser separado na
colheita.
A questão de fundo é saber qual dos dois
dinamismos eu alimento; é aqui que entra a liberdade (ordena-da) para
deixar-me conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Em tudo que vivemos e fazemos devemos ser dóceis
para deixar-nos levar pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não
entendemos e não sabemos.
E “deixar-nos conduzir pelo
Espírito” significa fazer a experiência originária de Deus em todas as
dimensões da vida, não em algumas privilegiadas, ou somente quando estamos no
espaço sagrado de uma celebração, ou quando rezamos... Fazer a experiência de
Deus em cada situação da vida significa sentir Sua presença em todas as coisas,
pois Ele vem misturado em nossa realidade, rica e pobre.
Enquanto vivermos, o joio se fará
presente no campo do nosso interior. Isso nos impõe humildade e nos protege de
uma dureza falsa em relação a nós mesmos e aos outros.
Toda autêntica experiência
espiritual nos ajuda a descobrir nossa natureza singular, nosso eu mais
profundo. O verdadeiro eu é aquele núcleo que reúne todas as nossas pulsões,
todo o nosso mundo de paixões, não só as paixões luminosas, também as paixões menores,
a mediocridade, os instintos...
Tudo isso é um potencial enorme
para crescermos humanamente, para nos inserirmos num projeto de bondade, não
negando essa realidade obscura, mas acolhendo-a como nossa realidade. Ao
redimi-la e integrá-la, superamos os mecanismos neuróticos de recalque e
rejeição, em nós e nos outros.
Não pretendamos, pois arrancar o
joio; demonstremos com nossa vida que, ser trigo, é mais humano.
Por isso, a atitude sábia é a de “deixar o trigo e o joio crescerem juntos”. Tal atitude nos remete
precisa-mente ao que temos de fazer com o próprio joio: aceitá-lo, acolhê-lo, integrá-lo,
reconhecê-lo como próprio, sem reduzir-nos a ele e sem nos deixar determinar
por ele. Tal atitude implica um crescimento em integração e em humildade. Por
mais estranho que pareça, a aceitação do “joio” nos humaniza, pois nos faz
descer de nosso pedestal egóico – feito de exigência, perfeccionismo e de
complexo de superioridade – e aproximar-nos de nosso ser verdadeiro.
Quanto mais nós nos conhecemos e
conhecemos o Sol que nos habita (Deus), mais nos integramos voltados para
aquele centro divino, mais nos humanizamos.
Humanizar-se, não no sentido de mais virtuoso,
brilhante, bem-sucedido... Humanizar-se é também a capacidade de ser frágil,
ser vulnerável e, ao mesmo tempo, ter vigor, ser criativo, resistir, poder
traçar caminhos. Fazer a síntese entre ternura e vigor.
Portanto, a vida espiritual significa
ter acesso a esse centro interior, para deixar desvelar o nosso eu verda-deiro,
com todas as suas contradições, negações, perversidades, mas também com suas
potencialidades, sua dimensão de luz..., até que, nesse eu, as luzes e as
sombras fiquem “planetizadas”, como os planetas ao redor do Sol.
A interioridade também tem seu centro, ao redor
do qual estão nossas passionalidades, sempre ambíguas, positivas e negativas.
São joios que mo-ram em nós, junto com o trigo bom. Os joios também tem sua
função. Não podemos negar a nossa dimensão de sombra, de imperfeições, de limites...,
que recolhe a história do velho Adão e da velha Eva, como
também do novo Adão e da nova Eva na sua luminosidade, na sua capacidade de ser
solidário, amoroso, terno. Tudo isso é vida. Tudo isso é humanidade.
Texto bíblico:
Mt 13,24-30
Na
oração: Amar a nós mesmos significa amar
nossa natureza ambígua e, assim, aceitar-nos plenamente.
A partir daí, vamos criando essa atitude de oração que nos
coloca inteiros diante de Deus.
A oração fica inserida
dentro da vida e Deus vem misturado em nossa vida.