VIVEMOS JÁ EM MORADAS ETERNAS
“Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2)
O contexto do
Evangelho de hoje faz parte do chamado discurso de despedida de Jesus, depois da
última ceia. O ambiente está carregado: a traição de Judas, o anúncio da
negação de Pedro, a revelação da sua partida. Apesar do temor e da inquietação
pairando no ar, Jesus diz coisas que nunca dissera antes: pala-vras
condensadas, luminosas, mobilizadoras...;palavras como raios que rasgam a
escuridão e iluminam a noite da vida.
Em
primeiro lugar, Jesus tenta quebrar o clima pesado, convidando os seus amigos à
calma, à confiança e revelando que na casa do Pai há muitas moradas; não se trata de um lugar, mas
do horizonte do amor de Deus; são as Moradas do Amor.Todos estamos envolvidos
por este amor providente e cuidadoso do Deus Pai e Mãe; no seu coração cabem
todos. Também poderíamos traduzir assim: na família de Deus há lugar para todos,
talvez de formas diferentes, por caminhos diversos, mas há lugar abundante. A
casade Deus é ampla. Todos os seres humanos são chamados a fazer parte da
família do mesmo Deus.
Mais ainda, a partir
da afirmação do Mestre Eckhart“Deus está em sua
casa em nós; nós somos osestrangeiros”, podemos dizer que
quem realmente habita “nossa casa” não é o “eu”, mas Deus.
Caminhamos para a
morada de Deus sendo morada do mesmo Deus. Do Pai-Mãe viemos, no Pai-Mãe
vivemos eao Pai-Mãe voltamos. Esta é a experiência suprema da vida.
Esta morada
interior é o espaço de transcendência, de oração, de admiração, de
mistério, de silêncio; morada aberta e acolhedora, ambiente da comunhão, da
comunicação, da intimidade; é a partir desta morada carregada de presenças que
se vai ao Pai (Grande Morada).
Nessa
direção podemos acrescentar que Jesus fez o caminho para que possamos
percorrê-lo com Ele. Jesus não fez caminho para deixar-nos para trás, mas para
lançar-nos para novas metas, abrindo nossos olhos e nosso coração para novas
moradas do amor, porque Deus é sempre maior.
É nesse contexto de
despedida que Jesus se atreve a dizer “eu sou”,mas não um eu isolado em si
(um eu sem Deus, um eu sem os outros), mas um euaberto ao Pai (um eu-caminho)
e dirigido a todos que queiram acolhê-lo (um eu-expansivo, que se faz verdade e vida para todos). O “eu” de Jesus se faz caminho, um caminho de
Deus, um caminho no qual a verdade se revela e a vida se abre.
Eu sou o
caminho, a verdade e a vida.
Estamos diante de um dos textos mais densos, referidos ao ser de Jesus. Não se
conhece na história das religiões uma afirmação tão audaz. Jesus se oferece
como o cami-nho que podemos percorrer para entrar no
mistério de um Deus Pai. Ele nos faz descobrir o segredo último da existência.
Ele pode nos comunicar a vida plena que todo coração humano aspira.
O
conceito de “caminho” supõe um
destino, o Pai. O conceito de “verdade”
pressupõe um conteúdo, o mesmo Jesus. Dos três termos, o único absoluto é “Vida”. Porque possui a Vida, Jesus é
verdade e é caminho.
Caminho, Verdade e Vida: três
grandes carências existenciais; elas apontam para o sentido da existência;
expressam as três grandes buscas do ser humano. Três dimensões que nos
humanizam. Não são necessida-des periféricas. Jesus se apresenta como resposta
a estas buscas.
O ser humano é
ser de travessia: é peregrino por natureza, busca um horizonte,
desloca-se em direção a uma plenitude. Jesus se faz o centro deste Caminho.
Ali onde
alguém faz o caminho como Jesus fez (peregrino entre os mais pobres e
excluídos) está deixando transparecer em sua vida o rosto do Pai. Por isso,
quem o vê, quem vive como Ele (em amor aberto à vida) viu o Pai da vida.
Trata-se de “ver a Jesus” (esta é a experiência pascal), mas de vê-Lo caminhando
consigo, assumindo Sua verdade, vivendo na dinâmica de Sua vida.
O ser humano
busca a verdade; antes que “ter” verdade, ele quer “ser verdade”. Jesus
afirma: “eu sou a verdade”, e não “eu tenho a verdade” (poderia fechá-lo diante
da verdade do outro, caindo no fundamen-talismo). O importante não é ter
a verdade, mas ser verdadeiro. A pessoa verdadeira pode entrar em ressonância
com a verdade do outro. Jesus é verdadeiro, revela o que é mais nobre em seu
coração, não usa máscara, é pura transparência do rosto do Pai.
Quando
Jesus diz “eu sou a
verdade”, está identificando essa verdade de Deus com o caminho mesmo da vida
humana. A verdade não está na ciência abstrata, nem nas teorias mais ou menos
racionais, nem nos sistemas fechados... A verdade é a vida humana, como
extensão do mesmo ser de Deus.
Ao dizer“eu sou a verdade”Jesus nos
capacita também para dizer “nós somos a verdade”, não contra alguém, mas a
favor de todos. Nós somos a verdade, os que caminhamos e vivemos no amor,
sabendo que em nossa vida se expressa a vida do Pai.
Nós somos
a verdade, em um nós aberto, como Jesus, aberto a todos os que vão e
vem, de um modo especial os mais pobres, os excluídos de todos os sistemas de “verdade”
do mundo.
O ser humano
aspira vida plena;Jesus
viveu intensamente; “morreu de tanto viver” – vida expansiva, voltada para os
outros, compromisso com a vida. Plenificação de todas as dimensões da vida:
corporal, afetiva, social, intelectual...
Ser seguidor de Jesus é fixar o
olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso cami-nho; ao caminhar com Ele, vamos
nos revelando e a partir d’Ele vamos desco-brindo nosso ser verdadeiro (que nos
abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além
das verdades religiosas, políticas, racionais).
Quem se descobre verdadeiro e sem
máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida. Esta é a
via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Por isso, Jesus, o homem radical,
deixa transparecer o rosto do Pai: “quem me vê,
vê o Pai”.
Esta nossa busca
começa no retorno ao interior, onde o Senhor nos habita e nos move.
Podemos então
afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir de Sua iniciativa,
coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que buscar a Deus é
buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
Podemos entrar
dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão
“divi-na” que nos situa acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da
contingência, embora estejamos enraizados nela e caminhemos sobre a faixa da
história fugaz.
Texto
bíblico:Jo 14,1-12
Na oração:É no mais íntimoque se reza aoSenhor. É nomais
profundo da interioridade que se escuta
o Se-
nhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele
que“armou sua tenda entre nós”.