MISERICÓRDIA HUMANIZADORA
Revelar o rosto do Pai como Amor e
Misericórdia foi, para Jesus, o
cerne de sua missão: toda sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a
humanidade. O “princípio miseri-córdia”, portanto,
é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”.
Na misericórdia, Deus sempre
nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho
a partir de nossas fragilidades. Só o amor
misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nossa vida e nos
abre em direção a um amplo horizonte de sentido.
Deus,
em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades,
riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir nossa verdade
mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava”
no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria
interioridade. A força criativa da sua
misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos
de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma
possibilidade de vida nova ainda não ativada.
A misericórdia nos configura à imagem de
Deus; é onde nós somos mais semelhantes a Ele.
A misericórdia, portanto, é não só a mais divina mas também a mais
humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de
infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza
humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
No evangelho deste domingo encontramos, mais uma vez, o eterno conflito
entre “Misericórdia” e “Lei”, entre “perfeccionismo” e “compaixão”.
“Legalismo” e “perfeccionismo” andam sempre juntos; onde eles imperam, ali não
há possibilidade de futuro, nem de vida nova; quem tem a lei na mão torna-se um
juiz implacável, insensível, duro, frio… “Onde há misericórdia, ali está o Espírito de Deus; onde
há lei, ali estão seus ministros” (papa
Francisco).
Na parábola de hoje, Jesus “pinta” o rosto misericordioso do Pai; ele descreve
a tipologia de dois comportamentos em
relação ao fracasso do “filho mais moço”.
Em 1º lugar, o coração terno do
Pai manifesta-se aberto; seu modo de proceder se exprime nessas cinco ações carregadas de sentimentos, afeto
e ternura: ver, comover-se, correr, abraçar e beijar.
Em vez de
julgar o filho e fazer com que ele se afunde em culpa, o pai o acolhe plenamente.
O perdão devolve ao filho mais moço
a sua dignidade de homem livre, a auto-estima e o sentido
de pertença
à família. O pai não aproveita a ocasião para praticar a pedagogia da culpa ou
para tornar o filho dependente do seu perdão. O encontro não termina com o
perdão. Há uma grande festa.
A festa sela o perdão no coração de quem
rompeu a aliança.
Portanto, a festa
não é o prêmio do erro; ela é a expressão tangível, clara, do perdão realizado. O perdão é total: oferece uma inédita
possibilidade de vida para o coração de quem viveu a fundo a experiência do
próprio fracasso.
O pai revela-se
exagerado no perdão diante de quem errou. Ele tem tolerância e paciência com
relação ao processo que se abre interiormente no filho que se arrependeu. O
processo permanece aberto de maneira que o filho possa amadurecer e o erro
possa trazer um ensinamento; em outras palavras, possa dar lugar a uma
experiência construtiva para ele. O re-orientamento que o pai provoca no filho
mais jovem, com o seu perdão e a festa, é tão forte, que o jovem será
capaz de tirar proveito da sua experiência negativa.
A festa vem revelar que ele é amado
incondicionalmente.
Ao contrário do pai, o filho mais
velho revela um esquema mental fechado ao fracasso do seu irmão por
estar ocupado com um “conteúdo perfeccionista”.
Por ocasião do encontro entre o filho mais moço e o pai, o “filho mais velho
estava no campo”; isto já indica uma
característica da sua personalidade: o dever
antes de mais nada.
Ele havia perdido toda e qualquer orientação para consigo mesmo a fim de
perseguir a perfeição.
Queria ser irrepreensível aos olhos do pai
sem jamais desobedecer a uma única ordem sua.
Ao ouvir “músicas
e danças”, perguntou a um
servo a razão daquilo; este fato sublinha o quanto estava afastado dos
acontecimentos familiares. Enche-se de cólera e não quer entrar para a festa.
Mesmo no
plano afectivo, ele se encontra completamente longe da família. Ele mostra em
suas palavras a sua total solidão. Talvez fosse um homem sem amigos.
Tinha uma
relação com o mundo das coisas, dos deveres e dos princípios, não das pessoas.
O perfeccionista é um ser muito frio.
Vive com a chama do sentimento no nível “baixo”.
O sentimento torna as pessoas mais
humanas, ou seja, mais vulneráveis, mais frágeis.
A perfeição tinha deixado o filho mais
velho vazio de sentimentos. Seu comportamento é de incompreen-são e de
julgamento. Ele não se comove nem diante do destino do irmão nem tampouco
diante da revela-ção da ternura paterna. A perfeição
o deixou desumano.
Seguiu o “evangelho
da perfeição”, não o da misericórdia.
O pai
precisou sair da festa para procurar
convencê-lo a entrar. Trata-se de uma alegria
que o filho mais velho não é capaz de compartilhar.
Aos esforços
paternos para fazer com que participasse daquele evento, ele responde não com a
compaixão, mas com o argumento da
obediência às obrigações e às proibições: “Já faz tantos
anos que eu te sirvo sem
ter jamais desobedecido às tuas ordens”. Nenhuma
referência à vida de família, ao afeto, às relações...
O filho mais novo teve a coragem de pedir a sua parte, de arriscar,
de viver a própria vida, de fazer as suas opções. Ele honrou a vida. O filho mais velho honrou os princípios, as normas... Nem passou por
sua cabeça pedir a parte que lhe cabia. Se não consegue perdoar ao irmão é
porque sabe que não é capaz de correr riscos. É um ser “autoblindado”.
A experiência de misericórdia gera em nós uma
atitude correspondente de misericórdia. O Deus miseri-cordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventu-rados
os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É
exatamente este o maior sinal da sua Mise-ricórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia
presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina.
Como estilo-de-vida cristã a misericórdia nos descentra de nós mesmos e
nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência
da misericórdia nos torna realmente livres, e isso nos proporciona profunda
alegria interior.
A misericórdia
é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença
misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus
erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e
se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é
uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de
redescobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de
abrir-lhe novamente a esperança...
"Devemos ser presença misericordiosa como
pecadores, não como justos”.
Texto bíblico: Lc. 15,1-32
Na oração: Entrar no “fluxo” da misericórdia divina:
ser canal por onde
circula o amor mi-sericordioso em favor dos outros.
- Recordar experiências onde
você se sentiu cha-mado a exercer o
“ofício da misericórdia”.