SAMARITANA: história de uma sede
“Senhor, dá-me dessa
água, para que eu não tenha mais sede...” (Jo 4,15)
Comprovamos hoje uma
atrofia ou um “déficit de interioridade”, pois a volatilidade das sensações
pas-sageiras nos dificulta ter acesso à nossa própria identidade.
Continuamente chegam
até nós, sensações inteligentes e sedutoras elaboradas pelos técnicos da
publicida-de em laboratórios e ilhas de edição e semeadas na nossa afetividade
subconsciente. Estamos rodeados por telas iluminadas (tvs, smart, tablets,
computadores...) que emitem uma mensagem “interessada” e nos for-çam a
permanecer na superfície de nós mesmos, esvaziando-nos de toda densidade
humana.
Precisamos
re-descobrir uma pedagogia que nos conduza até o mais profundo de nossa
intimidade, onde o Espírito alimenta a originalidade de nosso ser único,
através de uma fonte que nunca se esgota.
Precisamos,
sob a ação da Graça, destravar nosso centro vivo e sempre inédito, de tal
maneira que brote a novidade que tudo renova e plenifica nossa existência.
Vamos, pois, buscar
inspiração no encontro instigante de Jesus com a Samaritana, junto a um poço.
Assim como a água,
necessária para a vida, é preciso extraí-la do fundo da terra, também a água do
Espí-rito é preciso tirá-la das profundezas de si mesmo.
No início do relato vemos uma
mulher caminhando em direção ao poço de Siquém em busca de água; ela vive um “eu fragmentado”, perdida em sua solidão,
sedenta de um sentido para sua existência...
Tinha graves problemas, estava
confusa, em toda sua vida havia buscando o grande amor. No entanto, seus
casamentos fracassados continuavam a perturbá-la. Era uma mulher que havia se
perdido no cami-nho: tantos cântaros quebrados, tantos pedaços para recolher.
Jesus rompe
com as fronteiras culturais e religiosas, assenta-se junto ao poço de Jacó e,
através de um diálogo provocativo, ajuda a mulher samaritana a encontrar,
dentro dela mesma, esse centro de
onde mana sem cessar uma água que mata a sede, e não buscá-la em tantos poços
secos ou rachados.
Com sua
presença instigante, Jesus ajuda a mulher a integrar suas rupturas existenciais,
reconstruindo-a como pessoa, a partir de sua própria interioridade.
O encontro com Jesus fez a
samaritana viver uma verdadeira “páscoa”,
passando de uma vida trivial e dispersa à missão de anunciar aos outros Aquele
com quem se havia encontrado. Como uma água “que jorra
para a vida eterna”, uma torrente de
gratuidade percorre a cena e transfigura a mulher. Ela foi sendo conduzida até
sua própria interioridade através de um paciente processo que a fez passar
da dispersão à unificação, da exterioridade à interioridade, da desarmonia à
unidade interior, da solidão à comunhão com os outros.
Ela entra em
cena como “uma mulher da Samaria” e sai dela como
conhecedora do manancial de “água viva”, consciente de ser
buscada pelo Pai para fazer dela uma adoradora. Sua identidade transfor-mada a
converte em uma evangelizadora que consegue, através de seu testemunho, que
muitos se apro-ximem de Jesus e creiam nele. Aquela que falava de “tirar água”
como uma tarefa de esforço e trabalho, abandona agora seu cântaro: Jesus a fez
descobrir um dom que lhe é entregue gratuitamente.
Na
realidade, ela passou a ter a sensação de estar nascendo pela primeira vez e
que Deus a amava. Caíam as etiquetas. Tudo o que tinha sido, a samaritana,
filha de sangues misturados e de religião meio pagã, a mulher com uma vida
afetiva fracassada, a amante que, depois de compartilhar sua vida com seis
homens, duvidava de ter sido amada de verdade alguma vez... tudo aquilo parecia
deixar de existir.
Os véus
que cobriam o verdadeiro rosto da mulher do cântaro vazio, foram levados pelo
vento. Ela se tornou “pessoa”.
Estamos, aqui, diante de uma vida em processo. Ao longo do relato
assistimos a tentativa da mulher de permanecer em um nível superficial e
mover-se em seu diálogo com Jesus no âmbito da superficialidade. Uma e outra
vez ela procura escapar e desviar a conversação para terrenos que não permitem
descer em sua profundidade e que não a deixam enfrentar-se com a verdade de sua
existência.
Mas ela não contava com a
tenacidade de Jesus e com sua determinação de alargar aquela vida atrofiada. Ao
longo do encontro, Ele é o verdadeiro protagonista, o condutor da cena e aquele
que marca as estra-tégias da conversação.
Como hábil pescador, Jesus joga suas redes e lança
seus anzóis para tirar a mulher, com quem dialoga, das águas enganosas da
trivialidade e do desejo de auto-justificação que a afogam.
Como bom pastor que conhece suas ovelhas, Jesus
a faz sair do deserto da superficialidade, vai guiando-a para a profundidade e
autenticidade, para a terra do dom da água viva.
Como amigo que busca criar relações
pessoais, em nenhum momento emite juízos morais de desapro-vação ou condenação:
em lugar de acusar, prefere dialogar e propor, emprega uma linguagem dirigida
ao coração da mulher.
Como “expert”
em humanidade, Jesus mostra-se profundamente atento e interessado pela
interioridade de sua interlocutora e lhe faz descobrir o manancial que pode
brotar do mais profundo dela mesma.
Revela-lhe
também a interioridade de Deus como Pai que busca adoradores em espírito e em
verdade.
Jesus desperta a samaritana a
cair na conta que é preciso abrir-se a um “manancial”
novo, que lhe vem através d’Ele e que “brota em seu interior” de um modo
permanente. Ele é o manancial e com sua presen-ça desperta o manancial interior
da samaritana, entupido.
“Dá-me um pouco de sede porque estou morrendo
de água!”
Eis o clamor da
nossa geração que tendo quase tudo, parece que não consegue descobrir o sentido
da própria existência. Morre de sede junto ao poço de água viva.
A sede se
refere à busca de sentido presente em todo ser humano, busca daquilo que traz
definitivamente a paz: a “água viva” que coincide com o “dom de Deus”.
Por isso, o
relato se situa intencionadamente em chave de oferta: “se
conhecesses o dom de Deus...”
Acabou-se o
tempo dos templos; a adoração passa pelo coração, é interior e verdadeira,
corresponde a uma vida em fidelidade.
A experiência
acontece quando escutamos em nosso interior o “eco” que a água viva produz,
saciando nossos desejos mais plenos. “Uma água viva murmura dentro de mim
e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)
Como a
samaritana, também diante de nós se apresenta uma alternativa: continuar
buscando água viva e justificação em poços secos e esgotados ou eleger “vida
eterna” e deixar-nos arrastar pela oferta de transformação proposta pelo Jesus
que nos busca, porque deseja ampliar nossa existência e comunicar-nos alegria e
plenitude.
Texto
bíblico: Jo 4
Na
oração: A cena do encontro de Jesus com a
samari-
tana nos remete à experiência fundante de nossa vida. Tal experiência
significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que
tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta
para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência
de oração junto ao nosso poço nos conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida,
impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água
viva.
De quê tenho
sede? Onde busco saciar minha sede?