A HORA DE
LEVANTAR VÔO
“Eles, imediatamente deixaram as
redes e o seguiram” (Mt 4,20)
Mudanças são a essência e o
sabor da vida. O ser humano é um ser de mudança;
só é humano quem vive em “estado de
mudança”. A mudança é o
elemento que traz energia, variedade, surpresa, côr e vida à vida. Trata-se de
um “hábito do coração”: descobrir, examinar, purificar e
substituir os hábitos inertes, os esquemas mentais fechados, as condutas
petrificadas, os projetos sem horizontes...
É saudável questionar-se, abrir-se e
aventurar-se a ver as coisas de maneira diferente e a responder às
circunstâncias com espontaneidade nova.
Deus não nos deu um espírito de timidez, de
medo, de fuga, de acomodação... mas de audácia, de criatividade, de luta, de
participação... Movidos por sua força, vemos a possibilidade de questionar toda
nossa atitude conformista, sacudir nossas convicções, ampliar nossos horizontes
e animar nossa vida.
Toda mudança implica sair de nós mesmos, de nosso estreito mundo, de
nossas práticas arcaicas, daquilo que nos protege e nos esteriliza para que
possamos avançar em direção às novas
fronteiras do espaço sem limites, que nos espera aberto e acolhedor.
Ser seguidor de Jesus, portanto,
consiste em colocar-nos nos seus “passos”, com suficiente visão da
realidade para ir adiante, e com bastante disponibilidade para mudar de caminho
quando o sopro do Espírito assim nos sugerir.
O texto do evangelho de hoje nos situa diante
de um denominador comum que é a mudança.
O próprio Jesus vive um momento de mudança radical: rompe com sua família, com
seu ambiente, afasta-se da estrutura religiosa centrada na Lei e no Templo e
opta por deslocar-se para a margem social e religiosa de seu tempo (Galiléia e terra
de Zabulon). Sua mudança de vida desencadeia um processo de mudanças nas
pessoas, de maneira especial no grupo dos primeiros seguidores.
O olhar e o chamado de Jesus ativam um movimento na vida dos primeiros
discípulos: deixam seu estreito mar e seu rotineiro trabalho para fazer caminho
com o Mestre.
Tudo começou às margens do mar da Galiléia...
Jesus caminha e, ao passar ao longo do mar, viu aqueles homens que estavam retornando
da pesca e entra no espaço vital
deles. Exatamente ali, naquela vida tão normal, acontece algo novo.
Jesus os
chama do mar, os faz descer da barca e os convida a segui-Lo, para
mergulhá-los no Seu mar, para
fazê-los subir noutra barca, para
atraí-los a uma vida diferente.
O seguimento só se realiza quando alguém
se deixa conduzir para águas profundas num novo
mar.
Partindo do lugar e das coisas que representam as
esperanças, as dificuldades, as decepções, os sucessos, as derrotas daqueles
homens pescadores, Jesus pronuncia sua Palavra
mobilizadora: “Segui-me e farei de vós pescadores de homens”, ou seja, compartilhar Sua mesma missão, “pescar” o
que há de mais humano e nobre nas pessoas, ajudá-las a viver com sentido,
tirando-as do mar da desumanização.
E Jesus tem a capacidade de
extrair o maior bem possível do outro, de garimpar a autêntica qualidade humana
de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos
racionais.
“Eles deixaram
as redes e o seguiram”: seguir
Jesus é uma libertação. Na realidade, o que eles deixam não são só redes, mas
tudo aquilo que aprisiona, enreda e que impede a vida ter uma dimensão maior.
Tocados pelo dinamismo de Sua voz
e de sua Palavra, os pescadores
se dão conta d’Aquele que estava passando: eles já tinham sido vistos,
conhecidos, amados, escolhidos.
