“Simão,
filho de João, tu me amas mais do que estes?” (Jo 21,15)
O
relato da última aparição de Jesus ressuscitado aos seus discípulos tem uma
cena belíssima. Novamente juntos à praia e entre redes, como no começo; novamente
diante de um trabalho cansativo e ineficaz, como tantas vezes; novamente a
dureza de cada dia, em um cotidiano sem Jesus, como antigamente.
Há
algumas brasas, que recordam aquela fogueira em torno da qual, alguns dias
antes, o velho pescador jurou não conhecer Jesus, negando-o três vezes. Agora,
junto ao fogo irmão, Jesus lavará com misericórdia a fraqueza de Pedro,
transformando para sempre seu barro frágil em “pedra” fiel.
O
verdadeiro milagre não é uma rede que se enche; o maior milagre é a traição
covarde que se transforma em confissão de amor.
Até três vezes o confessará. A traição desumanizou Pedro, fez com que ele fosse
fundo no fracasso, obrigando-o a dizer com os lábios o que seu coração não
queria. A fidelidade e o amor de Jesus, sua graça sempre pronta, o humanizará
de novo, reconstruindo sua vida e reativando em Pedro a liderança para o
serviço. Sem ironia, sem indiretas, sem pagamento de dívidas atrasadas. Por
pura graça, gratuitamente
O
Pedro que emerge deste contato terapêutico com Jesus é um Pedro corajoso,
decidido, mas também muito mais amoroso, capaz de superar preconceitos antigos.
Jesus percebe que por debaixo das cinzas da negação e da traição de Pedro está
escondida a nobreza de um homem que precisa ser ativada.
A
cura das feridas emocionais é antes de tudo um caminho novo, que envolve afeto,
amizade, amor.
A
vida de Pedro se transforma quando ele se deixa impactar por aquela pergunta
tão desconcertante que Jesus lhe faz: TU
ME AMAS?
Jesus não examina
Pedro sobre teología, Sagrada Escritura ou Direito Canônico, nem pergunta por
suas qualidades organizativas do grupo ou se tem capacidade de exercer
liderança. Jesus o examina somente em uma coisa, a que é essencial para todo
seu seguidor e para toda a Igreja: se é uma pessoa com um coração “grande
para amar”. Ele quer examinar o quanto Pedro se distingue por sua
capacidade de amor.
A
pescaria do lago Tiberíades aponta para a missão; o pastoreio cobrado de
Pedro já visa a posteriores cuidados “pastorais”. O pastor precisa de um olhar amoroso que vai além de seu curral, e o pescador precisa de um olhar apurado
para o discernimento diante da multidão dos peixes e da amplitude do mar.
Ao
entardecer, Pedro se torna novamente pescador e sai da terra firme para o mar.
A
comunidade eclesial vive concomitantemente a pescaria e o pastoreio, a
missão em alto-mar e o cuidado pastoral em terra firme. Juntar as ovelhas e
guardar os peixes são tarefas permanentes da Igreja.
O
dom da rede cheia do pescador, no fim da noite, torna-se tarefa para o dia do
pastor: discernimento, cuidado, partilha, testemunho, anúncio.
No
nosso mundo existem muitas fogueiras e lugares onde Deus e os irmãos são
traídos e, agindo assim, somos desumanizados, quebrados. Mas há outras brasas,
aquelas que Jesus prepara ao amanhecer das nossas escuridões e depois das nossas
fadigas, e nela nos convoca a uma nova intimidade com Ele, trans-formando-nos
em humanidade cuidadora. Lá, permite-nos voltar a começar, na alegria do
milagre da sua misericórdia transbordante. É a última pesca estéril, a das
nossas fadigas e cansaços.
Feliz
quem tiver olhos para reconhecê-lo, como João, e quem se deixar renascer, como
Pedro!
O itinerário Pedro é um itinerário de humanização, encontro com a
própria humanidade, uma aventu-ra para descoberta do “mundo
interior”, que é o coração, onde
acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa. Este é o nível da graça,
da gratuidade, da abundância de dons e riquezas, onde a pessoa
experimenta a unidade de seu ser e o sentido de sua existência. “Quem sou
eu? Para quê vivo? Para quem? Qual é o meu lugar e missão no mundo?”
O coração de cada um está habitado de sonhos
de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e
belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com
tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do
amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência,
de crescimento, de maturidade...
“A pessoa
amadurece constantemente no conhecimento, amor e seguimento de Jesus Mestre, se
aprofunda no mistério de Sua pessoa, de Seu exemplo e de Sua doutrina” (Doc. Aparecida, n. 277,c)
A Graça
de Deus pode atingir-nos pelos caminhos mais variados e
inesperados: penetrando pelas racha-duras de nossas quedas, pelas brechas
abertas em nós pelas fragilidades e pelas grandes decepções
ou soprando as últimas brasas que, sob as cinzas da desilusão, ainda
permanecem acesas.
Não poucas vezes é por meio do vazio deixado em nós
pelas crises e perdas que Deus se introduz em nossas vidas e acaba por
transformá-las radicalmente.
A
verdadeira questão é se permanece ainda suficiente fogo debaixo das cinzas para suscitar a energia necessária a fim de
tornar nossa vivência cristã mais autêntica.
Cair
na conta disso nos estremece profundamente. Todos e cada um de nós que vivemos
hoje somos portadores do novo fogo.
O novo sempre vem e sempre nos
surpreende.
Para
vislumbrar o amanhã, o que temos de fazer é olhar para nós mesmos e
perguntar-nos:
“brota uma energia profunda no nosso coração?
Percebe-se nele o desejo de um compromisso
com o Evangelho? Aí há lugar para a audácia, a
coragem, o fogo novo...?
Ou se apagou o antigo fogo? É a vida agora
simplesmente questão de suportar os dias
e agir por inércia ou ela é lugar da criatividade,
do risco...?
Texto bíblico: Jo
21,15-19
Na oração: Só o “olhar amoroso” de Deus, que nunca
desiste de buscar-
nos para reconstruir-nos,
conhece as lonjuras dos caminhos que temos de percorrer para que nossos olhos
sejam abertos.
Só o coração
de Deus conhece a hora e o lugar em que nossos corações, mesmo estando duros e desesperançados,
podem ser enternecidos e entusi-asmados de novo.
Sejam
quais forem os motivos que nos
levaram ao afastamento do Senhor, Ele vem ao nosso encontro percorrendo
exatamente os mesmos caminhos que
percorremos para nos afastarmos d’Ele.
Fazer “memória” dos momentos mais difíceis do
nosso caminho onde Deus se revelou presente, reconstruindo a nossa história e
dando sentido à nossa vida.