“...todas as vezes que fizestes isso
a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”
Como dizia o biblista Jean-Pierre Prévost: “Para ser honesto com vocês, devo dizer
francamente que nãotenho nenhuma predileção particular pela realeza e que, em
si, o título de rei aplicado a Jesus
não é aquele que mais me inspira”. Por essa razão, devemos redefinir a realeza, se quisermos aplicá-la ao
Cristo ressuscitado na Igreja de hoje; caso contrário, corremos o risco de confundir
a realeza de Cristo com aquela dos homens, a ponto de deformar o rosto de
Jesus.
Felizmente, em cada época, houve
discípulos, homens e mulheres, que souberam devolver ao Cristo a sua verdadeira
realeza, que consiste em servir e não em ser servido.
Jesus nunca atribuiu a si o
título derei; pelo contrário, o
evangelho nos mostra que esse título foi dado a Ele de maneira irônica e
sarcástica por um rei, Herodes, e por um representante de César, Pôncio
Pilatos...
Por outro lado, se dizemos que
Cristo é rei, é porque reconhecemos nele o servidor que quis estabelecer o
reino de justiça e de paz, tão desejado pelos homens e pelas mulheres de todos
os tempos. Mas Ele não tem nada de outro rei: seu trono é a cruz; sua coroa é
de espinhos e seu cetro é o bastão de pastor.
No Evangelho indicado para a liturgia desta
festa, todos nós esperávamos um discurso mais triunfalista da parte de nosso
Rei. Esperávamos que nos falasse de príncipes valentes, de “armas e heróis
poderosos”. Mas acabou nos falando de famintos e doentes, de maltrapilhos e
presidiários, de cordeiros e cabritos... Esperávamos que nos falasse de
batalhas, de vitórias e territórios conquistados. Mas acabou nos falando de pão
e de água, de remédios, de roupa e de visitas fraternas... Esperávamos que ele
exaltasse a importân-cia das leis e da disciplina, da teologia e da moral. Mas
acabou exaltando os valores presentes na vida cotidiana. Enfim, estediscurso do Rei nos desinstala energicamente, porque nos
convoca a investir na vida, a lutar
pela vida, a colocar o ser humano no centro das atenções.
Em Mt. 25,31-46,todo o discurso nos revela
uma imagem de Deus revolucionária:
Ele se identifica com aqueles que sofrem, que passam fome e sede, que são
estrangeiros, que estão nus...
À hora da verdade, quando se decide o destino
definitivo de cada ser humano, o que vai ser levado em conta não são as crenças
de cada um, nem as práticas religiosas ou a observância das leis; o único
determi-nante será a atitude compassiva e acolhedora na relação com o outro.
Ou seja, não resta mais nada a não ser o ser
humano. Tudo isso para deixar bem claro onde e como podemos
encontrar o Deus a quem buscamos e em quem acreditamos: na medida em que
tomamos a sério o sofrimento e também a felicidade dos outros.
Esta é a verdadeira religião.
A imagem de Deus mais
surpreendente encontrada nos Evangelhos é que Ele se “fundiu” com
o hu-mano. É no “humano” onde Deus se revela a nós e é no “humano”
onde nós podemos encontrá-Lo.
Quem crê em Jesus como “revelação
de Deus”, crê num Deus que está intimamente vinculado ao humano, encarnado
no humano e, portanto, fundido com o humano.
Mais ainda,“Deus
se funde e se confunde com todo ser humano”. De maneira que, quem se “hu-maniza”
até o mais profundo de seu ser e se relaciona com os outros, com sentimentos e
atos de profunda humanidade, na realidade esse é o que se “esbarra”
em Deus, na vida, no cotidiano, nas relações...
A identificação de Deus com o ser
humano é tão forte e tão decisiva que, no momento do encontro definitivo com
Ele, o critério para entrar no Reino não é o que cada pessoa fez ou deixou de
fazer “para” Deus, mas o que ela fez ou deixou de fazer “para”
os seus semelhantes, com os quais conviveu.
