GRATIDÃO: o
agradecimento é a memória do coração
“...atirou-se
aos pés de Jesus, com o rosto por terra e lhe agradeceu; e este era um
samaritano”
A tradição judaica transmite este
ensinamento:
“Aquele que desfruta de um bem qualquer neste mundo sem dizer antes uma
oração de gratidão ou uma benção, comete uma injustiça”.
A
ação de graças está no coração mesmo
da liturgia e da oração cristãs. A sorte e a felicidade do cristão consistem em
poder dar graças a Alguém. O maior drama vivido por um ateu é não ter a Quem
agradecer.
A
pessoa compreende que “tudo é dom e graça de Deus” e esquecer de
agradecer é passar ao lado daquilo que constituí a beleza da vida. Agradecer
é muito mais que dar graças. Implica
re-conhecimento e correspondência. “Ali onde não há gratidão, o dom fica perdido” (Bruno
Forte).
Lucas situa o relato de
hoje no caminho de subida a Jerusalém, no limite entre Galiléia e Samaria,
lugar chave de disputas religiosas. Os leprosos
que saem ao encontro de Jesus e gritam de longe pedindo-lhe que os cure, são
dez. Significativamente, a lepra não distingue entre judeus e gentios, galileus
e samarita-nos. Todos são irmãos na miséria.
No relato podemos identificar
os mesmos componentes presentes em outras narrações semelhantes de curas:
apresentação da situação de enfermidade (“dez
leprosos vieram ao seu encontro”), petição de cura (“Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!”), intervenção de Jesus
(“Ide apresentar aos sacerdotes”), cura
(“enquanto caminhavam, aconteceu que
ficaram curados”)
e reação
diante do milagre.
É este último
elemento que está mais desenvolvido na cena, e nele enfatiza-se o contraste da
atitude de um dos leprosos (um samaritano que volta para agradecer a Jesus) com
a dos outros nove. Na realidade, os outros nove leprosos curados não fazem
senão cumprir as instruções de Jesus: ir e apresentar-se aos sacerdotes. Mas só
um tem a suficiente finura espiritual para reconhecer profundamente o dom
recebido e, deixando de lado as prescrições legais, dá primazia à expressão de
agradecimento.
A gratidão parece apresentar-se aqui como
um plus, como algo que deveria brotar com naturalidade nas relações humanas e na
vida de fé, e não como uma atitude estatisticamente minoritária (um entre dez).
O samaritano sente
que para ele começa uma vida nova; de agora em diante, tudo será diferente:
poderá viver de maneira mais digna e ditosa. Sabe a quem ele deve isso. Precisa
encontrar-se com Jesus.
Esta é a fé do samaritano que
confia em Jesus, que crê no agradecimento mais que nas leis do sistema
religioso. O agradecimento como atitude vital parece requerer, pois, uma
especial sensibilidade espiri-tual, precisamente essa que encontramos nos santos
e santas.
Caberia
perguntar-nos quais são as razões que nos dificultam esta vivência da gratidão, quando esta deveria brotar de modo espontâneo e
natural frente a tanto bem recebido.
No início de uma carta de S.
Inácio a um de seus primeiros companheiros, Simão Rodrigues, lemos isto:
“À
luz da divina bondade me parece que, embora outros possam pensar de modo
diferente, a ingratidão é o mais
abominável dos pecados aos olhos de nosso Criador e Senhor, e de todas as
criaturas capazes de aproveitar-se em sua divina e eterna glória. Já que é
esquecimento das graças, bens e bençãos recebidas; e além disso aqui se
encontra a causa e começo de todos os pecados e desgraças. Pelo contrário, a gratidão que reconhece as bênçãos e
bens recebidos é estimada e amada não só na terra senão também no céu” (18 de março –
1542).
Na
vivência cristã, a gratidão nasce com naturalidade e espontaneidade nos
corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que recebem não é por
mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
Elas
adquirem a fina percepção de que tudo é Graça, tudo é “de graça”, são
“agraciadas”, “cheias de graça”... Precisamente porque perceberam
suas vidas como um presente, voltam-se para Deus, entregan-do-lhe “tudo o que
tem e possuem”.
Marcada
pela gratidão, a pessoa deseja sempre corresponder o melhor, rejeitando todo
tipo de mediocri-dade na entrega e no serviço.
O agradecimento
é uma atitude fundante e fecunda que possibilita viver o cotidiano com outro
“sabor”, com outro “ar”. Do agradecimento brota um estado interior de consolação,
de disponibilidade, de agili-dade em dar resposta às demandas da vida, de uma sensibilidade
mais viva para perceber tudo aquilo que a vida cotidiana tem de dom e sem
ansiedade por não receber compensações
ou recompensas.
O agradecimento
é a experiência humana que mais ativa a generosidade como atitude vital de
nossa existência de criaturas amadas e presenteadas por Deus.
O agradecimento
como atitude básica na vida é a tomada de consciência daquilo que estamos
recebendo,
a
acolhida dos bens que nos são dados e das pessoas que nos vem ao encontro; é
viver não tanto dependente daquilo que cremos que merecemos e não nos dão,
quanto daquilo que, sem haver merecido, nem esperado, nem pedido, recebemos e
continuamos recebendo no dia-a-dia.
Esse “agradecer”
de fundo, esse viver “agradecidamente” não nos é favorecido pela cultura
consumista que nos incita a estar sempre mais dependentes daquilo que não temos
que daquilo que nos é dado com abundância; uma cultura que fomenta e aviva uma
eterna insatisfação, matando a capacidade de “recordar tantos benefícios
recebidos pela criação, redenção e dons particulares” (S. Inácio).
O
que é que se encontra “de graça”? Onde? Quem pratica essa aventura da “mão
aberta”, da largueza de coração? Há aqueles que não conhecem a palavra
“gratuito” e, por isso, são petrificados frente à gratidão. São surdos e
mudos para o “muito obrigado”.
A gratidão é alegria, a gratidão é amor. É por isso que ela se
aproxima da caridade, que seria como
uma
gratidão
sem causa, uma gratidão incondicional. Que virtude mais leve, mais luminosa,
mais humilde, mais feliz!!! Gratidão =
desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
Texto bíblico: Lc
17,11-19
Na oração: É importante cuidar de nossa gratidão,
mantê-la viva e ativa. Não é natural que perca-mos
a memória, a consciência do muito que temos recebido e continuamos recebendo,
como possibilidades de vida e de sentido, como dons e capacidades, como
criatividade e sonhos...
Cabe a nós, como seguidores de
Jesus, pensar e falar agradecidamente, ter gestos de gratuidade. Ser agradecido
se aprende agradecendo e tudo se pacifica quando o gratuito marca nosso ser por
inteiro. A vida nova vem da Vida recebida e partilhada; ela nos coloca
acima do êxito e do fracasso, pois está no nível da gratuidade.
- Diante d’Aquele de quem tudo
procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu
coração uma atitude de contínua ação de graças.