Aquela Palavra que vibra
forte, abre os olhos, a mente e o coração daqueles homens rudes do lago. Sen-tem-se
chamados pelo nome, conseguem compreender melhor a si mesmos e re-descobrem um
sentido novo, um significado inimaginável para a própria existência. Eles descobrem o quão estreito era o seu mar cotidiano e entram no
dinamismo da vida de Jesus, deslocando-se para o vasto oceano do Reino.
A experiência do encontro com a pessoa de Jesus,
seu olhar compassivo e terno, a proposta ousada e desafiante que Ele nos faz...
despertam dinamismos profundos e desejos nobres em nosso interior, sacodem
nossa rotina e ampliam nosso atrofiado olhar.
Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós,
chamando-nos pelo nome, seremos movidos a assumir opções mais radicais e
integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio
Jesus.
São grandes os riscos de se viver em horizontes
tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à
indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças
que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido
do serviço some do horizonte inspirador de
tudo aquilo que se faz. Ampliar os espaços do
coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e
abertura às mudanças e às novas descobertas.
Vivemos um tempo caracterizado
por constantes mudanças e pelo movimento. No entanto, de uma maneira
dissimulada, percebemos a presença de uma paralisia que perpassa nossa condição
humana. E paralisia é o que ocorre quando algo que deveria mover-se e fluir,
não se move, nem flui. Esse “algo” são processos, projetos, relações,
aspirações, causas... E é essa mudança verdadeira que, quando não ocorre, nos
faz sentir estancados, angustiados e sem brilho, embora aparentemente as coisas
parecem andar bem.
Uma pergunta
que normalmente costuma protagonizar nossas conversações com amigos e parentes
é: “por
quê você vai mudar?” Aumenta a curiosidade quando alguém que gosta
muito do que está fazendo, sobretudo no campo profissional, decide mudar: “é verdade
que você vai deixar? A gente percebia você tão feliz!”
Acontece
que, às vezes, não há nada “mau” com o que estamos fazendo, mas sem entender
muito bem por quê, há algo dentro de nós que nos impulsiona a sair, a ir além
de nós mesmos, a levantar novo vôo.
Alguém
poderia nos perguntar: “Mas, se estava bem, para quê complicar-se ao começar algo
novo?”.
A
resposta que damos nunca poderá ser totalmente racional.
Porque disso se trata: toda mudança nos leva a desatar nossa
essência, isso que somos na verdade e que clama por sair.
O certo é que avançar supõe fazer
opções, renunciar à comodidade do conhecido e dar lugar à mudança. Mas mudar
nos dá medo e o medo, às vezes, paralisa. Temos medo de nossas próprias
capacidades; tememos nossas máximas possibilidades; assusta-nos chegar a ser
aquilo que vislumbramos em nossos melhores momentos. No entanto, não podemos ser “bonsais” de nós mesmos”,
atrofiando nossos recur-sos internos e tirando o brilho de nossa vida.
Desprender-nos do antigo e dar
lugar ao novo implica um processo sempre enriquecedor mas também doloroso.
Muitas vezes, para escapar do sofrimento, preferimos evitar os riscos em vez de
assumir o fato de que, para dar à luz algo novo, necessariamente devemos tomar
a decisão de soltar o que nos mantém ancorados no nosso estreito mar e não nos
permite singrar os vastos oceanos.
Texto bíblico: Mt
4,12-23
Na
oração: No fundo
do seu coração cheio de velhas barcas, redes
inúteis, mar estreito... é aí que
o Senhor passa... e com sua Palavra
provocante o acorda para uma ousadia maior. Compete a você dar-lhe acolhida.
- Seguir
o Desconhecido do lago significa
aceitar a vida como sacramento do encontro, onde ressoa a Palavra d’Aquele que passa, vê,
conhece, ama, chama pelo nome... Aos poucos você vai intuindo que a vida não é questão de certezas, mas de busca
e de desejos,
de caminhar com Aquele que o chama para ficar com Ele e com Ele constituir a
grande comunidade de servidores.