Lido numa perspectiva social, o evangelho de
hoje oferece uma síntese das necessidades básicas da humanidade, estruturada em
três níveis: material (fome e sede), exclusão social (exílio e
desnudamento) e de sumaimpotência (enfermidade e cárcere). O texto não discute as
causas desses males, mastoma-os como
fatos. Não se trata, portanto, de teorizar sobre eles, mas de buscar uma
maneira de solucioná-los.
Jesus, Messias de Deus, o Filho do Homem e o
Rei das nações, não aparece como situado fora ou à mar-gemdos males deste
mundo. Pelo contrário, Ele assume como próprios todos os sofrimentos e as neces-sidades
de todos os humanos: “tive fome, estive enfermo e encarcerado...”
Da fome (primeiro dos males) ao cárcere (último
dos males) estende-se toda uma cadeia de males que deformam o rosto dos
humanos, e portanto, deformam o rosto do próprio Deus.
“Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na
vida real, feiçõesconcretíssimas,
nas quais deveríamos reconhecer as feições
sofredoras de Cristo, o Senhor que nos questiona e interpela:
- Feições de crianças
golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer.
- Feições de jovens
desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade.
- Feições de
indígenas e de afro que vivem segregados e em situações desumanas.
- Feições de
camponeses que vivem sem terra, em situação de dependência.
- Feições de
operários mal remunerados e que tem dificuldades de se organizar e defender
seus direitos.
- Feições de desempregados,
despedidos pelas duras exigências das crises econômicas.
- Feições de
marginalizados e amontoados das nossas cidades.
- Feições de anciãos,
postos à margem da sociedade, que prescinde das pessoas que não produzem.
Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser
humano, “imagem e semelhança” do Criador e a seus direitos inalienáveis
de filhos de Deus”.
(Doc. de Puebla)
Esse
sofrimento injusto dos últimos da Terra nos ajuda a conhecer a realidade do
mundo que estamos construindo. Não se conhece o mundo a partir de seus centros
de poder, mas a partir dessas “massas so-brantes”, sem rosto e sem
nome, dos excluídos, os únicos para os quais não há um lugar em nosso mundo
globalizado. São nossas vítimas as que mais nos ajudam a conhecer quemsomos. Ninguém
pode nos interpelar com mais força. Ninguém tem mais poder para nos arrancar de
nossa cegueira e indiferença. Ninguém tem mais autoridade para nos exigir
mudança e conversão. Dizia Jon Sobrino, “as vítimas tem um potencial para
salvar a história e a humanidade, e, em parte, essepotencial seu é
insubstituível”.
Isso fica claro no Evangelho de
hoje. Ali estão os sofredores de todas as raças e povos, de todas as culturas e
religiões, gerações de todos os tempos.
A “autoridade dos que sofrem” é a
única instância ante a qual Jesus colocou a humanidade inteira.
Vai-se escutar o veredito final
sobre a história humana, a palavra que des-vela tudo. O que vai decidir a sorte
final não é a religião que cada um viveu, nem a fé que confessou, nem as leis
ou doutrinas que muitos defenderam. O decisivo é o compromisso solidário para
com aqueles que sofrem. O que fazemos às pessoas famintas, aos imigrantes
indefesos, aos enfermos desvalidos, aos encarcerados esquecidos por todos, tem
um valor absoluto, pois o estamos fazendo para o mesmo Deus.
Texto bíblico:Mt 25,31-46
Na
oração: Que
rosto de Cristo revelamos às
mulheres
e aos homens do nosso tem-po? Estamos apresentando, com nossas vidas, um rosto
de Cristo amável, misericordioso, tolerante, aberto, livre, justo, respeitoso
dos outros, compassivo: um rosto de Cristo que faz o homem e a mulher no mundo
de hoje ter esperança?
Diante
de Deus, deixe seu coração responder: Como você se coloca diante deste mundo:
inconformado?
revoltado?
acomodado? indiferente? otimista? ativo?...
Examinando
a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, quê esperanças você carrega?
Somos
chamados a criar uma sociedade digna da liberdade humana, a partir das
condições econômicas, políticas, sociais, culturais... Como você atua e se
prepara para se comprometer com a
transformação do mundo que o cerca?