ESSA “ESCUTA” TÃO DIFÍCIL...
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
O
específico do Tempo Pascal é deixar
que os efeitos da Ressurreição se façam palpáveis; em outras palavras, é
permitir que, em nossa vida cotidiana, a ressurreição de Cristo refulja, afaste
toda escuridão e des-perte a vida que estava atrofiada nos túmulos do fracasso,
da impotência e do desânimo.
E
essa experiência tem a ver mais com os sentidos
que com a razão. Os olhos, agora cristificados, ficam assombrados diante da
explosão de possibilidades, matizes e cores depois do rigor da quaresma.
O
Evangelho deste domingo nos motiva ressuscitar também nossa capacidade de escuta
para estar atentos à voz d’Aquele que vive. Precisamos afastar a pedra da
entrada dos ouvidos para escutar a sinfonia de vida que, continuamente, faz seu
recital ao nosso redor.
O
convite à escuta nos interpela com
força desde os primeiros tempos bíblicos; escuta como atitude de abertura à
profundidade da vida, de uma vida que tem sentido e que se abre a uma dimensão
transcendente, que entra em sintonia com Aquele que escuta e se faz escutar.
Escutar como atitude de fé e não como simples exercício da capacidade de ouvir.
Escutar é mais que ouvir.
O ser humano
é o único capaz de escutar e de falar, porque é o único criado à imagem
e semelhança d’Aque-le que é a Palavra cheia de verdade e a escuta cheia de
amor.
“Escuta, Israel…
amarás”. Escutar, abrir os ouvidos… diz-se que Israel é o povo da escuta, em vez de ser o povo da visão
(gregos). É verdade que no deserto não há nada para ver. Os olhos mal se
ajustam à luz… mas há cantos de areia, vozes no vento, gemidos de animais,
palavras por dentro, no interior…
O povo que traz a Palavra de Deus
é o povo da escuta. Portanto, o primeiro mandamento é “escutar”.
“Escuta”, ou seja, atende à Voz,
acolhe a Palavra. No fundo, isto quer dizer: não te feches, não faças de tua vida
um espaço isolado onde só são escutadas tuas vozes e as vozes do mundo. Para
além de tudo o que fazes e pensas, daquilo que desejas e podes, estende-se o
vasto campo da manifestação de Deus; abrir-se à Sua voz, manter a atenção
acesa, ser receptivo diante de sua Palavra: esse é o princípio que plenifica e
dá sentido à existência.
É Deus
que nos ensina a calar e a fazer silêncio para não mais escutar a palavra que
apequena e mata. Existe uma palavra
que informa, educa, ensina, apazigua, alegra, reconforta e edifica, mas também
há outra que confunde, obscurece, empobrece, entristece, quebra, divide...
Existe
uma palavra que vivifica e outra que
mata.
É
importante progredir pelo caminho do silêncio,
no qual nos educamos na escuta
autêntica, que é a única capaz de nos conduzir ao puro amor. Porque o grau
supremo da escuta é o silêncio cheio de amor.
Diante
da voz do Bom Pastor não se trata de
sermos receptivos a algumas ideias, ouvir determinados con-ceitos, mas de
escutar com o ouvido do coração, procurando captar a vida que pulsa no coração
d’Ele. Saber escutar,
saborear o que Ele diz, entrar em comunhão de sentimentos, deixar-se impactar
pelo seu modo de ser e de viver, suas opções, suas relações com o Pai e com os
outros...
E
isto exige uma capacidade de escuta de nós mesmos e uma profundidade que
possivelmente está nos fal-tando, sobretudo se estivermos nos movendo na
superficialidade da vida.
A vida é a verdadeira escola para a
aprendizagem da escuta. Por isso,
escutar a voz do Pastor implica nos colocar no caminho da verdadeira e
autêntica humanização. Daí a insistência em ter uma atitude aberta e acolhedora
de escuta.
O ser humano pós-moderno não poderá
deixar ressoar em seu interior a voz do Pastor enquanto sua mente e seu coração
estiverem petrificados no automatismo da vida. A convivência se revela tensa,
ansiosa, diante da ausência de saber escutar. Ser seguidor do Ressuscitado pede
de nós um novo ouvido para facilitar novas relações, a transformação social e
aceitar a nova visão da existência humana.
Escutar o “mistério” entranhável e sempre livre do Pastor é o caminho para
encontrar nossa originalidade, nosso nome, para nos encontrarmos n’Ele, deixando-nos
impregnar pelo seu “modo de proceder”; só assim poderemos viver como
“ressuscitados”.
Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza
egoísticamente.
A escuta
é o caminho da originalidade, é a condição para não se viver na inércia.
Custa-nos muito ter sempre uma atitude de escuta receptiva, sobretudo em nossa sociedade secularizada, globalizada, individualizada, informatizada ou tecnologizada. Tudo são aparelhos. Tudo são ruídos. Todo o mundo quer falar, expressar-se. Mas falta o interlocutor que escuta sabiamente.
Rubem Alves, com seu fino humor, afirmou: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil”.
Escutar é uma arte difícil; aprender a escutar
exige paciência e prática; escutar requer liberar tempos e criar hábitos:
tempos para escavar significados e desmontar pré-juízos; hábitos para fazer
silêncio e refletir sobre o escutado. O mais difícil não é aprender algo novo,
mas desaprender algo antigo. Acontece o mesmo com a atitude de escutar: o
difícil não é ouvir, mas esvaziar-se o suficiente para que a palavra escutada
entre, ressoe e permaneça. Escutar é uma arte que implica todos os sentidos,
não só os ouvidos: pede atenção às palavras, gestos, reações, silêncios...;
pede saber interpretar e ler entre-linhas; pede meditar e digerir o visto e
ouvido.
Se muitas de nossas conversações soam
vazias e, com frequências, não conduzem a nenhum lugar, é porque não nos
exercitamos para ser ouvintes.
Devemos escutar com ouvidos de Deus a
fim de que nos seja dado falar com a Palavra de Deus.
Só quando prestamos atenção a essa voz interior é que assumimos o sentido
de nossa existência. A busca do sentido da vida é um exercício de escuta.
Só quando escutamos atentamente esse chamado do Pastor
Ressuscitado que emerge de nosso interior é possível perceber qual é a missão
que devemos assumir ao longo da existência: ser presença de vida em meio a uma
realidade marcada por tantas mortes.
Texto bíblico: Jo 10,27-30
Na oração: Orar, na verdade, não é,
em primeiro lugar,
falar com Deus; antes, é calar-se
para escu-tar. Deus é uma presença que “ressoa” em nosso interior e às vezes
faz brotar o canto, outras vezes o louvor, outras vezes a palavra profética…
Escutar faz-nos calar em todos os sentidos e, neste silêncio, aprofundamos em
nós um desejo mais elevado.
Invoque a luz sobre o sentido da audição que a natureza o quis vigilante; perceba toda a exultação
em escutar as vozes da natureza e acolha as ressonâncias das palavras, dos
hinos e das melodias com as quais é tecida a oração.